Lançado em dezembro de 2006 no Instituto Tomie Otake, em São Paulo, o livro “Visões da Metrópole – Depoimentos sobre Transporte e Urbanismo para o PITU 2025”, publicado pela Secretaria dos Transportes Metropolitanos, trouxe uma série de entrevistas com especialistas e estudiosos da área pública, do setor privado e da academia.
Dentre as 30 entrevistas realizadas, destacamos agora o depoimento de Rogério Belda, à época presidente da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP).
Sob o título “Entre a modelagem e a realidade”, e na condição de um dos mentores intelectuais da primeira versão do PITU, Belda destacou as distâncias entre realidade e modelo, e principalmente a necessidade de os agentes públicos perceberem que o verdadeiro planejamento não é o do transporte, é o da vida urbana.
A seguir, o texto completo da entrevista, como publicada na época:
Como o planejamento e a modelagem se relacionam?
Rogério Belda —O problema é que nos encantamos tanto com que eles deixam de ser um instrumento para ajudar a raciocinar e passam a se constituir o próprio objetivo do planejamento. É preciso ter sempre presente que um modelo, para ser operacional, é uma simplificação da realidade. O raciocínio humano é bem mais complexo do que as lógicas introduzidas no modelo, porém este tem vantagens, pois permite identificar inúmeras alternativas e examinar hipóteses diferentes, o que não seria possível com as limitações do raciocínio humano. Não conseguimos, por exemplo, imaginar cinco variáveis mudando ao mesmo tempo. A técnica de planejamento estratégico consiste em imaginar futuros diferentes, que servirão como pano de fundo para formular estratégias. Na linguagem técnica, seria uma estratégia robusta, aquela que sobrevive em situações diferentes, em cenários favoráveis ou desfavoráveis, esperados ou inesperados.
A modelagem, então, apresenta limites?
Belda — Ao aperfeiçoar o modelo, podemos ter a falsa impressão de que estamos construindo o futuro e que, a partir daí aquele futuro estará garantido. Cheguei a ver textos que tratavam de um futuro previsto para 10 anos à frente como se aquilo já tivesse acontecido, quando trata-se simplesmente de uma hipótese. Isso representa uma espécie de ilusão, pois se define um futuro maravilhoso e se fazem simulações para alcançar aquele futuro, que resultam numa rede de transporte que sempre será a mais "adequada". Quanto mais essa rede for "estrutural" e mais exigir investimento de capital, maior é a garantia de que se vai chegar àquele futuro maravilhoso. E passa-se a acreditar que planejando o metrô, melhorando a ferrovia, fazendo terminais pesados de ônibus, chegaremos automaticamente à cidade saudável, equilibrada, harmoniosa, perfumada. As coisas, de fato, não têm essa ligação tão direta. Porque a mobilidade na cidade é desequilibrada. Existem dois tipos de mobilidade: a dos que possuem e a dos que não possuem automóvel. A mobilidade daqueles que têm automóvel só tem aumentado. A dos que não têm, só tem diminuído. E isso precisa mudar.
Como mudar?
Belda — Nos países mais adiantados, existe a chamada gestão de demanda. Ou seja, como diminuir as viagens dos que viajam muito, considerando, em prioridade, as pessoas de renda baixa? É preciso escapar da política do que chamo de "coitadismo", formulando estratégias para melhorar a acessibilidade de quem está desfavorecido, pois isso só se faz mudando a forma como a cidade está organizada. Com relação aos mais favorecidos, é preciso introduzir uma mudança na forma de viajar, porque, como é hoje, é extremamente predatória, não só em termos ambientais, como também em termos urbanísticos. É impossível alcançar uma cidade saudável e equilibrada onde todos andem de carro. Se todas as pessoas andassem de automóvel, o espaço físico necessário seria tão grande, para viadutos, avenidas, garagens e oficinas, que praticamente ocuparia quase todo o território da cidade. Em São Paulo, o espaço dedicado ao sistema viário é de 15% a 20%. As cidades americanas têm mais espaço para a circulação e já estão chegando à impossibilidade de manter esse modelo.
Durante muito tempo ficou a ilusão de que, se nossos cenários fossem adequados e nossas simulações apontassem bons resultados, seria possível reverter a matriz transporte individual x transporte coletivo. O que tem de ser feito para mudar de fato essa situação?
