segunda-feira, 2 de junho de 2025

Ruy Castro - Caixões ao relento, FSP

 É como se os fantasmas de Federico Fellini, Marcello Mastroianni e Anita Ekberg tivessem sido despejados de seu habitat —Fellini, o cineasta, com suas câmeras; Marcello, o jornalista, com seu caderninho de telefones das maiores mulheres da Europa; e Anita, a deusa descalça, de preto longo e busto continental. O cenário é o Café de Paris, em Roma, território de "A Doce Vida", o filme com que Fellini parou o mundo em 1960 —o Vaticano tentou proibi-lo, os liberais o defenderam, e todo mundo quis vê-lo para conferir. Mas há muito não há mais a doce vida. Não aquela que Fellini mostrou.

O Café de Paris, ao lado da embaixada americana e em frente ao Hotel Excelsior, na Via Veneto, está fechado há anos. Mas seu cadáver nunca foi sepultado. A fachada ainda conserva o logotipo original e quem espiar pela grade de ferro lavrado verá o hall de entrada e parte do bar. Pensará ouvir a música de Nino Rota feita para o filme e ver relances de Anouk AiméeMagali Noël e Nadia Gray, as outras grandes mulheres em cena, com seus ombros nus e narizes petulantes. Tudo miragem, claro.

É intrigante como um endereço com essa história fique tão abandonado —no Brasil, já teria se tornado um supermercado ou igreja evangélica. Talvez os que pudessem explorá-lo vejam nele uma caveira de burro, um ponto que não dá sorte. Ou um lugar condenado por tudo o que seus frequentadores supostamente aprontaram em 1001 noites dos anos 1950 —um turbilhão de conquistas, champanhe, cocaína, talvez até conspirações mafiosas.

Na verdade, nem a mítica Via Veneto existe mais. Seus últimos redutos boêmios, mesmo os com mesas na calçada, fecham cedo. À meia-noite, a rua está vazia. O Café de Paris é só um dos caixões ao relento.

E se nada ali jamais tiver existido? A Via Veneto de "A Doce Vida", por mais realista, era um cenário de estúdio, construída em Cinecittá. Talvez tudo o que se pensava ter acontecido nela fosse uma ilusão coletiva, induzida por Fellini para que, um dia, ele fizesse dela um filme.

Muniz Sodré - Um berçário de arapongas, FSP

 Fato espantoso: enquanto o filme "O Agente Secreto" fazia sucesso em Cannes, a Polícia Federal desmontava uma rede de espionagem russa no país. O choque deve-se à raridade do fato entre nós. Mas persiste na memória coletiva o caso vexaminoso dos nove chineses que, três dias após o golpe de 64, foram presos como espiões, supostamente armados com agulhas envenenadas, prontos para atacarem não se sabia o quê (eram agulhas de acupuntura). Torturados, condenados a dez anos de prisão, confirmou-se depois que eram uma delegação comercial de algodão. Um escândalo diplomático, fiasco dantesco, prenúncio das violências da ditadura.

A imagem apresenta seis retratos em preto e branco dispostos em uma grade de duas linhas e três colunas. Cada retrato mostra uma pessoa com expressão neutra, olhando diretamente para a câmera. As pessoas têm diferentes características faciais e estilos de cabelo, e estão vestindo roupas variadas. O fundo é liso e claro, destacando os rostos das pessoas.
Espiões russos, da esq. para a dir., na parte de cima: Iekaterina Leonidovna Danilova, Vladimir Aleksandrovitch Danilov, e Aleksandr Andreyevitch Utekhin, na parte de baixo: Olga Igorevna Tiutereva, Irina Alekseievna Antonova e Roman Olegovitch Koval - The New York Times /NYT

Agora, porém, se trata da Polícia Federal, a mesma que desbaratou a trama golpista de Bolsonaro e tem granjeado respeito social, até com elogios do "Times". Cabe perguntar, aliás, por que não tomar como modelo de polícia o da federal, em que inteligência parece ter se sobreposto à violência pura e simples. Foi precisamente a contrainteligência federal que descobriu os espiões adormecidos.

Novelas de espionagem como "O Agente Secreto", de Joseph Konrad, e "O Homem que foi Quinta-Feira", de G.K. Chesterton, são boa literatura alegórica. Mas o caso desses russos é parente folhetinesco mais próximo de thrillers como a série "Os Americanos", uma das melhores programações televisivas deste século, que dramatiza um casal disfarçado para dirigir, em plena Guerra Fria, uma rede de espionagem da KGB nos EUA. São propriamente "moles" (toupeiras), isto é, infiltrados com identidades americanas e atividades clandestinas. Como toupeiras, entocam-se à espera de um chamado à ativa.

Extraordinário que pareça, esse é em linhas gerais o roteiro dos russos desentocados pelos federais. Questão intrigante é saber o que haveria para ser espionado num país sem alta relevância na geopolítica mundial, nos jogos de guerra ou na vanguarda tecnológica. A espionagem eletrônica dos americanos no gabinete de Dilma Rousseff visava a bisbilhotar conversas políticas. No passado, a obsessão de Jânio Quadros em invadir a Guiana produziu o factoide de que um submarino desembarcaria espiões na praia de Amaralina, em Salvador. Mas Jânio era uma extravagância republicana, assim como as suas venetas.

