Por Luciana Lima
A chuva havia dado uma trégua em Araraquara, interior paulista. Dez dias antes, as águas tinham levado parte da Avenida 36, importante via da cidade. Choveu, em seis horas, o que era previsto para três dias. O imenso buraco que se formou com a força do Ribeirão das Cruzes engoliu carros e vidas. Das 16 vítimas, seis pessoas da mesma família morreram após caírem na gigantesca fenda. A tragédia motivava a primeira viagem do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), após a posse, em Brasília, no dia 1º de janeiro. Eram quase 15 horas de domingo, 8 de janeiro, quando Lula e o prefeito da cidade, Edinho Silva (PT), chegavam à beira do precipício.
O fotógrafo Ricardo Stuckert, o secretário de imprensa, José Chrispiniano, além dos ministros do Trabalho, Luiz Marinho (PT-SP); das Cidades, Jader Filho (MDB-PA); e da Integração e Desenvolvimento Regional, Waldez Góes (PDT-AP), acompanhavam o presidente. Jornalistas, políticos e agentes da Defesa Civil, o púlpito apinhado de microfones e gravadores, aguardavam a fala do presidente. Lula desceu do carro. A expressão em seu rosto era de consternação. Mesmo em momentos que exigem gravidade, Lula carrega em si um despojamento que, naquele instante, não estava ali. Havia um peso em sua caminhada até a borda da cratera, mãos nos bolsos. Edinho falava algo a seu lado, mas a cabeça do presidente estava claramente em outro lugar. Lula observou a destruição. Deu meia volta. Chrispiniano veio ao seu encontro e, ao que parece, deu sinal de que era hora de ir. Em silêncio, o presidente entrou no veículo que partiu rumo à prefeitura.
Poucos ali sabiam o motivo do recuo. Minutos antes, Stuckert avisara Lula que bolsonaristas tinham entrado no Congresso, em meio à arruaça verde-amarela na Esplanada dos Ministérios. Mas a notícia ainda não havia se espalhado pelo evento de Araraquara. Enquanto a tenda e os equipamentos de som eram recolhidos, auxiliares de Lula tiveram a primeira pista do que estava acontecendo. Do outro lado da rua, a turma com a camisa da Seleção interrompia os gritos de “Lula ladrão” para comemorar: “Entramos no Congresso!”. Apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) mostravam entre si as primeiras imagens geradas em Brasília.
Lula só soube que os invasores entraram no Palácio do Planalto e no Supremo Tribunal Federal (STF) quando chegou à prefeitura. Foi aí que o gabinete do prefeito se transformou num gabinete de crise. A primeira-dama, Rosângela da Silva, a Janja, também se juntou ao grupo e ficou nervosa quando recebeu, pelo celular, as imagens de sua sala no Planalto, totalmente destruída. Ela conversou por telefone com membros de sua equipe. Alguns, tossindo com a fumaça das bombas detonadas dentro do prédio, confirmaram a destruição. Lula ainda perguntou: “Entraram no gabinete? Entraram na minha sala?”. E foi nessa ligação que o presidente soube que o vidro blindado que separa seu gabinete dos demais cômodos do Planalto havia resistido. A segurança também havia montado barricadas com móveis quebrados para barrar a invasão.
Cadê o Ibaneis?
Entre a entrada, em petit comité, no gabinete de Araraquara e a entrevista concedida por Lula, na qual anunciou a intervenção federal na área da segurança do Distrito Federal, passaram-se duas horas. Foi o tempo necessário para que as medidas iniciais de contenção fossem tomadas. A primeira providência de Lula foi ligar para os presidentes das duas casas legislativas. Conseguiu falar com o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que estava em sua casa, em Maceió. Lira já havia sido informado do ataque e estava irado por não conseguir ser atendido pelo governador do Distrito Federal, hoje afastado, Ibaneis Rocha (MDB). Lira passou a tratar com a vice, Celina Leão, sua colega de partido. Apesar de muito tensa, Celina se esforçava para conseguir informações da polícia e responder às cobranças das autoridades federais. A omissão de Ibaneis irritou outra chefe de poder. Naquela tarde, a presidente do STF, Rosa Weber, também tentou contato, mas ele não atendeu.
A fúria de Lira naquela tarde também se estendia ao então secretário de Segurança do Distrito Federal, Anderson Torres, que antecipou suas férias em viagem para Flórida, nos Estados Unidos, para onde Jair Bolsonaro, seu antigo chefe, viajara antes da conclusão do mandato. Curiosamente, o único que conseguiu falar com Ibaneis foi Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que ainda estava em uma viagem à Paris. Pacheco chegou a postar que havia realizado o contato em suas redes sociais — talvez sem imaginar que, àquela altura, tratava-se de um grande feito.
