terça-feira, 2 de janeiro de 2018

Previdência, quatro soluções e um funeral - ALEXANDRE SCHWARTSMAN, FSP


FOLHA DE SP - 27/12

Há quatro soluções simples para a questão previdenciária no Brasil, as quais —como toda solução simples para um problema complexo estão inapelavelmente erradas.

Começo pela sugestão de transição do atual regime de repartição (em que a geração ativa transfere compulsoriamente recursos para a geração inativa sob a forma de contribuições) para um regime de capitalização (em que a geração ativa poupa recursos para usá-los durante sua própria aposentadoria).

Poderíamos, talvez, ter feito essa transição tempos atrás, quando a geração ativa era muito maior do que a inativa, mas esse bonde já passou. Considerando apenas o INSS, o pagamento de benefícios previdenciários chega a 8,5% do PIB, enquanto as contribuições atingem 5,7% do PIB.

Caso abríssemos mão das contribuições, mesmo que parcialmente, a falta de recursos para o pagamento dos benefícios se tornaria ainda maior, acelerando o endividamento público, precisamente o oposto do que precisamos.

Outra solução simples e errada é a ideia que a cobrança da dívida ativa (o número mágico é R$ 500 bilhões) resolveria o deficit do sistema.

Mesmo se deixarmos de lado que grande parte dessa dívida se refere a empresas falidas (e à cobrança de juros sobre elas), noto que os benefícios previdenciários do INSS se encontram na casa de R$ 550 bilhões/ano, ou seja, no improvável cenário de recuperação completa desse valor, ele não cobriria um ano do gasto e menos de três anos do deficit do INSS.

Na mesma linha, ainda se insiste na questão da aposentadoria dos políticos.

Em primeiro lugar, há 20 anos que políticos não mais se aposentam com apenas oito anos de mandato e a partir de 50 anos (ainda bem!), mas só depois de 35 anos de contribuição com idade mínima de 60 anos.

Em segundo lugar, mesmo que parássemos de pagar aos que se aposentaram sob regras diferentes, o valor é ínfimo perto do gasto previdenciário no país.

Em terceiro, a proposta de reforma unifica as regras para todos, inclusive políticos.

A quarta sugestão se refere à Desvinculação dos Recursos da União, a chamada DRU, que, segundo alguns, se extinta, eliminaria o deficit da Previdência.

À parte a DRU não incidir sobre as contribuições previdenciárias, não faz a menor diferença direcionarmos mais recursos à Previdência, uma vez que, com DRU ou sem DRU, todos os aposentados sob a responsabilidade do governo federal ainda recebem em dia seus proventos (já no caso dos Estados, nem sempre é assim), pois o dinheiro de outros tributos garante, por ora, tais pagamentos.

Por outro lado, revogar a DRU em nada ajuda a conter o crescimento dos gastos, resultantes da combinação de demografia e privilégios.

Já o funeral é o da lógica.

Em coluna publicada na sexta-feira (21), Nelson Barbosa aponta Portugal como um país que fez o ajuste fiscal sem "austericídio", presumivelmente em oposição ao que se tenta fazer no Brasil.

Como de hábito, faltou a Barbosa olhar os números: entre 2010 e 2016 o deficit público em Portugal caiu de 11,2% do PIB para 2,0% do PIB, com corte de despesas no período pouco inferior a 7% do PIB.

No Brasil, em contraste, propõe-se uma redução de 2,0-3,0% do PIB do deficit primário no mesmo horizonte, mas aqui, por alguma razão, esse ajuste muito mais gradual é considerado "austericídio".

Descanse em paz.

A reação patética dos clubes - EDITORIAL O ESTADÃO




ESTADÃO - 31/12

Confundindo prerrogativas funcionais com privilégios, juízes desprezam o fato de que penduricalhos são uma apropriação imoral de recursos dos contribuintes


Desde que o ministro Luiz Fux liberou para votação do plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) as liminares que concedeu em 2014, estendendo o auxílio-moradia a todos os juízes das Justiças federal, estaduais e trabalhista, a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) anunciaram que não medirão esforços para manter esse benefício, que hoje é de R$ 4,3 mil e não incide no cálculo do teto salarial do funcionalismo. Quando o Supremo retomar os trabalhos, em 2018, caberá aos ministros da Corte referendar ou não as decisões de Fux.