Belda — Sempre imaginamos que, se melhorássemos o transporte público, a divisão modal restaria estabilizada, mas a cada nova pesquisa Origem Destino a divisão modal ficava mais desbalanceada. Hoje a parcela do transporte individual já supera a do transporte coletivo. Pretendíamos mais do que meramente manter a divisão modal, a ideia era mais ambiciosa, acreditávamos que era possível reverter a matriz em favor do transporte público coletivo. Isso nunca aconteceu e por quê? Por falta de uma estratégia que considerasse os agentes envolvidos, quem produz e como são produzidas as viagens, como deslocar recursos de forma a representar uma mudança real. E não são recursos apenas financeiros, envolvem inclusive as de apoio da opinião pública, até mesmo para alterar a visão de como formular essas estratégias.
E como isso se rebateria no PITU?
Belda – O PITU está em transição. Ele não quer as coisas no formato antigo, mas ainda não sabe como alcançarmos o formato novo. Depois, por premissa do tempo, acabamos caindo no caminho conhecido, de utilizar um modelo de simulação e de trabalhar com projeções. Já no primeiro PITU, o 2020, havia a intenção de investir nesse outro tipo de análise, mas por falta de tempo e recursos acabou sendo usado apenas um cenário. Será que, dessa vez, teremos condições para fazer um estudo muito mais ambicioso, nas condições e na proporção exigidas pelo problema?
Na sua avaliação, o que deveria mudar na estratégia?
Belda — Seria muito importante contar com diversos cenários para, pelo menos, poder afirmar que "mesmo fazendo tudo isso, ainda assim continuaremos uma cidade desequilibrada, feia e pouco saudável". Esse é um dos maiores desafios: demonstrar que essa forma de organização da cidade não é boa para ninguém, pobre ou rico. Aliás, não precisamos de modelo para percebera o que aconteceu na cidade oculta, controlada pelo setor da criminalidade, funciona independente da cidade organizada e regularizada, e que tem provocado tantos transtornos nas grandes cidades. Meu temor é de ficarmos trabalhando sobre a cidade organizada e a cidade oculta, ilegal, continuar existindo, evoluindo. Essa cidade “ilegal”, os modelos ainda não conseguem apreender.
Como isso se traduz em termos da ocupação do território?
Belda — A cidade continua se expandindo em áreas que não podiam ser ocupadas. E já não é mais dentro do município de São Paulo, mas nas franjas da região metropolitana, que muitas vezes são áreas de preservação, comprometendo nossos mananciais de águas e reservas ecológicas. Imagino que seria necessário um reaproveitamento das áreas urbanizadas, das que ainda podem ser melhor ocupadas, para de certa maneira se obter um refluxo dessa situação. São Paulo, a capital de serviços da América do Sul, é uma cidade de fluxo financeiro e de informação muito intensa. A parte legal da cidade, que está dentro dos padrões de legalidade; convive com a parte informal. Economistas e geógrafos renomados já mostraram que essa informalidade serve à parte legal. Isso nos garante serviços, produtos e mão-de-obra a custos muito baixos, e que acaba gerando problemas que hoje assustam a parte formal. Mas não é uma dicotomia, não são duas cidades superpostas, uma cidade serve à outra. Isso fica bastante claro na crise de segurança que a cidade vive, à medida que tende-se a considerar apenas a parte formal, e a parte informal é escondida, embora seja parte inerente do processo.
Isso não se traduz, de alguma forma, na distribuição de empregos pelo território urbano?
Belda — A cidade é sempre paradoxal. Existem muitos indícios de que os empregos estão retornando para o centro expandido, num movimento contrário ao da população. Então, não acredito nisso que chamei de "coitadismo", ou seja, em forçar, na elaboração de cenários, uma relação equilibrada entre emprego e população. Evidentemente que queremos emprego para todos, mas não se garante isso distribuindo-o espacialmente conforme a população, teoricamente, ao nível da modelagem. Eu concordo que a localização do emprego tem de ser orientada, mas a base da distribuição dos empregos não está na correspondência direta com a população, pois as cidades reais não são organizadas assim. Há dois tipos de empregos: os que têm força suficiente para se localizar onde quiser — aqueles dos setores mais dinâmicos da economia - e os que são de consumo final. Só esses últimos obedecem a uma lógica que acompanha a localização da população. Então, para formular o índice de emprego por população, esses dois tipos deveriam estar separados.
É possível explorar mais essa ideia?