Lula tratou com o vice do Senado, Veneziano Vital do Rêgo (MDB-PB), que havia assumido as funções nas férias do titular. Também falou com a presidente do STF, ministra Rosa Weber. Em 15 minutos, o presidente havia “trazido o Estado brasileiro para seu lado”. “Ele foi gigante”, diz um interlocutor que esteve ao lado do presidente. Lula esteve o tempo todo pensativo, como se calculando, medindo as consequências de cada passo que daria dali em diante. Seu rosto transpirava tensão. Foi depois de um telefonema a Alexandre de Moraes, ministro do STF, que Lula decidiu qual seria a reação. “Vai ser por intervenção federal”, disse aos presentes na sala, descartando conselhos anteriores para que baixasse uma medida de Garantia da Lei e da Ordem (GLO).
A sisudez na avenida de Araraquara era pelo pressentimento de uma tentativa de golpe. Lula desconfiava que não poderia contar com militares naquele momento. O sumiço do governador e do secretário Anderson Torres corroborava com a tese golpista. Se Lula obteve, de imediato, garantias dos chefes dos Poderes da República, sabia que não poderia ter plena confiança no comando da tropa — sequer em relação à guarda do Planalto, onde remanescentes da era do general Augusto Heleno, o chefe do GSI de Bolsonaro, ainda davam expediente. Naquele fim de semana, o GSI estava em transição. O entrante e fiel general Marco Edson Gonçalves Dias ainda se ocupava de uma verdadeira desinfecção do gabinete, analisava quadro a quadro, embora muitos já tivessem sido exonerados no dia 2 de janeiro.
Lula deixou essa preocupação mais clara depois, em conversas com jornalistas, na quinta-feira (12/1): “Teve muita gente conivente. É importante saber que teve muita gente da Polícia Militar conivente. Teve muita gente das Forças Armadas, aqui dentro, conivente. Eu estou convencido de que a porta do Palácio do Planalto foi aberta para que gente entrasse. Porque não tem porta quebrada na porta de entrada.”
Até domingo, parte do governo, inclusive o ministro da Justiça, Flávio Dino (PSB-MA), ainda confiava que o modelo integrado de segurança funcionaria para conter protestos, da mesma forma que funcionou na posse de Lula. Nem se cogitava uma mudança de planos. Tampouco a inércia do Batalhão Duque de Caxias, que, sob o comando certo, teria condições de armar a proteção do palácio em 8 minutos, mas sequer recebeu essa ordem antes da entrada dos terroristas. Ou a complacência da Polícia Militar do Distrito Federal. “Recebi mensagem às 13h31 do domingo dizendo que estava tudo tranquilo. O ministro José Múcio foi ao quartel general e teve a mesma informação”, diz Dino em entrevista ao Brasil 247.
Secretário de Acesso à Justiça, órgão do Ministério da Justiça e Segurança Pública, Marivaldo Pereira passou o sábado de prontidão. Militante de esquerda, líder partidário, ativista e negro, Pereira já esteve diversas vezes na Esplanada, como servidor ou cidadão. Jamais viu uma atuação tão “mansa” da polícia candanga em reação a protestos quanto a que viu no domingo. “A PM sempre foi muito eficaz nas suas ações. Seja em momentos de confronto ou para evitar esses momentos, às vezes até com força demais.” Mais tarde, Pereira chegou a acompanhar a prisão de alguns terroristas no dia 8, a quem classificou de “lunáticos”. Os bolsonaristas batiam continência aos policiais, entoavam gritos golpistas e, em alguns casos, choravam para os agentes que eles, os que encamparam uma tentativa de golpe de Estado, tentavam “salvar o país”.
Após duas horas trancafiado no gabinete de Edinho, Lula concedeu a esperada entrevista. O presidente leu o decreto de intervenção na segurança do DF e nomeou o interventor Ricardo Garcia Cappelli, ligado a Dino. O presidente ainda prometeu: “Essa gente terá que ser punida e nós vamos descobrir quem são os financiadores desses vândalos”. O documento lido por Lula tinha sido redigido em Brasília, por Dino. O texto foi enviado por WhatsApp para Lula assinar. Lula ainda teve dúvidas de como assinar e protocolar o documento e acabou acatando a solução apontada pelo ministro: mandou imprimir o documento, assinou, uma foto foi enviada de volta para o celular do ministro. “A gente ia numerar o decreto onde?”, contou Dino. O maranhense, que havia observado pela sua janela no Palácio da Justiça o baixo efetivo empregado pela PM na contenção do protesto e assistido pela vidraça a tomada do Congresso, pegou o documento, entregou ao interventor e ordenou: “Desça lá e assuma o comando. Quem mandou foi o presidente de República. Está aqui o decreto”. E assim foi feito. Enquanto Cappelli seguia as ordens, Lula anunciava a intervenção em transmissão feita pelo YouTube, com links distribuídos aos jornalistas de todo o país.
