[RESUMO] O sociólogo alemão Max Weber, cuja morte completa um século, deixou reflexões que podem iluminar a tragédia brasileira atual, como a defesa da autonomia da ciência em relação à política e à religião e a importância de instituições fortes para neutralizar a tendência ao irracionalismo.
Não se sabe ao certo quando Hannah Arendt (1906-1975) leu Max Weber (1864-1920) pela primeira vez. Dificilmente terá sido na Universidade de Marburg, onde iniciou seus estudos de filosofia sob os auspícios de Martin Heidegger (1889-1976) em 1924. Somente ao se matricular na Universidade de Heidelberg, na primavera de 1926, o contato tornou-se inevitável. Seu orientador de tese, o psiquiatra e filósofo Karl Jaspers, tinha sido amigo e continuava um grande admirador de Weber.
Os grifos de Arendt em seu exemplar de "Ciência como Vocação", publicado em 1919, revelam desconforto com o texto e, talvez, com o autor. Ela questiona os trechos sobre a inevitabilidade da especialização e a obsolescência do saber científico. Na famosa passagem em que Weber insiste na importância de uma “dedicação apaixonada” na ciência, ela anota à margem: “Existe uma ascese do especialista?”
É de se supor que algo dessa distância se devesse ao verdadeiro mestre filosófico de Hannah Arendt. Em 1928, Heidegger escreve a Jaspers que Heidelberg “já não pode ser a velha Heidelberg de Max Weber” e estimula o colega a guiar-se por “exemplos vivos”. Cinco anos depois, sequioso de ganhar influência no regime nazista, Heidegger fulmina as aspirações acadêmicas de um sobrinho de Weber, Eduard Baumgarten, com um parecer em que afirma que o jovem acadêmico “tem suas origens familiares e espirituais no círculo de intelectuais liberal-democratas em torno de Max Weber”.
Nos "Cadernos Negros", cuja publicação na Alemanha só começou em 2014, Weber é caracterizado por Heidegger como um representante de uma ciência ultrapassada, cujos pressupostos seria preciso virar pelo avesso: “Precisamos ainda da ciência – isto é, daquilo que hoje se entende pelo termo?”; “a ‘ciência’ tem de seguir sempre ‘adiante’?”; “o fim da Universidade e o início de um novo saber” etc.
Tais ideias orientam o tristemente célebre discurso de posse de Heidegger como reitor da Universidade de Freiburg, quando defendeu uma ciência "alemã", alheia à marcha da especialização e organicamente vinculada ao "povo". A partir de 1933, a “nova” universidade não se confundiria mais com uma “pseudocultura decrépita” ou com princípios como o da objetividade científica. Sua missão mais elevada haveria de ser a “luta”.
Em um movimento sutil de autoestilização no pós-guerra, Heidegger afirmou que um pensador só deixa marcas profundas onde é combatido. É possível, mas essas palavras se aplicam ainda mais àquele cujo legado ele outrora pretendera destruir. Com efeito, a própria Hannah Arendt confessaria a Jaspers em 1956 que vinha se dedicando à leitura de Weber. Ela descobre enfim a “incrível genialidade” dos artigos de 1904-1905 sobre "A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo" e conclui que “não há nada na literatura que tenha atingido tal nível”.
Ironicamente, para Max Weber o projeto de um “novo saber” a serviço do “povo” não era o futuro, mas sim futuro passado. Aos 31 anos, quando assumiu a cátedra de economia política em Freiburg em maio de 1895, ele ainda acreditava que a ciência econômica deveria tornar-se “uma serva da política”. Seu discurso de posse na ocasião é um libelo nacionalista que em nada lembra o autor clássico que todos conhecemos.
Há decerto ambivalências de sobra em Weber, além de alguns aspectos inegavelmente indigestos: ocidentalismo, acentuado rigorismo ético e adesão tardia e instrumental à democracia. Por outro lado, e embora se dissesse um “membro da classe burguesa”, Weber não se calou ante a miséria das massas “que tanto pesa na aguçada consciência social da nova geração”.
