terça-feira, 2 de novembro de 2021

Misturar direito e moral não é boa coisa, Hélio Schwartsman, FSP

 

Um passo decisivo para a humanidade foi separar o direito penal da moral. O primeiro é uma instituição humana desenhada para inibir condutas antissociais. Apela principalmente à razão e ao cálculo. Não é coincidência que os códigos assumam a forma de tabela de preços: delito x – y anos de cadeia. A moral é mais visceral. Ela surge dos impulsos com que a biologia nos dotou para que pudéssemos sobreviver a nós mesmos. Ela se materializa na repulsa ao assassino, na vontade de castigar aqueles que vemos tentando obter vantagens indevidas etc.

O divórcio entre direito e moral se deu a partir do século 18, sob inspiração do Iluminismo. Ele possibilitou conter comportamentos que prejudicam a sociedade nos valendo de doses cada vez menores de violência estatal. Para início de conversa, deixamos de punir práticas que, embora alguns julguem imorais, não ameaçam o convívio social, como a blasfêmia e o sexo extramarital.

Também diminuímos consideravelmente o tamanho dos castigos. A pena de morte, sanção antes ubíqua, inclusive para delitos banais, foi quase extinta no Ocidente. Idem para trabalhos forçados, degredo e prisão perpétua. Criamos limitações às pretensões punitivas do Estado, como a prescrição, e, para condenar, passamos a exigir processos regulares com amplo direito à defesa. Os otimistas sonhávamos com um Estado cada vez menos violento, no qual o próprio encarceramento se tornaria raro.

O STF, ao tornar a injúria racial um delito imprescritível, faz o caminho inverso do Iluminismo. Volta a misturar direito com moral. Mesmo considerando que o racismo é uma nódoa a ser eliminada, não podemos esquecer que a injúria é uma infração menor. Até acho que dá para tornar imprescritíveis delitos como genocídio e crimes contra a humanidade, mas é ridículo imaginar que um sujeito possa, aos 70 anos, ser chamado ao banco de réus por ter xingado um colega de escola aos 15.


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