Ao fim da entrevista, Lula não ficou nem mais 10 minutos na prefeitura. Lula queria pôr os pés no Palácio do Planalto no mesmo dia dos ataques. A Polícia Federal precisou se apressar para uma varredura em meio aos escombros para garantir a segurança do presidente. A decisão de Lula de voltar imediatamente também contrariou alguns conselhos recebidos durante a tarde para que ele, por segurança, evitasse retornar à capital federal. Lula chegou ao Planalto à noite, percorreu os quatro andares e ainda atravessou a Praça do Três Poderes para se encontrar com Rosa Weber e os demais ministros do STF e verificar os estragos no plenário da Corte.
Choro contido
O choro da fotógrafa Rafaela Felicciano, do portal Metrópoles, só aconteceu na terça-feira (10/1). Foi acometida de um vórtice de emoções que a pegou desprevenida, bem no meio do discurso do ministro Alexandre de Moraes na posse do novo diretor da Polícia Federal, Andrei Rodrigues. Com as lentes apontadas para a primeira fala pública de Moraes depois da invasão dos palácios, Rafa, como é conhecida pelos colegas, teve o foco dificultado pelas lágrimas. “Sabe quando vem tudo?”, explicou ao Meio.
Ela foi uma entre vários jornalistas que apanharam, tiveram equipamentos levados, cartão de memória com registro do dia roubados pela turba bolsonarista. Na quinta-feira (12/1), o Sindicato dos Jornalistas do DF, que abriu um canal para denúncias de ataques, já contabilizava 16 casos graves. A secretaria de Comunicação da Presidência da República (Secom), comandada pelo ministro Paulo Pimenta, também chamou os profissionais para serem ouvidos. O ministro pediu, por meio de ofício, que a polícia abrisse uma exceção para ouvir os profissionais em um local que não fosse as delegacias do Distrito Federal e foi atendido. Isso porque os profissionais conhecem a realidade da polícia de Brasília e sabem do apoio e da devoção dos policiais ao ex-presidente Bolsonaro. O receio de um tratamento hostil foi a tônica nos relatos ouvidos pela Secom. Diante disso, a sede do sindicato passou a ser o local dos relatos.
O trauma de Rafaela vem daquele plantão de domingo, quando ela partiu para a Esplanada para fotografar mais uma das inúmeras manifestações que cobriu. Quando estava em frente ao gramado do Congresso, ela se viu cercada vários homens, sem poder se defender. Um deles segurou seu braço com força, perguntando para quem ela trabalhava. Ela relutou em dizer. Ele passou a gritar muito perto de seu rosto e apertar ainda mais seu braço. Rafaela ainda tentou ponderar, dizendo que trabalhava para o Metrópoles e que estava ali para registrar “o “momento histórico”, tentando não julgar a natureza golpista dos atos. “Eu não queria apanhar e tinha consciência de que estar ali era perigoso”, contou.
A argumentação não funcionou. O homem ergueu o braço, chamando outros comparsas para a intimidação. Em segundos, a fotógrafa estava cercada de 10 homens, cada um puxando de um lado. “Meu instinto de proteção fez com que eu me abaixasse um pouco e, nesse momento, eu senti um soco na barriga e alguém conseguiu tirar a minha máquina”, disse. “Eu me lembro do olhar que eu dei para o cara que estava na minha frente. Eu falei: vocês estão me roubando”. O apelo da repórter foi em vão. “Relaxa, depois a gente te devolve”, disse um dos agressores. Outro retirou o cartão de memória da máquina e desconfiou que ela tivesse outros com fotos tiradas anteriormente. Rafaela precisou abrir cada bolsinho do seu cinto de apetrechos de trabalho para mostrar que não havia mais nada. Os vândalos, então, roubaram seu celular e desapareceram.
“Quando consegui sair da Esplanada, eu não sentia mais nada. Não estava sentindo raiva, ódio, tristeza. Era como se meu cérebro tivesse se blindado de tudo. Na segunda, tirei uma folga. Na terça, me deram a pauta da posse do diretor geral da PF. Fui lá, bonitinha, fiz as primeiras falas. Aí, o Alexandre de Moraes começou a falar. Sabe quando vem tudo? Eu colocava a câmera na frente dos olhos, tentava enxugar as lágrimas e não conseguia. Quando ele falou que todo mundo vai ser punido, que a gente vai cobrar, que as instituições são mais do que prédios, são também pessoas, caí em prantos e entrei em uma crise de pânico. A mão tremia e eu não conseguia respirar. Eu não conseguia parar de chorar.” Agora, Rafaela diz ter voltado à sensação de não sentir nada. Mas admite espasmos de raiva. “Principalmente quando lembro que os caras estavam muito profissionais, organizados para isso. Eles pegaram a minha câmera e retiraram o cartão de memória. Nem todo mundo sabe mexer em câmeras profissionais.”
A Bela e a Fera
Estilhaços. Pó branco deixado pelas bombas de gás e extintores. Urina e fezes. O chão enlameado pelo golpismo começou a ser limpo na noite de domingo. Funcionários viraram a madrugada na faxina pesada até serem substituídos, pela manhã, por outro turno de trabalhadores. Na medida em que a Polícia Federal concluía a coleta de material para a perícia, fotografava e filmava, os cômodos e corredores eram liberados e chegava a turma da ordem, da higiene.
“Eu cortei a mão com vidro e a nossa garganta está ruim até hoje, porque a gente inalou muito produto. O que mais tinha era CO2 misturado com gás de pimenta”, disse Sunamita Priscila Lima, uma das primeiras a chegar. Havia urina e fezes sobre as mesas. A estratégia foi iniciar a limpeza pelo quarto andar e ir trazendo os entulhos e excrementos. “Eu chorei, não vou mentir”, disse Sunamita ao Meio. “O momento que me cortou o coração foi quando vi o relógio da Bela e a Fera todo destruído”, contou. É com referência ao conto de fadas que os funcionários do Planalto tratam o relógio de pêndulo do século XVIII e que foi presente da corte de Luiz XIV à família de Dom João VI. Fabricado pelo francês Balthazar Martinot, com design de André-Charles Boulle, o relógio foi trazido para o Brasil pela família real em 1808. Ele ficava no terceiro andar do Planalto, onde está localizado o gabinete presidencial. O valor é inestimável. Havia apenas duas peças em todo o mundo. O outro relógio está exposto no Palácio de Versalhes, na França.
Sunamita conta que nunca limpou o relógio. “Só duas meninas eram encarregadas de cuidar dele”, relatou. Na tarde do fatídico domingo, Sunamita começou a ver a destruição pela televisão, em sua casa, no Paranoá, uma das regiões administrativas mais populosas da capital federal, com forte presença de trabalhadores vindos das regiões Norte e Nordeste brasileiras. “Eu assistia e só pensava no momento que a gente ia se lascar para limpar aquilo tudo. Aqui a gente não tem frescura não. Se sujou, a gente está limpando. Eu só fiquei revoltada porque a gente trabalhou muito para deixar limpo aí para a posse. Aí, vem esse pessoal fazendo uma merda dessas. Eu tenho até vídeo que eu fiz quando a gente estava deixando tudo branquinho para a posse e os caras vêm e fazem isso? É muita sacanagem”, reclamou. “Para mim, isso é desprezar o serviço das outras pessoas. Não tem nada que foi feito ali que foi pelo bem da humanidade como eles gostam de dizer. Isso foi pelo bem deles. Não foi pelo bem dos pobres como eles estão falando.”
A mulher de 32 anos, que se especializou na operação de maquinário pesado de limpeza e jardinagem voltou a se emocionar durante a entrevista. “Pensar que você cuida de um lugar para os outros fazerem isso. Não tem quem não fica comovido com essa situação”, desabafou, limpando os olhos com as mãos. Ela prosseguiu com a voz embargada: “Fiquei foi com raiva. Não tem nada de patriotismo. Por qual pátria que esse povo está lutando? Isso aí sai tudo do nosso bolso”. E lembrou do próprio sacrifício para pagar uma TV em 12 vezes quando viu uma maior que a sua toda estilhaçada. “A gente luta tanto para ter as coisas...” Na tarde de sexta, Lula se reuniu com a equipe da limpeza, para agradecê-los pelo trabalho.
Um ano antes de dar expediente no Planalto, Sunamita era responsável por cuidar dos jardins do Palácio da Alvorada, residência oficial que abrigou a família Bolsonaro. Nessa atividade, ela chegou a ter contato com o casal, disse que gostava de Michelle, mas não ia com a cara do marido. Evangélica, ela diz que não acredita na sinceridade do lema repetido pelo ex-presidente. “A realidade é que as pessoas estão doentes. Foi isso que o presidente fez. Adoeceu a mente das pessoas. Endeusaram ele e se esqueceram de Deus. Não adianta ele falar que é Deus acima de tudo e de todos, se ele se pôs como um deus. Deus para mim só existe um e está no céu, longe da gente."
*Colaborou Olavo David