O desemprego é uma experiência tão traumática que tende a deformar a percepção das pessoas sobre tudo quanto diz respeito ao tema. Especialmente num momento histórico, como o de agora, em que a própria relação de trabalho, tal como se conhece, está em forte mutação.
Uma dessas deformações, observa o especialista em Economia do Trabalho Hélio Zylberstajn, em artigo recente no jornal Valor Econômico, é a de que a sociedade tende a tratar o emprego com uma visão maniqueísta. É a que vê tudo apenas em branco e preto, incapaz de considerar os inevitáveis tons de cinza. Emprego bom só é aquele que proporciona carteira de trabalho assinada, com todos os direitos trabalhistas a ela associados como férias, 13.° salário, plano de saúde, etc. Outras formas de ocupação, como o trabalho terceirizado, ocupações por conta própria e prestações de serviços temporários são todas, empurradas para dentro do mesmo balaio, o do trabalho precário.
E, no entanto, 11,1 milhões de trabalhadores brasileiros não têm emprego com carteira assinada (estão no trabalho informal) e operam como autônomos, prestadores de serviços intermitentes ou sazonais. As novas tecnologias e o uso crescente de aplicativos vêm criando novas ocupações, que dispensam contrato com um empregador. É o caso dos motoristas do Uber, do 99 e do Cabify; das locações proporcionadas pelo Airbnb; dos motoqueiros do iFood e de grande variedade de prestações de serviços, como os de cuidadores de idosos, enfermeiros particulares, personal trainers, passeadores de cães e maridos de aluguel.
Em algumas localidades, as autoridades vêm tentando enquadrar as novas ocupações a um vínculo qualquer de emprego, mais como forma de salvar do desaparecimento algumas atividades tradicionais, como a dos taxistas ou a da rede hoteleira de baixo custo, do que de proporcionar proteção trabalhista adequada a esses novos profissionais. Mas a grande proliferação dessas novas atividades tende a atropelar iniciativas desse tipo. Como observa outro especialista da área, o professor da Universidade de São Paulo José Pastore, “se hoje são 25% os que vivem do trabalho flexível, dentro de dez anos, ou menos, serão 50%”.
Muitas vezes, os trabalhadores tiram seu sustento de ocupações fragmentadas, de grande mobilidade de locais e tipos de serviços, de maneira que é praticamente impossível determinar. Como atesta Pastore com base em pesquisa recente, essas não são apenas novidades impostas pela vida moderna, digamos assim, mas aspiradas por pelo menos 55% dos jovens brasileiros. Estes preferem trabalhar por conta própria e, assim, abrir mão dos direitos trabalhistas do que se sujeitar a horários fixos e às regras impostas por um contrato de trabalho padrão.
É uma realidade que se sobrepõe a outra aspiração crescente entre a população de baixa e média rendas, que é a de deixar de procurar um emprego convencional e tomar a iniciativa de exercer certo tipo de empreendedorismo.
Essa não é uma tendência apenas brasileira. No mundo inteiro, a tecnologia da informação, a automação e as novas arrumações do sistema de produção estão produzindo transformações importantes nas relações de trabalho.
As consequências são de enorme importância econômica, política e social. Os sindicatos e os acordos coletivos, por exemplo, saem enfraquecidos, até mesmo porque já não dispõem nem dos portões nem dos chãos de fábrica para mobilizar a companheirada. O financiamento dos sistemas de previdência baseados na contribuição do empregado e do empregador tende a definhar, as leis e as regras de proteção ao trabalhador estão sendo fortemente questionadas.
Diante disso, a atitude prevalecente até aqui de denunciar a “precarização” do trabalho sob o olhar conivente ou omisso das autoridades não leva a lugar nenhum, porque ignora o fenômeno mais poderoso, que é a irreversível transformação das relações de trabalho no mundo inteiro.
O que precisa ser feito é, em primeiro lugar, aceitar as mudanças e, em segundo, ajustar as leis trabalhistas e as demais instituições de proteção do emprego a essa nova realidade, de maneira a assegurar não propriamente o emprego tal como conhecido, mas ocupação à população.
Também não dá para ignorar todo o sistema de ensino de treinamento. A escola não pode mais se limitar a formar mão de obra para o exercício de ocupações convencionais do mercado de trabalho. Têm de dar acesso à tecnologia de ponta e, mais do que tudo, têm de ensinar a aprender.
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