A ascendência de sua mãe, Helene Weber, e a participação nos congressos evangélico-sociais aguçaram suas preocupações reformistas, razão pela qual sempre manteve boas relações com inúmeros membros do partido social-democrata.
Tanto quanto a religião ou as formas de dominação, o tema da liberdade atravessa sua obra de ponta a ponta. No longo estudo de 1892 sobre a situação dos trabalhadores agrícolas, ele observa que no leste alemão as formas de trabalho itinerante eram preferidas pelo proletariado rural mesmo quando a remuneração era inferior. A explicação estava a seu ver no “desejo obscuro de liberdade pessoal”. Essa “tendência do mundo moderno é o produto de um desenvolvimento psicológico de caráter geral, e nós o experimentamos em nós mesmos”.
"Ética Protestante", como se sabe, termina com o prognóstico sombrio de uma humanidade aprisionada por um estilo de vida que sacraliza o trabalho, “até que cesse de queimar a última porção de combustível fóssil”. No entanto, engana-se quem vê aí uma expressão de resignação. Como mostram seus escritos sobre a Revolução Russa de 1905, para ele a tarefa mais elevada do político —e do político liberal em particular— era forçar as portas da “morada da nova servidão”.
Como seria possível então, pergunta-se Weber, “a persistência da democracia e da liberdade sob o domínio do capitalismo moderno?” Ele mesmo responde, no tom típico de seus textos políticos: tais ideais só prosperam “onde a vontade resoluta de uma nação se opõe constantemente a deixar-se conduzir como um rebanho de ovelhas”.
O projeto juvenil de uma ciência “serva da política” é substituído por uma convicção clara, se bem que intempestiva às vezes, de que à liberdade do ser humano deve corresponder uma ciência livre. Seus memoráveis debates na Associação para a Política Social, entre 1909 e 1917, e seu diálogo com a filosofia neokantiana giram em torno desse mesmo núcleo.
O que podia restar de nietzschiano em seu pensamento (e não era muito) dá lugar agora ao “imperativo fundamental da imparcialidade científica”. Reconstrução histórica dos problemas, emprego de conceitos rigorosos e liberdade face aos valores ("wertfreiheit") tornam-se os pilares do que ele chama de ciência da realidade, a concepção que orienta tanto economia e sociedade quanto a ética econômica das religiões mundiais.
Todavia, o cultivo da liberdade é também, e sempre, cultivo da diversidade. Por isso o que caracterizava o seu círculo em Heidelberg (onde viveu entre 1896 e 1919) era menos a pregação de ideias “liberal-democratas” que o convívio entre diferentes.
Weber e sua esposa Marianne abriam aos domingos sua bela casa à margem do Neckar para eminentes professores, como o teólogo Ernst Troeltsch, o jurista Georg Jellinek, o poeta Friedrich Gundolf e o historiador da arte Carl Neumann, além de jovens intelectuais judeus que se tornariam célebres mais tarde: Karl Loewenstein, Helmuth Plessner, Georg Lukács e Ernst Bloch. Lina Radbruch, Else Jaffé e Mina Tobler eram presenças constantes. Neokantianos discutiam com marxistas, e discípulos do poeta Stefan George com teólogos protestantes. Falava-se de estética e filosofia, de política e história.
O início da guerra no verão de 1914 pôs fim àqueles encontros. Como oficial da reserva, Weber assumiu a administração dos hospitais militares de Heidelberg. O detalhado relato que escreveu sobre essa experiência pode, sem dúvida, ser considerado um estudo pioneiro de sociologia hospitalar. O manuscrito desse precioso documento, que tanto teria a nos ensinar na hora presente, foi publicado no volume 15 da edição crítica de suas obras, a "Max Weber Gesamtausgabe", mas permanece ainda inacessível aos leitores não familiarizados com a língua alemã.
À medida, porém, que a derrota apontava no horizonte, uma atmosfera impregnada de misticismo e pessimismo cultural tomou conta da Alemanha. Em maio de 1917, a convite do editor Eugen Diederichs, Weber participa de um concorrido encontro no castelo de Lauenstein, onde se promoveriam discussões sobre "o sentido e a tarefa de nossa época".
Na ocasião, aconteceu um violento debate entre ele e um dos palestrantes, envolvendo ainda representantes do Movimento de Juventude. Com o suporte de Diederichs, esse grupo criticava os ideais culturais estabelecidos e a política institucionalizada, propondo sua substituição por lideranças carismáticas. Na sua intervenção, que uma testemunha classificou de brilhante, Weber atacou duramente a postura dos jovens e o romantismo político dos que se opunham à democratização da Alemanha.
Apenas cinco semanas depois, em Munique, ele fazia a conferência "Ciência como vocação". Poucos leitores contemporâneos desse texto notável sabem que os destinatários que Weber tinha em mente eram, sobretudo, os adversários de Lauenstein.
Assim, ele insiste que ciência e fé trilham caminhos opostos: consciente de suas limitações, a primeira se orienta pelo ideal de clareza, busca o entendimento e o domínio racional do mundo. Não oferece verdades da alma, mas subsídios para uma tomada responsável de decisões. Os que nos dias de hoje optam pelo “sacrifício do intelecto” bem podem fazê-lo no plano pessoal, mas devem estar cientes de que, ao subordinarem à fé essa força motriz do mundo moderno, a ciência, se convertem em semeadores da ruína.
Passados cem anos de sua morte, é inevitável que nos perguntemos se Weber teria algo a dizer sobre os dilemas brasileiros atuais. De fato, os ensaios políticos que publicou ao fim da vida contêm um pequeno tesouro de reflexões que, não obstante dirigidas a seu mundo e a seu tempo, ainda nos alcançam e iluminam.
Em um contraponto aos conservadores e à “covardia da burguesia”, Weber via na crise alemã do pós-guerra uma chance para a democracia e a parlamentarização. Neutralizando a tendência ao irracionalismo própria da “democracia de rua”, um Parlamento forte funcionaria como “escola de líderes”. Somente lideranças autênticas, legitimadas pelo voto popular e forjadas na luta partidária, estariam aptas para guiar competentemente o país.
No entanto, nunca é apenas de legitimidade que se trata. Para Weber, o verdadeiro líder deve ser dotado de um senso profundo de honra e não do “senso de subordinação de um funcionário”. A vocação para a política demanda não uma insensata “ética da convicção”, incapaz de reconhecer os limites impostos pela realidade e, portanto, incapaz de transformá-la (para melhor).
Exige, antes, uma “ética da responsabilidade”, um equilíbrio entre paixão e senso de proporção. Em uma palavra: o radicalismo não é uma forma exacerbada do político, mas sua negação.
Em 14 de junho de 1920, aos 56, Weber caía vítima de uma pneumonia —e não da gripe espanhola, como tem sido veiculado. A lápide sobre seu túmulo traz a seguinte inscrição: "Jamais encontraremos um igual a ele".
Em obituário publicado poucos dias depois de sua morte, o escritor Ernst Troeltsch caracterizou seu falecido amigo como uma síntese única de “ceticismo, heroísmo e rigor moral”. Esse retrato é confirmado por muitas histórias, das quais lembraremos apenas uma.
Uma das últimas intervenções públicas de Weber —feita em uma Munique sobressaltada ora por revolucionários de esquerda, ora pelas ameaças de golpe da direita— foi dirigida a estudantes antissemitas que haviam tumultuado suas preleções na universidade.
Repreendendo-os de forma cortês, mas decidida, Weber concluiu com estas palavras: “Se um dia o que estiver em questão for reconduzir o Reich alemão à sua antiga glória, estou disposto a me aliar a todos os poderes da Terra e até com o Diabo em pessoa, só com a burrice é que não”.
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