segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

Moisés Naím Neve e corrupção - OESP

Moisés Naím, O Estado de S.Paulo
03 de fevereiro de 2020 | 05h00

Nos países onde a neve é abundante, também são abundantes as palavras para se referir a ela. E isso vale também para a corrupção. Onde há muita corrupção, também existem muitas maneiras de chamá-la.
Na língua sami, falada na Noruega, Suécia e Finlândia, existem mais de 300 palavras relacionadas à neve. Na América Latina e em países como Itália, Grécia, Nigéria ou Índia, existem centenas de palavras usadas para referir-se à corrupção. Coima, mordida, moches, ñeme-eme, guiso (ensopado), mermelada (geleia) ou cohecho são palavras usadas para se referir à corrupção em diferentes países de língua espanhola.
Mas tão interessantes quanto as palavras que restam são aquelas que estão faltando. Em espanhol, por exemplo, não temos uma palavra equivalente a whistleblower. Em inglês, esse termo (literalmente: aquele ou quem toca o apito) refere-se a uma pessoa que denuncia uma atividade ilegal ou alerta sobre comportamento antiético.
Um famoso whistleblower, por exemplo, foi Jeffrey Wigand. Esse executivo-sênior de uma empresa americana de cigarros decidiu denunciar, em um programa de televisão de grande audiência, que a empresa onde trabalhava adulterava tabaco com amônia para aumentar o efeito viciante da nicotina.
Naturalmente, sua denúncia teve imensas repercussões que, entre outras coisas, forçaram o governo a aumentar os controles e a regulamentação da indústria do tabaco. Wigand também revelou que, após sua denúncia, ele recebeu várias ameaças.
É por isso que, em vários países, agora existem leis que protegem aqueles que ousam expor condutas ilegais, tanto em empresas privadas quanto em órgãos governamentais. Também existem prêmios e reconhecimento para quem divulga os delitos de empresas e governos. Nos EUA, existe até o National Whistleblowers Center, uma ONG cuja missão é fornecer assistência jurídica, proteção e apoio àqueles que revelam atos de corrupção.
É muito revelador que as palavras equivalentes a whistleblower em espanhol, como soplón (dedo-duro), informante, chivato (traidor), sapo ou rato, sejam depreciativas. Em alguns países, aqueles que ajudam a sociedade a tomar conhecimento de más ações públicas ou privadas são celebrados e elogiados, enquanto em outros países são desprezados e denunciados.
Outra palavra que não há em espanhol, mas que é amplamente usada em inglês, é accountability (prestação de contas), o que significa assumir a responsabilidade pelas consequências das decisões que você toma.
O mais próximo em espanhol é “rendición de cuentas”, que se refere às informações que os funcionários públicos ou organizações governamentais são obrigadas a tornar públicas, dando conta assim de suas ações. Mas não é bem o mesmo: na América Latina e na Espanha, a prestação de contas é mais um ato burocrático e contábil do que um ato político ou moral de aceitar a responsabilidade pelo que foi feito. Além disso, existem muitas situações e exemplos nos quais os governos não sentem uma necessidade maior de “prestar contas” honestamente aos seus cidadãos. Opacidade, obstrução, dissimulação ou simplesmente mentiras são geralmente a norma.
Em princípio, espera-se que os regimes políticos nos quais líderes e funcionários sejam responsáveis por suas ações de maneira pública e transparente tenham melhor governabilidade. Esta última é outra palavra que perdemos e que a Real Academia Espanhola só incluiu em seu dicionário nos anos 1990. De acordo com este dicionário, “governabilidade” é a “qualidade do governável” e a palavra “governança” refere-se à “arte ou maneira de governar”.
Obviamente, a governabilidade frágil e a má governança são pragas que assolam muitos países. Frequentemente, isso se deve ao “continuísmo” daqueles que detêm o poder. Segundo a Royal Academy, “continuísmo” é uma “situação na qual o poder de um político, um regime, um sistema etc. continua sem sinais de mudança ou renovação”. A palavra continuísmo é frequentemente usada no debate político ibero-americano para denunciar a propensão dos líderes a reter o poder, mesmo após o fim do período para o qual foram eleitos, alterando regras e leis e até mudando a constituição.
Como se diz “continuísmo” em inglês? Não se diz. Em inglês, não existe uma palavra que corresponda a ela diretamente. Muito revelador, certo?
Precisamos mais do que nunca de uma cultura própria de accountability, na qual homenageamos os whistleblowers cujas reclamações contribuem para melhorar nossa governança e dar um curto-circuito no continuísmo. Grave é que não possamos sequer ter essa discussão sem usar múltiplos (e horríveis) anglicismos. É hora de começar a expandir o dicionário de palavras que se referem à decência e honestidade. / TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO

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