terça-feira, 7 de maio de 2019

Viver entre sonâmbulos, FSP João Pereira Coutinho


Na cultura popular, a Segunda Guerra Mundial é sucesso de bilheteria. Se olharmos bem para o conflito, encontramos dois inimigos dignos de filme (Hitler e Churchill); duas superpotências rivais operando do mesmo lado (Estados Unidos e União Soviética); um genocídio sem comparação na história (o Holocausto); e duas bombas nucleares que foram usadas contra o Japão e que confrontaram a humanidade com a certeza da sua própria aniquilação. E, no entanto...
No entanto o conflito que define o século 20 não é a Segunda Guerra, mas a Primeira. Às vezes, nos meus momentos de ociosidade, pergunto o que teria sido da Europa e do mundo se o arquiduque Franz Ferdinand, putativo herdeiro do trono austro-húngaro, não tivesse sido assassinado em Sarajevo por Gavrilo Princip, um obscuro terrorista sérvio.
Ilustração
Angelo Abu/Folhapress
Nessa história alternativa, não teriam morrido 20 milhões de pessoas (civis e militares), não teriam desaparecido três impérios seculares (o russo, o austro-húngaro, o otomano).
E, abrindo um pouco mais o quadro, Lênin não teria chegado ao poder e Hitler não teria explorado, com sucesso, o ressentimento alemão contra o Tratado de Versalhes.
A história alternativa vale o que vale. Em 1914, Franz Ferdinand foi mesmo assassinado —e o sistema de alianças que se tinha formado na Europa (com a Alemanha, a Áustria-Hungria e a Itália de um lado; a França, o Reino Unido e a Rússia do outro) entrou em funcionamento. E como se chegou até ao abismo?
Existem milhares de livros que procuram explicar as causas da guerra. Sugiro apenas um: "Os Sonâmbulos", de Christopher Clark. É um título perfeito para traduzir o estado de não consciência com que as nações europeias se entregaram ao massacre.
Pensei em Christopher Clark quando assistia ao segundo longa de László Nemes, "Entardecer", em cartaz no Brasil.
Fiquei cliente do diretor húngaro com "O Filho de Saul", o melhor filme que conheço sobre o Holocausto. É a história de um Sonderkommando —um ajudante-prisioneiro dos nazistas nos campos de extermínio— que, no meio do horror, procura um rabino para que possa enterrar condignamente o seu filho.
A câmera de Nemes, sempre colada ao rosto e aos movimentos de Saul (assombroso Géza Röhrig), era tão concentracionária como o espaço infernal em que o personagem se movia.
Exceto na sequência final —uma das mais belas do cinema europeu contemporâneo—, em que há pela primeira vez distanciamento, libertação e espaço.
"Entardecer" obedece ao mesmo dispositivo formal, recuando no tempo histórico. Estamos em 1913, em Budapeste. Irisz Leiter (Juli Jakab) regressa à cidade depois de uma longa ausência para procurar emprego na loja de chapéus que já foi dos seus pais.
Mas Irisz quer mais do que um emprego; ela deseja saber o que se passou com os progenitores (que morreram em circunstâncias obscuras) e, no processo, encontrar um irmão ainda vivo.
"Entardecer" é a história dessa busca permanente, obsessiva, destrutiva. Mas Nemes utiliza as demandas de Irisz como pretexto para algo mais ambicioso.
Nas suas memórias sobre as vésperas da Primeira Guerra, o escritor Stefan Zweig comentava: é mais fácil reconstituir os fatos que deram início ao conflito do que o "estado de alma" que se vivia na Europa.
O filme de Nemes é essa tentativa admirável de captar o que é volátil e intangível —um "estado de alma" histórico. Para isso, ele recria uma atmosfera ameaçadora, violenta, opressiva, povoada por seres que falam e atuam nesse estado de sonambulismo de que falava Christopher Clark.
Mas o livro de Clark não empresta apenas o seu título ao torpor histérico de "Entardecer". Em entrevistas várias, László Nemes parece reproduzir o que Christopher Clark escreveu na sua obra: o universo de 1914 voltou a estar bastante próximo de nós.
Durante a Guerra Fria, a estabilidade de um mundo bipolar transformou os personagens que fizeram a Grande Guerra em seres anacrônicos, irreais, vindos de outro planeta.
Pois bem: com a anarquia reinante que a queda do Muro de Berlim proporcionou, libertando forças que os dois blocos ideológicos tinham mantido sob controlo, estamos de volta a 1914.
Com elites distantes; massas revoltosas; terroristas imprevisíveis; e uma espécie de irracionalismo político que é transversal a todas as famílias ideológicas.


João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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