Belda — Penso que, para esse tipo de emprego, chamado de disperso, que vai por difusão, esse movimento já está ocorrendo espontaneamente, ou seja, ele se espalha por uma necessidade de acompanhar a clientela e independe do planejamento. É com aquele outro tipo de emprego, que é forte e que organiza a cidade à sua maneira, que temos que nos preocupar, na elaboração dos planos para a cidade. No mercado informal de serviços que existe ao redor de estações de trem, nos terminais, já existe esse tipo de atividade, que está mais próxima da demanda. Mesmo o emprego formal está acompanhando essa expansão da cidade. Se procurarmos lembrar da cidade em que vivíamos até pouco tempo atrás, perceberemos que é significativa a quantidade de serviços que saíram da área central e que agora estão nos bairros.
Como a lógica de localização das atividades económicas afeta a produção do espaço urbano e como tratar as duas questões de forma adequada na modelagem de cenários?
Belda — Os novos modelos de transporte, articulados ao uso do solo, ajudarão, pois é muito difícil imaginarmos essa dinâmica. Será uma espécie de laboratório experimental, poderemos ver se aquilo que está sendo imaginado corresponderá a uma mudança desejada. A partir daí, será possível tomar decisões num sentido adequado. É nessa questão que os modelos podem ajudar, pois temos condições de testar hipóteses, detectar tendências, verificando se têm relação com a acessibilidade. Assim, poderemos imaginar redes de transporte que contribuam para uma configuração desejada da cidade.
Buscando garantir a acessibilidade, quais ligações são mais importantes?
Belda — As cidades europeias perceberam que é mais importante fazer ligações pericentrais ou orbitais do que radiais. No modelo radial, a cidade vai se espalhando sempre. Em Porto Alegre, todas as linhas de ônibus são radiais. Quando resolveram fazer transversais, os empresários, em um primeiro momento, reclamaram, pois achavam que não haveria demanda. Aconteceu que nessas linhas estourou uma demanda enorme e isso acabou sendo uma maneira de organizar a mobilidade. As cidades europeias partem para as orbitais, procurando fazer um espaço mais homogêneo, que certamente implicarão em novas polaridades. Podemos dizer que, quando um polo secundário está ligado ao centro, ele fica enfraquecido. Mas quando dois polos secundários estão ligados entre si, um fortalece o outro. Acho que isso deveria ser um critério para a formulação de redes.
Devemos apostar numa rede de transportes mais concentrada ou mais espraiada?
Belda — Acho estapafúrdia a polaridade que está havendo entre os defensores da rede concentrada e os da espalhada. Na minha opinião, não é uma coisa nem outra. Tem de ser uma rede intermediária, que ajude a desconcentrar uma região central muito concentrada e a concentrar uma periferia extremamente desconcentrada. Precisamos descobrir onde a acessibilidade será aumentada com os investimentos que já estão sendo feitos, tanto de corredores de ônibus, quanto dos grandes corredores sobre trilhos. Isso provocará uma mudança de valores na cidade e de quais áreas serão ocupadas ou poderiam vir a ser ocupadas organizadamente.
Existe algum caso que sirva como exemplo?
Belda — Cito sempre o exemplo da Vila Prudente, que reunia todas as condições para não "pegar", pois é uma área mais ou menos segregada, com muita dificuldade de acesso a outras partes da cidade. As pessoas que vivem ou trabalham lá têm de ir para o centro, tanto para acessar o restante da zona leste, quanto para ir à zona sul. É difícil ir direto.
Seria melhor investir em uma ligação da Vila Prudente com o Tatuapé, por exemplo?
Belda — Sim, essa seria uma ligação transversal importante, uma vez que Vila Prudente, está de certa forma, com dificuldade de alcançar essas outras áreas. E vai mudar radicalmente com a chegada do metrô e do Expresso Tiradentes. Quando esses dois investimentos estiverem implantados vai haver aquele boom de valores imobiliários, porque aí as pessoas passam a acreditar que vai ser possível. Até há pouco tempo, mesmo os planejadores duvidavam que a linha da Paulista avançaria até lá. Hoje, tenho certeza que, quando os projetos estiverem implantados lá, haverá uma mudança muito grande.
Do ponto de vista urbanístico?
