sexta-feira, 24 de julho de 2020

Documentário sobre Gorbachev revela a grande figura trágica do século 20, João Pereira Coutinho, FSP

Existem dois gigantes óbvios na história do século 20. O primeiro é Churchill. O segundo é Gorbachev. Se eu fosse Shakespeare, escolheria ambos para duas peças trágicas. Mas se apenas pudesse escolher um, ficaria com Gorbachev. Não há personalidade mais trágica na história desse século.

Essa, pelo menos, é a mensagem central do documentário “Encontrando Gorbachev”, da autoria de Werner Herzog e André Singer. Recomendo sem reservas.

Superficialmente, a obra é uma revisão da matéria conhecida: na década de 1980, liderar a União Soviética não dava saúde a ninguém. Depois da morte de Brezhnev, em 1982, Andropov aguentou dois anos no cargo. Morto Andropov, Chernenko aguentou um.

Essa sucessão de funerais é apresentada por Herzog e Singer com uma deliciosa cadência cómica —e sempre com a marcha fúnebre em looping.

Até surgir Gorbachev, o primeiro líder da URSS nascido depois da Revolução Bolchevique de 1917.

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Esse pormenor não é incidental. Sem carregar o patrimônio fossilizado do marxismo-leninismo, Gorbachev podia olhar para a União Soviética e fazer um balanço dos seus sucessos.

Os sucessos eram poucos —e essa é a primeira tragédia de Gorbachev: a intolerância perante a mentira, que se tornou ferina depois do desastre de Chernobyl.

Existe a ideia errônea de que, a partir de 1985, o novo secretário-geral pretendia dissolver o “socialismo real” e a União Soviética.

Nada mais errado. “Eu queria mais socialismo!”, afirma o próprio em conversa com Werner Herzog. Mas como garantir uma sociedade mais justa quando a economia soviética era uma ruína?

Na explicação de William Taubman, um dos melhores biógrafos de Gorbachev, os satélites de Moscovo (Vietnã, Cuba, Coreia do Norte e leste da Europa) recebiam da pátria-mãe 17 bilhões de dólares em matérias-primas e outros produtos. Moscovo recebia entre 3,5 bilhões a 5 bilhões de dólares apenas de volta. O império soviético era um negócio caro e disfuncional. Ainda mais com uma guerra insana no Afeganistão.

Mas a tragédia de Gorbachev não se limita ao seu pragmatismo; é preciso incluir também a sua aversão à violência.

Cena do documentário 'Encontrando Gorbachev'
Cena do documentário 'Encontrando Gorbachev' - Divulgação

Para um regime que, desde 1917, viveu e sobreviveu pela violência, isso era um pecado capital —e Gorbachev assume a falha quando fala de Boris Ieltsin, o monstro que ele criou. “Se eu fosse como os outros líderes”, confessa Gorbachev, “Ieltsin não teria chegado onde chegou”.

“Mas eu nunca fui assim”, conclui ele.

Verdade. Não foi assim com Boris Ieltsin e não foi assim com todas as repúblicas socialistas do leste da Europa, quando começaram a seguirem os seus próprios caminhos.

No documentário, Herzog conversa com Miklós Németh, o último premiê comunista da Hungria e que recebeu de Gorbachev uma frase simples: “não haverá uma repetição de 1956”. O trecho faz referência à brutal repressão soviética em Budapeste para impedir que a Hungria abandonasse o Pacto de Varsóvia.

Enterrando a doutrina Brezhnev, que reservava para o Exército Vermelho o direito de interferir nos casos desviantes, Gorbachev fazia o que Ronald Reagan lhe pedira em discurso célebre: permitir que o muro de Berlim fosse derrubado e, pela secessão das repúblicas soviéticas, terminar com a União.

Para aqueles que viveram sob o comunismo e para todos os democratas liberais, Gorbachev é um herói. Mas ele próprio recusa o título e, na sua lápide, deseja apenas que esteja uma palavra: “Tentámos.”

É uma palavra romântica, digna de Lérmontov, o seu poeta preferido. Mas talvez a tentativa fracassada de conciliar a União Soviética com a democracia e a liberdade não seja culpa de Gorbachev.

Como se vê hoje na Rússia de Putin, a tirania da história, às vezes, é mais forte do que a vontade de um homem.

João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.


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