Em carta distribuída a seus filiados, a AMB afirmou que não aceitará “perdas salariais sob qualquer pretexto”, invocou a tese da “valorização da magistratura” para justificar o recebimento desse penduricalho e reivindicou, no caso de ele ser considerado inconstitucional pelo Supremo, a criação de outro benefício no mesmo valor do auxílio-moradia, a título de “valorização por tempo de serviço”. Também alegou que “não se curvará aos detratores da magistratura, especialmente à difamatória campanha lançada pela imprensa”. E defendeu, ainda, o anteprojeto da nova Lei Orgânica da Magistratura Nacional, que foi elaborado pelo Supremo na época em que foi presidido pelo ministro Ricardo Lewandowski. Entre outras concessões, o anteprojeto prevê o pagamento de até 17 salários, férias de 60 dias, multiplicação de verbas indenizatórias e até direito a passaporte diplomático.

Por seu lado, a Ajufe também denunciou uma “campanha orquestrada da mídia contra os direitos” dos juízes. Prometeu que lutará “até o fim” e no “limite de suas forças” para evitar que o Supremo considere inconstitucional o pagamento do auxílio-moradia. Além disso, anunciou a realização de um ato de protesto contra a extinção desse benefício em Brasília, no dia 1.º de fevereiro. Informou que, juntamente com a AMB, custeará a viagem de cem magistrados, “sem prejuízo de que outros venham de acordo com as possibilidades das associações regionais de juízes federais”. E ainda afirmou que não é justo que o auxílio-moradia dos juízes seja extinto, já que as demais carreiras jurídicas no Poder Público ganham verbas extras e não as levam em conta para efeito de cálculo do teto do funcionalismo. “Estão visando apenas os vencimentos da magistratura e esquecendo o de outras carreiras. Os honorários públicos (as verbas de sucumbência que recentemente passaram a ser concedidas aos membros da Advocacia-Geral da União – AGU) são um extrateto. É dinheiro que deveria ser direcionado aos cofres públicos. Por que não se discute isso?”, indaga o presidente da entidade, Roberto Veloso. Em mensagem de Natal enviada aos colegas de toga, ele já havia festejado o adiamento da votação da reforma da Previdência, acusando-a de ter sido concebida com objetivo de “atingir financeiramente” a magistratura.

Evidentemente, um erro – como a concessão de um penduricalho para os membros da AGU – não justifica outro erro, como a continuidade do pagamento do auxílio-moradia. Além disso, a AMB e Ajufe insistem em afirmar que os penduricalhos recebidos por seus filiados a título de “vantagens, direitos e deveres” são “legítimos” e estão “amparados pela legislação”. Deixam de lado, contudo, o fato de a constitucionalidade de parte dessa legislação estar sendo questionada no STF. E, se tivessem a certeza de que suas pretensões têm sólida base jurídica, as duas entidades não precisariam agir de modo tão patético.

Acima de tudo, essas associações não consideram o fato de que a discussão sobre os penduricalhos não envolve uma questão jurídica, mas uma questão ética. A corporação está entre as carreiras mais bem pagas do funcionalismo e goza de privilégios que não são concedidos aos trabalhadores da iniciativa privada. Confundindo prerrogativas funcionais com esses privilégios, os juízes desprezam o fato de que os penduricalhos são uma apropriação imoral de recursos dos contribuintes. Na defesa de seus interesses corporativos, esses clubes de magistrados cruzaram as fronteiras entre justiça e injustiça.

Política, democracia e ética pública, OESP


Crise deve-se ao falsear do processo eleitoral, da transparência e da ‘accountability’