Belda — Não do ponto de vista urbanístico, porque, como a Linha 4 está sendo anunciada há muito mais tempo, toda a expectativa de um maior aproveitamento do espaço gira em torno dela. Isso também vai acontecer e é muito importante. Temos que considerar os corredores que a Prefeitura tem feito. Essa obra será parte da rede e vai ajudar também a moldar a forma da acessibilidade da cidade. Quando vejo as discussões sobre rede de transporte, lá estão o metrô, as ferrovias e algumas vias estruturais, mas a rede de corredores de ônibus, que poderia ser mais leve, não é considerada. Ela é mais leve, mas representa uma mudança de acessibilidade. Não se pode planejar só rede do metrô ou melhoria da CPTM, porque a rede não muda, mas o funcionamento muda. E não se pode só planejar os corredores de ônibus municipais ou intermunicipais separados. Todos os meios têm de estar ligados numa malha, para mudar o padrão da acessibilidade de São Paulo. O metrô não deve ser tratado como um fim em si, ele é parte da rede de transporte coletivo e deve servir à rede de ônibus assim como os corredores também são para servir a rede capilar de ônibus.
Nessa perspectiva, o sistema de transporte coletivo tem papel central no planejamento da cidade?
Belda — Certamente, mas o transporte e a questão da acessibilidade constituem um entre vários elementos para a decisão. Talvez não sejam nem os mais importantes. Como o transporte é visível e acaba refletindo as necessidades de relação entre as atividades, costumamos emprestar a ele esse papel de protagonista, mas muitas vezes o que detectamos como efeito não provém dele, e sim de outros fenômenos urbanos.
Como levar isso em conta no planejamento?
Belda — Não basta o planejamento enquanto representação da realidade para orientar determinados investimentos, tem que haver um planejamento também da estratégia urbana a ser adotada. O planejamento deve dizer o que a cidade precisa para manter sua preponderância, conseguir eficiência e não perder atividades necessárias. Se a cidade perder eficiência, alguns setores econômicos se mudarão para outros locais. Não que isso seja necessariamente ruim, porque determinadas atividades podem ser feitas à distância. Já para outras, as proximidades representam ganhos de aglomeração. Assim, os centros de decisões devem estar aqui e, para isso, a cidade precisa ter o mínimo de eficiência, um bom sistema de comunicação e mobilidade. Cingapura, por exemplo, tem um bom sistema de transporte e de comunicação para captar atividades financeiras e de negócios, é uma cidade especial. No caso de São Paulo, como manter a primazia que a cidade tem hoje em muitos aspectos? É necessário priorizar ações que garantam a condição de centro de serviços da América do Sul. Se os bolivianos vêm trabalhar no Brasil, por que escolhem São Paulo e não Rio de Janeiro ou Belo Horizonte? É porque aqui tem um dinamismo extraordinário que precisa ser mantido.
O senhor concorda com a análise de que São Paulo não soube apresentar a importância de ter um sistema de transporte coletivo eficiente?
Belda — Concordo. São Paulo é diferente de todas as outras cidades brasileiras, pois nenhuma tem essa divisão modal com prevalência do transporte individual. As outras ainda podem alimentar o sonho do automóvel, São Paulo já não pode mais. Mais um contraexemplo: os Estados Unidos são o império do automóvel, tanto em termos do consumo de gasolina, quanto de consumo de espaço físico. No entanto, Nova York é uma cidade cuja divisão modal valoriza mais o transporte coletivo e à pé, pois lá é impossível abrir muitas vias, o que gerou uma forma diferente de usar o espaço. Em São Paulo, proximamente, deve acontecer algo assim. Aqui, não será mais possível construir novas vias, novos viadutos. Ou a cidade se fragmenta totalmente ou muda o seu funcionamento. E isso não vai ser obra de um grupo de urbanistas e planejadores, mas de muitos agentes. Todos têm a obrigação de se sintonizar com essa mudança e identificar direções que sejam favoráveis à sobrevivência da metrópole na sua função de pólo continental. O transporte tem uma parte nisso, mas não está sozinho. Nessa estratégia, vários elementos se combinam.
Não existe também uma questão cultural envolvida, de valorização do automóvel?
Belda — Sem dúvida, mas na medida em que são oferecidas alternativas com um mínimo de conforto e qualidade, vemos que os comportamentos começam a mudar. Porque o metrô está cheio depois que foi feita a integração com o ônibus? Porque é a melhor forma de se deslocar. Por que há esta demanda tão grande para os corredores de ônibus? Porque o tempo de viagem fica muito reduzido. Quem quiser andar de automóvel, vai se candidatar à neurose. Penso nas pessoas que moram para os lados de Santo Amaro, de São Miguel. Deve ser um desespero o quanto da vida dessas pessoas é jogado fora nos congestionamentos.
Como tratar o planejamento na escala metropolitana?
