Depois do junho de 2013, os casos de linchamentos saltaram de quatro por semana a um por dia. É indicação de que a sociedade está descontrolada
10 de maio de 2014 | 16h 00
José de Souza Martins
O massacre de uma inocente mãe de família, por enfurecida turba de linchadores no bairro pobre de Morrinhos, no Guarujá (SP), causa espanto e horror. É que, mesmo não sendo uma novidade, apresenta traços novos em relação ao já conhecido: uma inocente que é branca, religiosa, duas filhas, benquista pelos vizinhos, adoentada, pacífica. A típica mãe do Dia das Mães. Seu linchamento é como se esta sociedade linchasse um de seus símbolos fundamentais.
Reprodução
Entre os algozes de Fabiane, alguém tomou a Bíblia que ela carregava por manual de bruxaria
De outro lado porque, em se tratando de pessoa comprovadamente inocente, incomoda os que acham que linchamento é um instrumento legítimo de justiça popular, que pune os antissociais, os que supostamente merecem ser castigados violentamente. Ficam sabendo que eles próprios podem ser alcançados pela ira da multidão, da justiça sem juiz nem tribunal de apelação. Não estão a salvo da violência descabida e injusta. Ninguém mais está. Isso é o que perturba.
Enquanto se trata de trucidar os outros, supomos que estamos a salvo. Mas casos como o do Guarujá nos fazem a terrível revelação de que na solidão e no desamparo daquela mulher nós é que somos os linchados. Estamos lá, naquele corpo sendo friamente amarrado para ser arrastado como coisa desprezível pelas ruas da ignorância e da pobreza de espírito. Há poucas semanas, em Joinville (SC), um homem foi linchado, acusado de estupro de criança, que não houve, alertados os vingadores pela própria mãe da menina de que aquilo não ocorrera. Não obstante, foi morto.
Outro traço novo dessa modalidade de comportamento violento é a mediação das redes sociais, o poder da internet para provocar o comportamento irracional da turba. As redes vêm tendo um papel decisivo na mobilização das multidões e na manifestação da loucura que lhes é própria, que se conhece desde o estudo pioneiro de Gustave Le Bon. Há alguns anos, participei de uma conversa com Noam Chomsky aqui em São Paulo. Ele expunha a verdadeira revolução representada pela internet. Agora, dizia, cada um de nós pode fazer seu próprio jornal. Chomsky não levou em conta que a internet pode difundir inverdades, notícias atópicas e atemporais, o que dessas notícias tira a importância crítica do atual, como no caso do Guarujá, imunes ao compromisso com a informação fundamentada e ao risco da distorção e da mentira, da incompetência para informar e debater com responsabilidade e objetividade. A internet está cheia de lixo.
Esses dois linchamentos, em particular o do Guarujá, são reveladores de aspectos muito problemáticos da violência de rua. Seus conteúdos ocultos são expressões de uma sociedade que vem perdendo as referências.
Num recorte de 2 mil casos de linchamentos no Brasil, 7,8% foram de inocentes. É uma proporção muita alta. Nos últimos 60 anos, ao menos um milhão de pessoas participaram de linchamentos ou tentativas de linchamento neste País. O que faz desta sociedade uma sociedade altamente perigosa porque longa e demoradamente motivada a agir fora da lei no que à vida se refere. Os indícios de linchamentos e tentativas vêm crescendo: de quatro por semana antes das manifestações de rua de junho de 2013 para um por dia depois das manifestações e nos últimos dias tendem a se aproximar de dois casos diários. Pode ser conjuntural, mas é indicação de que a sociedade está descontrolada. Expressão de falta de confiança nas instituições, medo e insegurança.
Tem-se dito que os linchamentos incidem de preferência sobre pobres e sobre negros. Os dados acumulados não confirmam essa suposição político-ideológica. O próprio caso do Guarujá a desmente. O maior número de pobres linchados se deve ao fato de que os linchamentos tendem a ocorrer mais nas áreas pobres, onde tendencialmente há mais negros. Ninguém sai dos bairros ricos para linchar pobres nos bairros pobres. O único indício de uma subjacente tensão racial em episódios de linchamento é que, se a vítima for negra, cresce a probabilidade de maior violência. Mas isso vem durante, não antes. Os dados disponíveis mostram que os pobres lincham os pobres, que negros também lincham negros e brancos. Mostram que nos linchamentos ocorridos em favelas, de favelados contra favelados, a violência é maior e mais radical do que na média dos linchamentos. É na classe média que há um número expressivo de ocorrências: 35,8%. Das vítimas de linchamentos e tentativas, 5,1% são pessoas da elite do país, o que inclui políticos e até mesmo um ministro de Corte superior de Justiça. Predominantemente, ocorrem em áreas urbanas ou rurais de povoamento recente, bairros novos ou regiões da frente pioneira. Lugares em que a sociedade procura se consolidar e onde os valores de referência da conduta recíproca ainda não se cristalizaram.
Os dados tampouco confirmam que as multidões linchadoras não são grupos ocasionais. São proporcionalmente poucos os casos de grupos com identidade fechada regidos por uma temporalidade lenta e duradoura. Em quase 68,5% dos casos, o linchamento é imediato ao fator que o motiva. Apenas em 6% dos casos o ódio pode se estender por uma longa demora e motivar a constituição de uma identidade dos linchadores.
Um dos grandes problemas nas análises e nos estudos sobre linchamentos no Brasil é o do pressuposto de que são ações ofensivas, praticadas por grupos intencionalmente motivados pela ideia da violação dos direitos de pessoas estigmatizadas ou objeto de preconceito. Os linchamentos seriam apenas uma variante das outras formas de violência. Os linchamentos brasileiros, ao contrário, são majoritariamente autodefensivos. Diferem do crime comum e da violência comum porque supostamente praticados em defesa da sociedade e não contra ela. No geral, os linchadores são levados à ação pelo medo, um medo social difuso, que se dissipa momentaneamente no ato de linchar porque nele a multidão se sente forte e invencível.
É significativo que muitos linchamentos tenham uma dimensão ritual. Como neste caso do Guarujá, a cabeça da vítima é seu primeiro objetivo e o mais frequente. No caso de acusação de magia negra por parte da vítima, destruir a cabeça e desfigurar a pessoa linchada é, na crença popular, um modo de privá-la daquilo que lhe é propriamente humano, o homem feito à imagem e semelhança de Deus. Linchá-lo é dessemelhá-lo.
Os linchamentos, no mais das vezes, são ocorrências de ocasião, porque o motivo se apresenta junto com a oportunidade. Desenvolvem-se em duas etapas: a da constituição da circunstância a partir de um motivo e a da identificação e estigmatização da vítima. Ou mesmo sua invenção, como no Guarujá. A mulher linchada foi inventada pelo imaginário coletivo e personificou involuntariamente o ente satanizado pelos moradores. É no desencontro desses dois momentos que a vítima escolhida pode ser uma pessoa inocente. Para chegar a ela, basta um boato difundido pela internet, o que é possibilitado por seu uso irresponsável num meio social que chegou aos recursos e equipamentos técnicos do mundo moderno sem que seus usuários tenham sido educados nas regras de uma sociabilidade para a modernidade, as regras da civilidade.
Criada a circunstância do medo e a matéria-prima do estereótipo, a população entra de prontidão para identificar sinais do estigma de bruxa, como se fazia na Idade Média e no Brasil Colônia no tempo da Inquisição - o que sempre terminava com a vítima queimada viva na fogueira punitiva, um modo de destruir-lhe o corpo e também a alma. Pequenos e inadvertidos sinais podem indicar a vítima do rito sacrificial iminente. Sem o saber, a mãe de família do Guarujá tinha os atributos que, reunidos imaginariamente no lugar e na hora errados, a levaram ao sacrifício. Os cabelos ruivos da mulher branquíssima, provavelmente tingidos, destacam-se naquela multidão morenamente brasileira. Depois, foi buscar a Bíblia que emprestara a uma amiga, o livro preto embaixo do braço, a que uma pessoa atribuiu a função de livro de bruxaria. E, por fim, depois de passar por um supermercado e comprar frutas, viu na rua um menino sozinho e ofereceu-lhe uma banana. Foi o que bastou para que a mãe da criança visse nela a bruxa do boato e começasse a gritar. Rapidamente foram mobilizadas cem pessoas, várias delas mulheres e até crianças, dispostas a espancar, amarrar, arrastar e atrair, em seguida, mais de mil curiosos. Preparavam-se para queimá-la viva quando a polícia chegou.
Os linchados são estranhos ao grupo linchador e quando não o são, como no caso do Guarujá, são estranhados por meio do imaginário da satanização, são imaginariamente desidentificados. Morrem sociologicamente antes de morrerem fisicamente, antes mesmo de saberem que são o alvo do medo coletivo. Nesse rito, morremos todos, aos poucos, violentamente, porque nele a sociedade se acaba para ser um aglomerado provisório de seres sem rumo.
JOSÉ DE SOUZA MARTINS É SOCIÓLOGO, PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE FILOSOFIA DA USP E AUTOR, ENTRE OUTROS LIVROS, DE A APARIÇÃO DO DEMÔNIO NA FÁBRICA (EDITORA 34) E A POLÍTICA DO BRASIL LÚMPEN E MÍSTICO (CONTEXTO).
Nenhum comentário:
Postar um comentário