Leandro Karnal, O Estado de S. Paulo
08 de maio de 2019 | 02h00
A educação formal obrigatória, universal, em escolas, é uma novidade histórica. Até meados do século 20, estudar até o fim do segundo ciclo era um luxo reservado às elites e a parte da classe média. A maioria da população seguia com rudimentos de escrita e algumas operações matemáticas básicas, quando não completamente analfabeta.
Os motivos para tal situação eram muitos. Um deles era decorrente da visão que a sociedade tinha a respeito de lugares determinados para todos. Filho de sapateiro, sapateiro será. Filho de agricultor lavrará a terra. Filhos de classe média e alta poderiam ser o que quisessem ou herdariam o negócio dos pais. Por isso, precisavam de estudo. Quando o Brasil não tinha universidades, nossas elites mandavam os filhos para Portugal ou França. Quando não havia boas escolas, contratavam preceptores e tutores para seus rebentos.
A universalização do ensino básico atravessou a história do Brasil recente como uma conquista e como uma pedra nos sapatos do nosso país. Estamos mais próximos do que nunca de termos todas as nossas crianças em escolas (na média, há entre 90% e 98% de crianças e adolescentes em instituições, variando entre creches e Ensino Médio), mas elas não frequentam, necessariamente, um ensino de qualidade, como preconiza a Constituição em vigor. As discrepâncias são imensas. Há colégios públicos excelentes, bem geridos, com estrutura adequada e professores dedicados. Há escolas particulares medíocres, sem o mínimo projeto para os alunos e com professores malformados. Entretanto, na média, os problemas se concentram no ensino público. Ainda somos uma sociedade com muita desigualdade.
Em meio a conquistas e retrocessos, discutimos hoje o ensino em casa. Isso já foi realidade por aqui e em outros lugares do mundo. Reis e rainhas, nobres e parte da elite europeia jamais viveram outra forma de ensino. Grandes gênios e pessoas muito eruditas estudaram assim. Em si, aprender em casa pode garantir excelência educacional. O potencial problema desse tipo de ensino não é esse, necessariamente.
Para entendermos, precisamos pensar historicamente. Um dos aspectos tem a ver com o fortalecimento do Estado entre o século 19 e o 20, bem como com sua crise nos dias atuais. Quanto mais forte o Estado se tornou como instituição de regulamentação de nossas vidas, menos importância família e igrejas passaram a ter. Famílias participavam ativamente da escolha dos noivos e noivas. O casamento assegurava herdeiros, a igreja oficializava as uniões. Quando o Estado passou a ser o intermediário e as sensibilidades liberais do 19 afloraram, junto com uma maior produção de riquezas, casamentos passaram a se dar por escolha dos cônjuges, por amor. Casar e se divorciar se tornaram coisas mais corriqueiras. A família é menos importante, para o indivíduo moderno, do que o Estado. Precisamos de empréstimos, recorremos a bancos (regulamentados pelo Estado) e não mais aos pais; precisamos de saúde, vamos a hospitais (e não mais ao membro mais experiente da família) e assim por diante. Logo, educar seguiu esse caminho. Saiu da esfera da casa para ir para esfera da cidadania, dos valores da sociedade e das novas concepções pedagógicas, regulamentadas em escolas por leis federais.
A rigor, a lei não proíbe o ensino em casa. O STF já disse que a prática não pode ser feita, pois carece de regulamentação. Sem leis que regulem a prática, como auferir se o ensino funciona ou não?
Educar os filhos em casa deveria, ser, a rigor, um direito de cidadania. Sou a favor da regulamentação. Há obstáculos práticos. Raramente, pais têm o preparo profissional. Não se trata apenas do conteúdo, porém da técnica em si. Um adulto alfabetizado ensina bem uma criança? Nem sempre, pois há métodos e debates sobre seus usos. Se quisermos uma comparação rápida e com certa fidelidade, você também deveria ter o direito de curar as doenças do seu filho em casa. Por que médicos? Talvez pelo mesmo motivo de existir professores. Você se sente seguro para prescrever a dosagem do remédio? Então, com certeza, estará apto a optar entre o método fônico de alfabetização ou três ou quatro variantes do processo de letramento.
Sim, deveria ser garantido o direito dos pais para o homeschooling. Mas eu queria enfatizar que os pais assumissem com plenitude o direito constitucional, do código civil e do estatuto da criança e do adolescente que indicam, com total clareza, que a educação é um dever dos pais. É muito complexo educar em casa, todavia imprescindível que os pais façam parte da responsabilidade parental na escola. Que sejam menos pais síndicos ou capatazes e mais pais participantes do desafio social de educar.
Por fim: crianças educadas em casa perdem a chance do convívio com a diferença e são menos expostas – potencialmente – a pontos de vista conflitantes. Se não enfrentam conflitos, são menos resilientes e com tendência para fragilidade de um sistema imunológico nunca exposto a micro-organismos diversos. Se correr tudo bem, se a família tiver dinheiro para bons preceptores, para complementar com viagens, museus, para estimular o convívio dos filhos com outras crianças em parques e praças de esportes, na outra ponta teremos o mesmo resultado alquímico da escola: talvez um bom cidadão, alguém preparado para os desafios de nosso século e o constante aprender que nos exige. E, no entanto, se funcionar mal, teremos especialistas nas opiniões caseiras, fechados ao mundo. Há risco de reforçar o surgimento de crianças mimadas na sua zona de conforto, pouco aptas ao mundo de diversidades e desafios. Seu filho viverá com você para sempre ou , um dia, terá vida própria? Elizabeth, rainha da Inglaterra, foi educada em casa. Educou os filhos em escolas. O modelo perpetuou-se nas gerações seguintes da família real britânica. Por que será? Boa semana para todos nós.
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