Com vetos, presidente sem máscara reafirma direito de infectar os semelhantes
Durou pouco o surto paz e amor de Jair Bolsonaro. O presidente curvou-se ao demitir o quase ministro enganador e tem afagado Supremo e Congresso, mas voltou a sabotar a prevenção da Covid-19, vetando vários pontos de projeto de lei sobre uso de máscaras.
Seria ocioso entrar nos argumentos jurídicos da mensagem nº 374, em que o presidente justifica ao Senado os vetos ao PL 1.562. Basta lê-la para entender que são cortina de fumaça tóxica e que o capitão Corona abraçou mais uma causa odienta de seus amados EUA, macaqueando Donald Trump.
Lá como cá, despontam celerados que querem porque querem entrar em lojas sem proteção sobre boca e nariz, em nome da liberdade individual. É uma ideologia necrófila correlata à de armar a população, só que os libertários de miolo mole lutam agora pelo direito de disparar perdigotos covídicos contra seus semelhantes.
Os motivos alegados para justificar os vetos primam pelo cinismo. Quase todos afirmam que os parágrafos e incisos foram derrubados porque supostamente invadiam a autonomia de estados e municípios e lhes impunham despesas sem indicar fonte orçamentária. Bolsonaro defendendo governadores e prefeitos... faz-me rir.
Assim é que o presidente pretende banir da legislação federal a previsão de multa para quem se recusar a portar máscara em ambientes públicos, a obrigação de empresários fornecerem esse e outros equipamentos de proteção individual a funcionários, a realização de campanhas de esclarecimento pelo poder público e assim por diante.
O veto mais chamativo abateu o inciso III do artigo 3º-A, que determinava o uso de máscaras em “estabelecimentos comerciais e industriais, templos religiosos, estabelecimentos de ensino e demais locais fechados em que haja reunião de pessoas”.
Bolsonaro implicou com os “demais locais fechados”, que em sua cisma implicaria risco de violação de domicílio, em desacordo com o art. 5º da Constituição. Deve temer que a PM do Distrito Federal invada as pantomimas sem máscara das transmissões de quinta-feira, como a do dia 2, em que se contavam sete desprotegidos.
O presidente acha que tem a prerrogativa de dar mau exemplo e de exigir que auxiliares, assim como intérpretes de libras, corram o risco de ser infectados (além de aturar a sanfona dos infernos). Até o ministro Paulo Guedes, que antes se cuidava, anda aparecendo sem máscara —a de verdade, excluída a de sentido figurado.
Acordem. Este é um governo em que a AGU (Advocacia-Geral da União) recorre da decisão judicial que impunha o uso do dispositivo por Bolsonaro quando sai às ruas.
Não se atina com o que é pior: A recusa presidencial a cumprir a lei? A determinação judicial para que o faça? O recurso da AGU contra ela? A decisão da desembargadora Daniele Maranhão Costa pela superfluidade da liminar determinando que o presidente obedeça a norma que ele ignora?
Reginaldo Prandi, decano das pesquisas de opinião pública do Datafolha, conclui dos dados do instituto que meros 15% da população adulta compõem o grupo de adeptos fiéis, entusiastas fanáticos e adoradores de Bolsonaro. Pouca gente, em proporção, mas ruidosa e movida por ódio à razão, que o presidente volta a insuflar.
Esse é o “povo” em cujo nome ele acredita falar. O povo sem máscara que lota bares do Leblon, acha que tem direito de rir do corona na cara dos outros e é capaz de sacar uma arma para defendê-lo —até um parente ou amigo cair doente e sucumbir à Covid-19. Questão de tempo.
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