Quase todo mundo tem uma história pra contar sobre desavenças que surgiram, nos últimos anos, em função da brigalhada política. Tempos atrás vi um tuíte de uma filha dizendo que o pai era um homem bom e que o “perdoava”, mesmo tendo ele votado no candidato que ela detestava.
O filósofo Robert Talisse comenta que encontrou mais de 40 milhões de entradas digitais com instruções sobre como escapar dos temas politicamente delicados e sobreviver aos encontros familiares no Dia de Ação de Graças americano.
Achou curioso não ter encontrado nenhuma vez a sugestão simples de que talvez a própria celebração entre as pessoas fosse mais importante do que as crenças políticas de cada um.
A partir desse incômodo ele escreveu “Overdoing Democracy”, um livro que faria bem ser lido por aqui. O ponto de Talisse é o que ele chama de “saturação política da vida social”. A ideia obsessiva de que “tudo é política” e é ela que deve pautar nossas relações pessoais, hábitos de consumo e juízos sobre qualquer coisa.
Lendo o livro me veio à mente o tema das identidades. A percepção de que, para além da retórica habitual, não é o gênero ou cor da pele que define o respeito, em regra, no mundo público, mas a opção política.
Neste episódio do ex-ministro Decotelli, li uma crítica dizendo que ele talvez até merecesse o tombo que levou não pelas omissões no currículo, mas porque era evangélico e renegava a religiosidade de seus antepassados. E era bolsonarista.
Seu problema era “político”. Escolheu errado. O autor destilava seu ódio com uma estranha pátina de virtude autoconcedida. Estranha, mas crível. Sua tribo iria entender do que ele estava falando. E isso bastava.
A saturação política invade também os espaços de consumo. Dias atrás observei gente bacana distribuindo listas de empresas a serem boicotadas, dado que seus proprietários manifestavam esta ou aquela posição política. Comer um cachorro-quente se tornava um gesto político. A estratégia impor um custo, fazer “calar a boca” de fato parecia funcionar.
Para o fanático político há sempre algo mais em jogo do que uma escolha eleitoral. Este é o ponto de Talisse. Se tudo é política, cada gesto remete a uma “totalidade”, sacou? O gosto por um desenho, o trecho de um filme, tudo pode ser imensamente grave. Não dá pra deixar passar, não é mesmo?
Mesmo o passado anda saturado de política, como mostra a atual onda iconoclasta. Isso não é novo, mas agora ganhou escala. O sujeito cruzou anos pela estátua do Borba Gato, em Santo Amaro, mas subitamente passa a enxergá-la como um ator político. Não é mais a imagem de um tempo que se foi. Ela se põe em movimento, incomoda, agride. E também precisa calar a sua boca.
Qual seria exatamente o problema com a saturação política? Alguns diriam que é a chatice. Tendo a concordar com isso quando dou uma olhada nas discussões de alguns grupos de WhatsApp nos quais (não me perguntem por que) estou incluído.
Mas a coisa vai muito além. Há bens valiosos que se perdem nesse caminho. O respeito humano é um deles (o respeito às escolhas políticas de Decotelli é só um exemplo). Há a perda da empatia, da capacidade de levar à frente projetos comuns com quem se discorda.
Há bens essenciais à democracia que a obsessão política leva com a água do banho. A capacidade de agir com imparcialidade e respeitar regras que não deveriam depender da lealdade política. A liberdade de expressão é um bom exemplo, mas está longe de ser o único.
O problema é a solução proposta por Talisse. Ele fala em cultivar a humildade intelectual e virtudes como a “amizade cívica”, capaz de cruzar fronteiras políticas. Sugere que cada um veja a si como vê a seus inimigos. Como “irracionais, imunes a evidências e assim por diante”.
A tese é boa. A democracia, para funcionar bem, precisa preservar espaços protegidos da própria política. Há um longo aprendizado a ser feito aí, visto que por ora parecemos caminhar alegres e obsessivamente na direção oposta.
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