Debate sobre o lado irracional da ambição ocorreu após sessão do filme 'Vice'
O que leva alguém a se manter no poder a todo custo? Segundo a psicanálise, são traços presentes em todos nós e identificados com o lado psicótico da personalidade: a arrogância, a sensação de onipotência e a negação da realidade.
A constatação é do psicanalista Júlio Gheller, em debate promovido pela Folha na quarta-feira (22), em conjunto com a Sociedade Brasileira de Psicanálise em São Paulo (SBPSP) e o MIS (Museu da Imagem e do Som). O mote para discutir o poder foi a exibição do filme “Vice”, que mostra a ascensão agressiva e silenciosa de Dick Cheney.
Vice-presidente na gestão George W. Bush (2001-2009), Cheney se destacou ao se apropriar de funções importantes no governo americano, como presidir a comissão de orçamento, decidir políticas de segurança nacional e incentivar a guerra contra o Iraque. Ele é considerado o vice-presidente mais poderoso da história dos EUA.
O filme joga luz sobre o lado instintivo e irracional da busca por poder; não à toa, seu título em inglês também significa vício. Incentivado por sua esposa, Lynne, e por seu mentor, Donald Rumsfeld, Cheney (interpretado por Christian Bale) transforma sua ambição frustrada de tornar-se presidente em um narcisismo manipulador e inescrupuloso.
“A embriaguez do poder apresenta essa fruição de um gozo, a obtenção de prazer à revelia das interdições”, disse Gheller. “É um camarada que não reconhece erros, não admite que causa danos, não sente culpa. Se ele não sente culpa, não tem a capacidade de reparar seus danos.”
A psicanalista Luciana Saddi, que mediou o debate, apontou que Cheney — como muitos políticos — exagera no amor-próprio, e que a sociedade beneficia esse narcisismo. “O que a gente vê, em geral, são pessoas muito loucas no poder”, disse. “Você não está preocupado com o sofrimento alheio, mas em perder o poder. São duas preocupações muito diferentes.”
Para Luciana Coelho, editora da Folha que cobriu a reeleição de George W. Bush, ainda que o sistema político tenha se sofisticado e esteja munido de contrapesos nos últimos séculos, os instintos que movem as pessoas no exercício do poder permanecem os mesmos. Episódios como a ofensiva de Donald Trump contra o senador John McCain (1936-2018) mostrariam que a dinâmica violenta na política deixou de ser física e tornou-se simbólica.
“Os assassinatos de caráter continuam acontecendo”, disse Coelho. “Não é mais aceitável decapitar alguém. Mas no sentido figurado, não é tão diferente assim.”
A jornalista também apontou que o impacto de Cheney na política americana e mundial não esmaeceu. Foi o vice-presidente quem propôs uma dissonância cognitiva na maneira de descrever os problemas que incomodam o governante moderno: dizer “mudança climática” em vez de “aquecimento global”, “interrogatório aperfeiçoado” em vez de “tortura”, “inimigo” em vez de “prisioneiro de guerra”.
Essa estratégia de suspensão de crenças é amplamente usada por líderes populistas hoje por meio das chamadas guerras culturais. “Como você ganha o apoio popular? Você usa a cultura. Você começa a se distanciar, a se diferenciar. Você coloca o outro como diferente de você, cria inimigos”, afirmou Coelho.
No filme, vemos a sede de poder de Dick Cheney ultrapassar o seu período na Casa Branca. Após deixar o cargo, o vice abre mão da relação com a sua caçula Mary, que é lésbica, para incentivar sua filha mais velha, Liz, a discursar contra o casamento gay e assim ganhar viabilidade política como candidata nos estados mais conservadores dos EUA.
“O interesse pessoal dele é o poder. É deixar um legado, é mudar a lei, é entrar para a história. Ele já tinha ganho dinheiro o suficiente quando fez aquilo”, frisou Luciana Coelho.
A sessão de “Vice” faz parte do Ciclo de Cinema e Psicanálise, organizado pela Folha em parceria com o MIS e a SBPSP. O tema que norteia a seleção de filmes é o ensaio “O Mal-Estar na Civilização”, de Freud (1856-1939). A próxima exibição será de “Infiltrado na Klan”, dirigido por Spike Lee, no dia 11 de junho (terça-feira), às 19h.
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