quinta-feira, 2 de julho de 2020

Tribunal de Justiça de SP julga inconstitucional lei que autorizou cesáreas sem indicação médica no SUS no estado, G1

Por Marina Pinhoni e Jussi Maria, G1 SP e TV Globo — São Paulo

 


Tribunal de Justiça de São Paulo e a Catedral da Sé, no centro da capital paulista — Foto: Fernando Fernandes/Agência Estado

Tribunal de Justiça de São Paulo e a Catedral da Sé, no centro da capital paulista — Foto: Fernando Fernandes/Agência Estado

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo decidiu nesta quarta-feira (01) pela inconstitucionalidade da Lei 17.137/2019, que liberava as cesáreas sem indicação médica no estado de São Paulo. A chamada "Lei da Cesárea" tinha sido sancionada em agosto de 2019 pelo governador João Doria (PSDB), após o projeto ter sido aprovado em regime de urgência pela Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), em proposição feita pela deputada Janaína Paschoal (PSL).

Ao analisar o processo, o Órgão Especial do TJ-SP entendeu que a lei paulista invade a competência legislativa da União, conforme indicou a ação movida pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), que contestava a validade da medida na Justiça.

"A lei estadual em foco usurpou, invadiu, a esfera de competência da União, que já havia disciplinado a matéria como norma geral, e que estabelece diretrizes daquele objeto da Lei 17.137/2019, restando afastada, com isso, a hipótese de competência legislativa por parte do Estado de São Paulo", argumentou o relator do processo no TJ-SP, desembargador Alex Zilenovski.

O voto do relator foi seguido pelos 25 membros do Órgão Especial do TJ-SP que, por unanimidade, consideraram que a lei sancionada por João Doria (PSDB) extrapola os limites constitucionais do estado de São Paulo.

Procurado pela TV Globo para comentar a decisão, o governo de São Paulo afirmou por meio de nota que "o caso está sob análise da Procuradoria Geral do Estado."

Mulheres grávidas exibem barriga antes do parto.  — Foto: IStock

Mulheres grávidas exibem barriga antes do parto. — Foto: IStock

O presidente do diretório paulista do PTB, deputado estadual Campos Machado, comemorou a decisão Justiça paulista e disse que a lei aprovada na Alesp “além de ser uma aberração jurídica, pretendia criar uma indústria das cesáreas, trazendo graves consequências à saúde de milhares de mulheres”.

A ação direta de inconstitucionalidade protocolada pelo PTB questionava a lei em três pontos da "Lei da Cesárea" em São Paulo:

  • a competência do estado em legislar sobre um tema que seria federal;
  • o aumento de despesa pública sem que tenha sido especificado de onde virá o recurso no orçamento;
  • e a adoção de uma política pública que colocaria a mulher e a criança em maior risco.

Na ocasião em que contestou a "Lei da Cesárea" na Justiça, Campos Machado havia afirmado que o projeto era inconstitucional "porque feria o artigo da Constituição que reserva à União a edição de normas gerais sobre a saúde. Infringiu de maneira grotesca. Além disso, como pode ter um projeto que implica a criação de despesas? Não consta onde estão os recursos disponíveis".

O deputado também declarou na época que governo de São Paulo não considerou o parecer técnico contrário enviado pela Defensoria Pública do Estado sobre o projeto antes de sancioná-lo.

"Não há como justificar a sanção desse projeto sem o menor estudo, contrariando inclusive o parecer técnico da Defensoria Pública do Estado", disse Machado.

No mesmo dia em que a lei foi sancionada, a autora do projeto, deputada Janaína Paschoal (PSL), e o presidente da Alesp, Cauê Macris (PSDB), rebateram a ideia de que ele seria inconstitucional e pudesse ser derrubado no Judiciário por partidos que votaram contra na Alesp.

Debate sobre a lei

Proposta pela deputada Janaína Paschoal (PSL) sob a justificativa de aumentar a autonomia da mulher e diminuir a mortalidade materna e de bebês, a lei foi alvo de intenso debate que dividiu entidades médicas e os parlamentares da Alesp.

O Brasil é criticado por ter a segunda maior taxa de cesáreas do mundo, com 55,6%, enquanto a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que a taxa ideal deveria oscilar entre 10% e 15%.

Entretanto, há uma diferença grande entre o setor público e o privado. A taxa de partos cirúrgicos do SUS é de 40%, e nos planos de saúde chega a 84%. A preocupação é que a lei incentive um aumento de cesáreas na rede pública.