O russo Sergey Shumilov apontado pela Abin como espião se passando por diplomara em Brasília
O russo Serguei Chumilov, apontado como espião pela Abin, em uma palestra realizada por uma escola de idiomas - Reprodução

Agora os espiões são de carne e osso, real é o laço que os federais jogaram na cabeça de um deles, já que os outros se escafederam, não fossem treinados no tempo em que Putin era mestre-espião da KGB. O que queriam mesmo do Brasil? A resposta tem um lado lisonjeiro, outro desolador. Primeiro, a diversidade étnica faz do brasileiro cidadão universal em termos de aparência física e nomes próprios. Aqui, um leve sotaque não aponta ninguém como estrangeiro. Em segundo, a obtenção de documentos é bastante flexível, ainda mais com a facilitação corruptiva de cartórios do interior. Os russos tinham certidões de nascimento autênticas, datadas de muito tempo atrás.

Segredos vitais pertencem a potências nucleares, nada a se espionar entre nós, portanto. Mas um mestre do gênero, estilo John Le Carré, certamente aproveitaria esse imbróglio para um thriller tropical, algo como "os espiões que não espionavam". Senão, com essa facilidade de trampolim, poderíamos ser um berçário de arapongas. Reborn, daqui para o mundo.


A felicidade no Brasil: sorrindo de estômago vazio, - Victor Srougi, FSp

 Segundo dados da World Happiness Report 2025, da Universidade de Oxford (Reino Unido), o Brasil encontra-se hoje na 36ª posição no ranking de felicidade, entre 147 nações avaliadas, e à frente de países como Espanha, Itália e Japão.

A pesquisa avaliou parâmetros como liberdade de expressão, renda, desigualdade e estrutura social. Os dados revelaram que 87% dos brasileiros contam com suporte emocional em seu círculo próximo e 71% sentem emoções positivas em relação à vida. Notícia aparentemente auspiciosa, já que em 2024 estávamos na 44ª colocação e, em um ano, saltamos oito posições.

Um grupo de pessoas se diverte em uma festa ao ar livre. Algumas mulheres estão usando roupas com estampas de onça e acessórios brilhantes. Elas estão sorrindo e dançando, enquanto outras pessoas ao fundo também parecem estar se divertindo. O ambiente é festivo, com luzes e uma atmosfera alegre.
Foliões durante Carnaval de rua em São Paulo - Bruno Santos - 1º.mar.25/Folhapresss

Levando em conta o fuzuê social, político e econômico que prevalece atualmente no Brasil, não é fácil compreender nossa posição, superando inclusive nações mais desenvolvidas.

Pergunto-me, ressabiado, como pode prevalecer a felicidade no Brasil quando nossas autoridades, exultantes, anunciaram que, no ano passado, "a população na faixa da pobreza recuou de 67,7 milhões para 59 milhões", revelando que o que já era insuportável continuou indecente?

Como ser feliz se em 2024 viviam no Brasil cerca de 41 milhões de jovens e adultos analfabetos, verdadeiros ou funcionais, impossibilitados de usufruir da vida com altivez? Em 2024, o tempo médio de espera para a realização de cirurgias de câncer no SUS era de 188 dias, tempo suficiente para acabar com a alegria e a existência de muitos brasileiros.

Como podem usufruir da felicidade os 9,5 milhões de miseráveis que, abandonados, insistem em sobreviver —acordam a cada dia, subjugados pela fome, intempéries, violência e ignorados por aqueles que seguidamente lhes prometem proteção?

Mas talvez haja uma explicação para a posição do Brasil no ranking da felicidade. Um estudo científico iniciado em 1938, na Universidade Harvard (EUA), acompanhou mais de 700 homens com o objetivo de avaliar, entre outros parâmetros, o desenvolvimento da saúde mental e emocional ao longo da vida. Trata-se do estudo mais longo já realizado, que continua até os dias de hoje, já na terceira geração de participantes.

Na população avaliada incluem-se figuras notáveis, como John F. Kennedy, mas também homens profissionalmente frustrados e que se tornaram dependentes químicos. Os dados coletados geraram alguns livros e dezenas de artigos científicos. Uma das avaliações apontou que os indivíduos mais felizes na vida madura eram aqueles cuja infância envolveu grande suporte familiar, com boa relação conjugal e que contavam com uma rede solidária de amigos para os momentos tempestuosos.

A capacidade de reagir positivamente às adversidades e ter a saúde mais preservada também prenunciaram maior felicidade. Ao contrário do esperado, Q.I., desempenho na vida profissional, dinheiro e fama não se relacionaram com o grau de felicidade. George Vaillant, psiquiatra e terceiro diretor do estudo, enfatiza em seu livro "Thriumphs of Experience: The men of the Harvard Grant Study" que o mais importante para usufruirmos da plena existência é a qualidade da relação com as pessoas a sua volta.

Notícia boa. Grande parte da felicidade depende de nós, basta cuidar e ser bom com o próximo. Portanto, cultive diligentemente a relação com aquele que você divide o lençol, que está no cômodo ao lado, nos andares abaixo ou do outro lado da linha. O brasileiro sustenta a fama de ser positivista e afetuoso. Em calor humano, somos bons. Imagine se fôssemos governados por políticos decentes, menos atentos ao próprio umbigo e mais preocupados com o seu entorno? Ninguém seria páreo.

Enquanto nossos governantes não fazem o melhor que podem, os brasileiros alegremente seguem em frente, não sei bem se numa resiliência estoica ou cegueira hipócrita. As dicas de Vaillant, no mínimo, nos fazem mais felizes. Mas, talvez, se o descontentamento aflorasse, pleitearíamos por posições mais altas no ranking da felicidade.

Será que não estamos dormindo no ponto? Temo que despertemos muito tarde. Chico Buarque já dizia: "Dormia a nossa pátria mãe tão distraída, sem perceber que era subtraída, em tenebrosas transações. O estandarte do sanatório geral vai passar".