Como sair do labirinto climático, por José Eli da Veiga. Coluna publicada hoje no Jornal ValorEconômico
Preceitos transformados em instituições formais pelos processos políticos são parecidos àquelas pastas que a construção civil classifica de “aglomerantes” ou “ligantes”: certas resinas, o gesso, o cimento, ou o concreto, por exemplo. Por mais que comecem bem maleáveis e moldáveis, não demoram a ficar tão resistentes que só podem ser alteradas com tratamentos de choque.
Essa é uma analogia que cai como luva para o entendimento das mais decisivas encruzilhadas do labirinto climático. O que hoje impede a desejável mitigação do aquecimento global são duas instituições que podem ter parecido das mais inofensivas ao serem selecionadas nos anos 1990, mas que se revelaram terríveis travas.
Quando a ambição inicial de se construir alguma governança global das ameaças ambientais havia sido codificada na célebre Declaração de Estocolmo, em 1972, o consenso era de que acordos multilaterais ou plurilaterais só seriam eficientes para minorar adversidades se fossem concebidos com espírito de cooperação e em pé de igualdade, como diz seu 24º Princípio.
Todavia, em 1992 esse consenso foi substituído por uma fórmula aparentemente mais justa, de “responsabilidades comuns, porém diferenciadas”, que atribuiu o dever de iniciativa apenas às nações mais desenvolvidas. Aliás, o único princípio que se tornou bem conhecido, apesar de ser apenas o primeiro dos cinco que compõem o terceiro artigo da Convenção do Clima.
Foi uma troca que até pode ter parecido apenas retórica, mas que em 1997 serviu de pretexto para que uma gravíssima distorção dominasse o Protocolo de Kyoto. Embora o mais razoável fosse supor que as responsabilidades nacionais devessem ser proporcionais às emissões decorrentes do consumo da população de cada país, combinadas às suas diferentes capacidades de inovação tecnológica descarbonizadora, o que vingou foi um tacanho critério geopolítico de diferenciação que responsabilizou exclusivamente as nações pioneiras no processo de industrialização por terem começado a emitir carbono numa época em que até a própria comunidade científica desconhecia a gravidade do efeito estufa.
Por não atribuir qualquer ônus relevante para todos os 132 países hoje agrupados no chamado “G-77+China”, esse protocolo fez com que o carbono continuasse a ser livremente emitido nos mercados emergentes, entre os quais já se destacavam China, Índia e Brasil. Daí porque também foi automática a não-ratificação pelo Congresso dos EUA, uma vez que o Senado – em raríssima votação por unanimidade (95 a zero) – já havia antecipado um veto prévio a qualquer acordo multilateral com tal viés.
Dessa forma, o processo sócio-político que engendrou o Protocolo de Kyoto criou seríssimo obstáculo de ordem prática por permitir, por exemplo, que as duas potências que mais emitem carbono – China e Estados Unidos – possam continuar a fazê-lo sem qualquer constrangimento legal resultante da cooperação multilateral.
Além dessa instituição baseada em um juízo de valor que é altamente duvidoso em termos éticos, também foi do Protocolo de Kyoto a proeza de impedir qualquer tributação internacional das emissões de carbono, em favor de mercados que negociam direitos de poluir. Em consequência, meros 7% dessas emissões são hoje afetados pelos dois mecanismos de precificação: os esquemas para comércio de emissões (ETS, em inglês) e raríssimos tributos nacionais, drama que foi abordado neste mesmo espaço do Valor em 28/01/14.
Pois bem, como o Protocolo de Kyoto expirou em 2012, é simplesmente inaceitável qualquer proposta para a Conferência das Partes de 2015 em Paris (CoP-21) que o prorrogue em vez de substituí-lo e ultrapassá-lo. No entanto, é muito pouco provável que surja até lá um tratamento de choque capaz de romper tamanho bloqueio ou “lock-in” institucional.
Só se pode torcer, então, para que negociações paralelas entre americanos e chineses façam emergir um razoável acordo bilateral de descarbonização. Com certeza obteria imediato apoio da União Europeia, além de ter muita chance de não demorar muito para ser assumido pelo G-20. É essa a saída do labirinto que já afetaria, por si só, mais de 80% das emissões globais de carbono, mesmo antes que viesse a ser legitimada na trilha das Nações Unidas.
Tal enredo, que também é visto como o mais sensato pelos dois principais especialistas brasileiros – os cientistas políticos Eduardo Viola e Sérgio Abranches – indica claramente que as expectativas que estão sendo formadas para o páreo de Paris em 2015 (CoP-21) tendem a ser tão exageradas quanto as que precederam o de Copenhagen em 2009 (CoP-15).
Por isso, os segmentos mais lúcidos do empresariado e das organizações do terceiro setor deveriam concentrar suas energias em ações que possam acelerar possíveis entendimentos entre os governos americano e chinês, em vez de corroborarem para que venha a ter êxito na CoP-15 qualquer estratagema que signifique prorrogação do Protocolo de Kyoto.
José Eli da Veiga é professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP e autor de “A desgovernança mundial da sustentabilidade” (Editora 34, 2013).
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