"Estou transformando em lei o que já era uma norma ética que já era respeitada na rede privada, mas ignorada na rede pública. Estamos contemplando a igualdade", disse a deputada Janaina Paschoal (PSL) no evento de sanção da lei.

Também durante o evento, o secretário de Saúde do Estado, José Henrique Germann, afirmou que o SUS em São Paulo está preparado para atender a um aumento de demanda pelas cirurgias, mas que não espera que o número de cesáreas aumente.

"Acho precoce querer dizer que nós teremos mais cesáreas. Hoje, temos 43% de cesáreas [na rede pública estadual]. Dizer que vai para 60%, 65%, eu não acredito. Não é um projeto de indução às cesáreas, mas de respeito a escolhas", disse o secretário.

Entidades se dividem

Durante a tramitação do projeto, o Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) se posicionou a favor, afirmando que defende o princípio da autonomia da paciente.

Já a Associação de Obstetrícia e Ginecologia do Estado de São Paulo (Sogesp) emitiu uma nota dizendo que a proposta não está clara e que falta embasamento científico para comprovar que o maior acesso a cesáreas diminuiria a mortalidade materna ou dos bebês. Esse é um dos argumentos defendidos pela deputada Janaína Paschoal, que propôs a lei.

"Está sendo colocado como justificativa que a mulher pede uma cesárea, [mas] a cesárea não é feita, e ela morre, o filho dela morre", afirmou a presidente da Sogesp, Rossana Francisco. "Mas não existe nenhum embasamento técnico que justifique isso. A gente tem que separar uma situação que pode ser de má assistência de outra situação que seria falta de acesso a cesáreas indicadas."

A Núcleo de Defesa da Mulher (Nudem) da Defensoria Pública de São Paulo também divulgou parecer técnico contrário ao projeto, assinado por diversas profissionais da área da saúde.

"Pensar na cesariana como política pública não vai trazer um ambiente de menos violência para as mulheres. A cirurgia é importante e deve ser utilizada para salvar vidas. Mas quando a gente pensa na diretriz da OMS e nas normativas do Ministério da Saúde que tratam sobre benefícios do parto normal, o risco de adotar a cirurgia cesárea como uma política pública é que você pode aumentar o número da morte materna e da morte neonatal", declarou a defensora Paula Machado de Souza.

Sobrecarga do SUS

A presidente da Sogesp também disse que a lei poderia sobrecarregar o SUS devido ao aumento das cirurgias.

"Eu prevejo que pode ter um caos no sistema de saúde, porque se não houver aumento no quadro de médicos, de anestesistas, se não houver uma reestruturação, nós vamos ter mulheres solicitando cesáreas e não sendo atendidas. Outras cesáreas com indicação médica necessárias que não acontecerão porque os médicos estarão fazendo cesárea pedida", disse Rossana Francisco ainda antes de a lei ter sido sancionada por João Dória (PSDB).

Questionado sobre esse cenário, o secretário de Saúde do Estado afirmou que isso não seria um problema no estado. "É nossa responsabilidade garantir a anestesia, e temos a obrigação de manter", disse José Henrique Germann na época.

O governador João Doria também afirmou na ocasião que "em São Paulo, estamos preparados" para atender possível aumento da demanda do SUS. Ele, no entanto, não especificou que verba seria utilizada do Orçamento do estado para este fim.

O que dizia a lei aprovada

  • A parturiente tem direito à cesariana a pedido, devendo ser respeitada em sua autonomia.
  • A cesariana a pedido da parturiente só será realizada a partir de 39 semanas de gestação, após ter a parturiente sido conscientizada e informada acerca dos benefícios do parto normal e dos riscos de sucessivas cesarianas.
  • A decisão deverá ser registrada em termo de consentimento livre e esclarecido, elaborado em linguagem de fácil compreensão.
  • Na eventualidade de a opção da parturiente pela cesariana não ser observada, ficará o médico obrigado a registrar as razões em prontuário.
  • A parturiente que optar ter seu filho por parto normal, apresentando condições clínicas para tanto, também deverá ser respeitada em sua autonomia. Garante-se à parturiente o direito à analgesia, não farmacológica e farmacológica.
  • Nas maternidades, nos hospitais que funcionam como maternidades e nas instituições afins, será afixada placa com os seguintes dizeres: “Constitui direito da parturiente escolher a via de parto, seja normal, seja cesariana (a partir de 39 semanas de gestação)”.
  • O médico sempre poderá, ao divergir da opção feita pela parturiente, encaminhá-la para outro profissional.
  • As despesas decorrentes da execução desta lei correrão à conta das dotações orçamentárias próprias.

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