Belda — Eu vejo como uma impossibilidade a atuação de um "ente metropolitano", nos termos em que está na Constituição, que é meramente formal e estabeleceu que metade do poder é do Estado e metade é de todos os outros municípios juntos. De qualquer forma precisa haver uma descentralização da decisão e até a Prefeitura de São Paulo criou as Subprefeituras. Nenhum prefeito de um município maior vai querer se submeter à condição dada pela Constituição, por duas razões: primeiro, em qualquer instrumento que se organize, se metade do poder de decisão é do Estado, todos os 39 municípios representados juntos vão ter o mesmo peso que o governador e, segundo, do lado das prefeituras, cada uma tem uma posição independente. Portanto, é absolutamente desequilibrado. Ao criar esse modelo, a Constituição colocou uma "camisa de força" que impede a organização de arranjos duradouros.
Qual seria a melhor forma de acomodar os interesses regionais? As organizações por consórcios?
Belda — Precisaria haver certa flexibilidade para acomodar os interesses regionais, as peculiaridades, o que, hoje, não é possível, devido a essa forma determinada pela Constituição. É um caminho para não dar certo. Nunca vai ser um mecanismo eficiente porque municípios como São Paulo, Santo André, Guarulhos e Osasco não vão aceitar, pois eles têm força e espaço suficiente para tomarem decisões autônomas. Cada um age de igual para igual com o Estado e com os outros municípios. Falta flexibilidade na lei criada com a Constituição do Estado.
Os acertos entre municípios não têm sido bem-sucedidos?
Belda — Os acertos entre municípios ficam baseados no entendimento extra formal, ocasional, não duradouro. Combina-se uma coisa e pode se descombinar em seguida. Por exemplo, decide-se fazer a integração em determinado lugar. Tomam-se todas as providências e fazem-se os relatórios. Dois anos depois muda a administração e tudo tem que ser discutido novamente, porque não existe um respaldo institucional. Talvez, até seja conveniente, pelo fato de as cidades mudarem muito, mas por outro lado não fica nada de duradouro. Mesmo os municípios reclamam que os entendimentos são frágeis, não representando um compromisso do Estado. As coisas precisam de uma definição de longo prazo e, para isso, precisariam de legitimidade formal.
O que poderia mudar esse quadro de "provisoriedade permanente"?
Belda — O que vai ajudar é a premência dos problemas. O Rodoanel é uma intervenção específica, não uma solução global. É uma solução estritamente setorial, mas tem uma dimensão tal que as pessoas compreendem e, às vezes, até exageram a sua importância, achando que vai resolver todos os problemas do congestionamento de São Paulo. Sabemos que, no máximo, vai tirar caminhões que ajudam no congestionamento. Mas o Rodoanel consegue dar grande visibilidade a respeito de seus resultados, enquanto as questões sociais, que são muito mais complexas e que precisam de um arranjo e, portanto, de um entendimento maior, consolidado, para que seus efeitos sejam duradouros, têm estratégias mais difíceis de ser implementadas. Precisamos de acordos com respaldo institucional para resolver situações que não são de emergência, que são de permanência. Mas esses continuam precários. Todas as combinações a respeito de integração física da rede de transporte, por exemplo, duram muito pouco. A integração tarifária dura mais. A de 1976 durou quase 30 anos e agora foi refeita numa outra, com o apoio de moeda eletrônica. Certamente, essa vai durar mais de 20 anos.
Isso vale para as questões mais gerais, mais pesadas e visíveis, ou para as de menor porte, mais localizadas?
Belda —As questões mais localizadas sempre são muito efêmeras e mais vulneráveis às mudanças político-administrativas. Mas mesmo para essas pequenas coisas, precisamos ter uma visão estratégica, ou seja, precisamos perceber quais são os agentes, seus interesses, qual é a força resultante de interesses que possam fazer com que esses agentes continuem trabalhando em conjunto para obter resultados. Aí, sim, é a cidade onde poderemos viver e trabalhar adequadamente. Sei que não é fácil. Talvez até os planejadores se dediquem mais ao transporte porque é mais fácil de visualizar as intervenções. Difícil é controlar e orientar essa dinâmica metropolitana, que tem muito mais vida do que o simples deslocamento. Por outro lado, o deslocamento é uma representação espacial e física da dinâmica da cidade. O planejamento de transporte tem um campo muito grande de atuação, desde que saiba que o verdadeiro planejamento não é o do transporte, é o da vida urbana.
E qual é a sua avaliação sobre as alternativas de controle da demanda?