Bolívar Lamounier*, O Estado de S.Paulo
31 Dezembro 2017 | 03h00
Os escândalos de corrupção inaugurados com o “mensalão” e elevados à enésima potência nos últimos cinco anos demonstraram que as deficiências da democracia brasileira são muito maiores do que pensávamos. Antes deles, nosso relativo otimismo se estribava em cinco pilares, cuja importância não pode ser subestimada, mas que agora se mostram claramente insuficientes.
Ao longo de várias décadas, até mesmo durante o regime militar, nosso processo eleitoral se tornou altamente inclusivo, com um eleitorado superior a 70% da população total, a mesma proporção das democracias mais desenvolvidas. Entre 1985 e 1988, restabelecemos pacificamente o regime civil e constitucional. Em 1989, a vitória de Collor sobre os partidos tradicionais e sobre a esquerda inaugurou a alternância pacífica no poder, consolidada com a vitória de Lula em 2002. Instituímos um sistema mais robusto de monitoramento e promoção da legalidade, notadamente pela autonomia institucional do Ministério Público, obra da Constituição de 1988. Por último, mas não menos importante, domamos, finalmente, uma inflação que se prolongara por três décadas e aprovamos no Congresso a Lei de Responsabilidade Fiscal, entre outras medidas relevantes no campo econômico.
Mas as deficiências se revelaram por um conjunto de problemas intimamente ligado à corrupção, que anula, na prática, grande parte dos avanços realizados. Proclamamos, como é usual no Primeiro Mundo, que o essencial da democracia é a exigência de que o acesso de cidadãos particulares a posições de autoridade se faça por meio de um processo competitivo, ou seja, mediante eleições limpas e livres. Mas não atinamos para o fato de que, mesmo num eleitorado de grandes proporções, os procedimentos criados para garantir eleições “limpas e livres” podem ser fraudadas por práticas em princípio lícitas, mas desleais ao espírito da democracia e, portanto, imorais. Entre estas, um exemplo egrégio é o clientelismo de larga escala, infinitamente mais pernicioso que o antigo “voto de cabresto”, que se pode embutir em políticas públicas e programas sociais.
Tampouco nos demos conta de que “eleições limpas e livres” podem transformar-se em mera aclamação simbólica, sem dentes e garras, onde não haja transparência – ou seja, onde inexista acesso efetivo do cidadão, das empresas e da sociedade civil a informações referentes às ações governamentais, notadamente no tocante ao emprego dos recursos financeiros. E mesmo onde tal acesso esteja devidamente previsto e estipulado nas leis, ele não passará de letra morta onde não exista accountability – ou seja, onde os titulares da autoridade, nos três ramos do Estado, se comportem de forma acomodatícia, ou se acovardem, não aplicando com o rigor preceituado as medidas profiláticas prescritas na Constituição e nas leis.
Eleições limpas e livres, transparência e accountability – no mundo atual, essas três condições definem o espaço válido de reflexão sobre as conexões entre a ética – a busca do bem comum – e a política. De fato, a ninguém ocorrerá avaliar o status ético de países governados por celerados e genocidas como Hitler, Stalin ou Pol Pot.
O agente do juízo ético é o indivíduo, ou seja, o cidadão que trabalha, paga impostos e mata ou morre na guerra, se convocado para tal. Ele é também o destinatário do bem comum. Decorridos dois milênios de Aristóteles, não faz sentido pensar no bem comum como um todo homogêneo, unitário e consensual. O que para um é um bem, para outro pode ser um mal. O que existe é, portanto, uma grande variedade de bens comuns ou, melhor dito, de bens coletivos, aqueles que o Estado não pode prover a um cidadão se não puder provê-los nas mesmas condições a todos os demais cidadãos compreendidos na mesma categoria. O que importa, por conseguinte, é investigar a emergência ex parte de um consenso, ou da aquiescência sempre precária, de todos, ou da maioria, a uma dada distribuição de bens coletivos. O orçamento nacional é essencialmente isto: a distribuição de bens coletivos que o Estado é capaz de prover em dado momento. Esse conjunto é a resultante do embate entre os interesses que soem existir em toda sociedade, mas que só na democracia são devidamente delimitados e regulados pelas instituições. Buscar o consenso pela via da política, o entendimento por meio de uma pugna constante, eis o notável paradoxo que as democracias consagram em suas regras de jogo.
Voltando ao início, podemos, pois, afirmar que a crise ética e econômica para a qual o Brasil foi arrastado se deve ao falseamento, ainda não superado, do processo eleitoral, da transparência e da accountability. É óbvio que a democracia tem muito que ver com as condições sociais gerais de um país, daí a existência de importantes diferenças de qualidade entre elas. Desigualdades sociais extremas são negativas para a democracia e a ética pública.
Nos limites deste artigo, cabe-me concluir apenas reiterando o que tenho insistentemente afirmado: justiça social, socialismo, social-democracia e similares devem ser entendidos tão somente como ideais abstratos de sociedade. Não são indicações concretas dos meios necessários para melhorar o padrão de vida dos indivíduos reais ou de como reduzir desigualdades de renda. Em pleno século 21, o que importa investigar é qual o melhor caminho para romper “relações de produção” peremptas a fim de liberar as “forças produtivas”. No Brasil, parece-me fora de dúvida que isso significa quebrar de vez a tradição patrimonialista, irmã siamesa da corrupção, e instaurar uma verdadeira economia de mercado.
*CIENTISTA POLÍTICO, É SOCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA E AUTOR DO  LIVRO ‘LIBERAIS E ANTILIBERAIS: A LUTA IDEOLÓGICA DE NOSSO TEMPO’ (COMPANHIA DAS LETRAS, 2016)