segunda-feira, 5 de maio de 2014

Como sair do labirinto climático, por José Eli da Veiga. Coluna publicada hoje no Jornal ValorEconômico


Preceitos transformados em instituições formais pelos processos políticos são parecidos àquelas pastas que a construção civil classifica de “aglomerantes” ou “ligantes”: certas resinas, o gesso, o cimento, ou o concreto, por exemplo. Por mais que comecem bem maleáveis e moldáveis, não demoram a ficar tão resistentes que só podem ser alteradas com tratamentos de choque.

Essa é uma analogia que cai como luva para o entendimento das mais decisivas encruzilhadas do labirinto climático. O que hoje impede a desejável mitigação do aquecimento global são duas instituições que podem ter parecido das mais inofensivas ao serem selecionadas nos anos 1990, mas que se revelaram terríveis travas.

Quando a ambição inicial de se construir alguma governança global das ameaças ambientais havia sido codificada na célebre Declaração de Estocolmo, em 1972, o consenso era de que acordos multilaterais ou plurilaterais só seriam eficientes para minorar adversidades se fossem concebidos com espírito de cooperação e em pé de igualdade, como diz seu 24º Princípio.

Todavia, em 1992 esse consenso foi substituído por uma fórmula aparentemente mais justa, de “responsabilidades comuns, porém diferenciadas”, que atribuiu o dever de iniciativa apenas às nações mais desenvolvidas. Aliás, o único princípio que se tornou bem conhecido, apesar de ser apenas o primeiro dos cinco que compõem o terceiro artigo da Convenção do Clima.

Foi uma troca que até pode ter parecido apenas retórica, mas que em 1997 serviu de pretexto para que uma gravíssima distorção dominasse o Protocolo de Kyoto. Embora o mais razoável fosse supor que as responsabilidades nacionais devessem ser proporcionais às emissões decorrentes do consumo da população de cada país, combinadas às suas diferentes capacidades de inovação tecnológica descarbonizadora, o que vingou foi um tacanho critério geopolítico de diferenciação que responsabilizou exclusivamente as nações pioneiras no processo de industrialização por terem começado a emitir carbono numa época em que até a própria comunidade científica desconhecia a gravidade do efeito estufa.

Por não atribuir qualquer ônus relevante para todos os 132 países hoje agrupados no chamado “G-77+China”, esse protocolo fez com que o carbono continuasse a ser livremente emitido nos mercados emergentes, entre os quais já se destacavam China, Índia e Brasil. Daí porque também foi automática a não-ratificação pelo Congresso dos EUA, uma vez que o Senado – em raríssima votação por unanimidade (95 a zero) – já havia antecipado um veto prévio a qualquer acordo multilateral com tal viés.

Dessa forma, o processo sócio-político que engendrou o Protocolo de Kyoto criou seríssimo obstáculo de ordem prática por permitir, por exemplo, que as duas potências que mais emitem carbono – China e Estados Unidos – possam continuar a fazê-lo sem qualquer constrangimento legal resultante da cooperação multilateral.

Além dessa instituição baseada em um juízo de valor que é altamente duvidoso em termos éticos, também foi do Protocolo de Kyoto a proeza de impedir qualquer tributação internacional das emissões de carbono, em favor de mercados que negociam direitos de poluir. Em consequência, meros 7% dessas emissões são hoje afetados pelos dois mecanismos de precificação: os esquemas para comércio de emissões (ETS, em inglês) e raríssimos tributos nacionais, drama que foi abordado neste mesmo espaço do Valor em 28/01/14.

Pois bem, como o Protocolo de Kyoto expirou em 2012, é simplesmente inaceitável qualquer proposta para a Conferência das Partes de 2015 em Paris (CoP-21) que o prorrogue em vez de substituí-lo e ultrapassá-lo. No entanto, é muito pouco provável que surja até lá um tratamento de choque capaz de romper tamanho bloqueio ou “lock-in” institucional.

Só se pode torcer, então, para que negociações paralelas entre americanos e chineses façam emergir um razoável acordo bilateral de descarbonização. Com certeza obteria imediato apoio da União Europeia, além de ter muita chance de não demorar muito para ser assumido pelo G-20. É essa a saída do labirinto que já afetaria, por si só, mais de 80% das emissões globais de carbono, mesmo antes que viesse a ser legitimada na trilha das Nações Unidas.

Tal enredo, que também é visto como o mais sensato pelos dois principais especialistas brasileiros – os cientistas políticos Eduardo Viola e Sérgio Abranches – indica claramente que as expectativas que estão sendo formadas para o páreo de Paris em 2015 (CoP-21) tendem a ser tão exageradas quanto as que precederam o de Copenhagen em 2009 (CoP-15).

Por isso, os segmentos mais lúcidos do empresariado e das organizações do terceiro setor deveriam concentrar suas energias em ações que possam acelerar possíveis entendimentos entre os governos americano e chinês, em vez de corroborarem para que venha a ter êxito na CoP-15 qualquer estratagema que signifique prorrogação do Protocolo de Kyoto.

José Eli da Veiga é professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP e autor de “A desgovernança mundial da sustentabilidade” (Editora 34, 2013).

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