Belda — Temos um cardápio muito extenso e variado de medidas, como caronas partilhadas, escalonamento de horários, rodízio e pedágio. Mas são dezenas de pequenas formas de atuação. Já trabalhei muito no assunto na época em que fizemos estudo sobre escalonamento de horário das atividades. Na época, não tive a percepção de que a gestão de demanda tem de ser feita com a população de renda alta, que produz muitas viagens. Os de baixa renda, ao contrário, precisam de oportunidade para exercer o direito de usufruir a cidade.
O pedágio urbano seria uma alternativa eficiente?
Belda — Sempre fui contrário ao pedágio urbano, mas posso mudar de ideia. O pedágio em Londres foi um sucesso, não produziu os tais congestionamentos que diziam que iam produzir. Londres persegue medidas para desencorajar o transporte individual há muito tempo. Muito antes de implantar o pedágio, já aumentava as calçadas nas áreas centrais, para provocar o congestionamento de propósito. O rodízio e o pedágio urbano são outras formas de espantar o uso excessivo do sistema viário. Mas no caso de São Paulo, é diferente. É uma cidade muito dinâmica, não tem um século que foi construída. Era um vilarejo em 1900 e no ano 2000 tem 18 milhões de habitantes. Este é um crescimento espantoso. Esse dinamismo traz as seguintes dúvidas: será que, com o pedágio no centro expandido, as atividades vão simplesmente sair? Será que mudará a dinâmica da cidade? Se tivermos essa garantia, o pedágio é bom. Mas, e se o efeito for catastrófico?
Há quem diga que há até uma impossibilidade técnica na implantação do pedágio, pois já não se consegue mais isolar a área congestionada, não se sabe onde começa e onde termina.
Belda — Mas o pedágio pode ser concentrado nos corredores estruturais. Em Nova York, existem pedágios em determinados acessos à área urbana. Muito provavelmente isso vai acontecer em São Paulo e acredito que será nas marginais, não inteiras, na parte que venha a ser expandida. Seria um pedágio opcional. Quem precisar ganhar tempo, chegar rápido ao aeroporto, passar mais rapidamente uma carga, vai pela via pedagiada.
Essa tese de que o pedágio no centro expulsaria as atividades não poderia ser testada com o auxílio de um modelo que combinasse uso do solo com transportes?
Belda — Acredito que o pedágio teria um efeito muito grande sobre as atividades urbanas, mas nunca tivemos um modelo que pudesse combinar o uso do solo com os transportes. Houve um esforço grande na década de 80, para elaborar um modelo, o MUT, mas não se tinha o poder dos equipamentos eletrônicos para se fazer simulações como os que existem hoje. O modelo é uma alavanca para o raciocínio e não pode ser tomado como verdade absoluta, de que a cidade vai se comportar daquele jeito. Mas, muito provavelmente, vai se comportar de forma parecida com o resultado previsto. Então, através dele é possível simular o efeito do pedágio ou de outro instrumento qualquer na cidade de São Paulo. Isso vai ser muito útil para a discussão de políticas urbanas e das políticas de transporte.
Como a atuação do setor privado pode auxiliar no processo de planejamento?
Belda — Os grandes grupos privados têm planejamento estratégico e nós precisamos aprender a ter uma visão semelhante, quase empresarial. Precisamos saber quais são os agentes envolvidos, como atuam, quem está entrando no jogo, quem está saindo, quem pode ser aliado, quais serão os empecilhos. É difícil pegar a estratégia de uma empresa e passar diretamente para uma estratégia pública, mas lá estão os instrumentos e temos que adaptá-los ao poder público. A iniciativa privada tem razão de considerar a incerteza como uma condição permanente, pois no mundo dos negócios é essa a lógica. No caso do setor público, que cuida dos bens da sociedade, existe uma inércia maior. Mas não precisamos ficar tão descrentes da possibilidade de organizar as ações numa determinada direção. Estou descrente é da nossa capacidade de conseguir perceber quais são essas direções, de como fazer esse jogo estratégico.
Para encerrar, qual é a importância do PITU nesse processo?
Belda — Não se pode ser muito exigente, nesse momento, com o PITU. É o processo de desenvolvimento de uma ferramenta que, sozinha, não vai dar todas as soluções. Devemos investir em seu aperfeiçoamento, sabendo que embora não vá fornecer resposta a tudo, representa um grande esforço na direção do planejamento estratégico numa metrópole como São Paulo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário