Rombo financeiro, 'reajuste zero' e risco de greve são elos de uma estrutura que precisa ser revista, admitem veteranos da universidade
25 de maio de 2014 | 2h 05
LAURA GREENHALGH - O Estado de S.Paulo
"A primeira condição para superar esta difícil conjuntura é compartilhar as informações e não esconder a gravidade." Em uma carta de duas páginas, ilustrada com dois gráficos preocupantes, o médico e recém-empossado reitor da USP, Marco Antonio Zago, atestou a debilidade financeira da mais importante universidade pública do País e uma das cem melhores num ranking de 10 mil instituições pelo mundo. A USP mantém seus sinais vitais preservados. Há prognóstico de cura. Só que o diagnóstico desafia o tratamento, tantas são as enfermidades - do desequilíbrio financeiro do mês a mês a desajustes no seu papel institucional, num País que pleiteia cada vez mais posição de destaque no cenário global, embora com déficit educacional cada vez menos tolerável.
A carta de Zago, ao revelar que o pagamento da folha de pessoal da USP consome 106% do orçamento geral e que a reserva financeira da universidade tombou de R$ 3,6 bilhões, em 2013, para R$ 2,3 bilhões em 2014, preconiza medidas duras, desde a suspensão de obras e contratações até a disposição de congelar salários ante a ameaça de "reajuste zero" para o ano. A penúria uspiana, até em relação a seus pares - Unesp e Unicamp -, acende a luz vermelha: o que vem acontecendo a esse gigante do ensino superior, público e de qualidade, com seus 92 mil alunos, 5.860 professores e quase 17 mil funcionários técnico-administrativos? O comunicado do reitor surtiu efeito previsível: a mobilização das três universidades paulistas, que prometem entrar em greve nos próximos dias.
"De novo, voltamos a falar de orçamento. Mas os desafios vão além dessa conversa de verba, verba, verba", diz o filósofo José Arthur Giannotti, professor emérito da USP. Ao colocar a questão financeira como consequência, e não causa, de uma crise que abala o futuro da instituição, prefere atacar as amarras do funcionalismo público ao qual USP, Unicamp e Unesp se subordinam.
Acha que a última reforma universitária para valer aconteceu no tempo da ditadura, em 1969-70, e que, de lá para cá, viu a USP se transformar numa grande repartição. "Penso que não faltam recursos, mas são muito mal empregados." Vocaliza boa parcela do professorado ao pleitear a criação de um regime jurídico especial para a USP, custeada desde o final dos anos 1980 com repasses do ICMS da ordem de 5% do bolo geral - mecanismo que assegurou a autonomia financeira, ao lado da didática e administrativa.
Baderna, fora!. Em 1988, pressionado por protestos às portas do Palácio dos Bandeirantes, o governador Orestes Quércia acatou sugestão do então reitor da USP, o físico José Goldemberg, que por sua vez tinha o respaldo dos reitores da Unicamp e da Unifesp. Por decreto, Quércia destinaria 8,5% da arrecadação do ICMS para as três universidades públicas estaduais, e os reitores deixariam de passar o pires do orçamento anualmente. Quércia topou, o reitor saiu vitorioso e o índice do repasse de 8,5% para as instituições subiu para 9,57% com o passar dos anos. Mas hoje Goldemberg se arrepende de não ter incluído itens balizadores no texto do decreto governamental (mais informações na pág. A31).
Entre eles, algo que funcionasse como bússola financeira para os reitores: o orçamento geral da universidade deve reservar 80% para gastos com pessoal e 20% para custeio e investimento. "Parece um desequilíbrio, mas é preciso bem mais para pessoal, porque a universidade é feita fundamentalmente de gente", explica Goldemberg. Essa relação "quatro por um" manteve-se bem até 2010, quando a reitoria da USP foi entregue a João Grandino Rodas, da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Rodas assumiu com cerca de 78% dos recursos comprometidos com pessoal, portanto, dentro da meta, e passou a reitoria em 2014 com o mesmo índice na casa dos 105%. Hoje há consenso em torno do seguinte ponto: a gestão do ex-reitor desbalanceou as finanças e ainda consumiu parte das reservas da instituição. O que não é consenso, no entanto, é se a crise atual deve atender só pelo nome de João Grandino Rodas. O debate se acirra.
"Desde os anos 50 não se via governança tão problemática. Sempre houve um padrão de gestão, uma estrutura, um trâmite na USP. A gestão Rodas, com seu plano de obras, volume de contratações e a oneração da folha, demonstrou que, embora estatutariamente o reitor não tenha tanto poder assim, na prática pode optar por uma gestão centralizadora", avalia Caio Dantas, ex-diretor do Instituto de Matemática e Estatística e ex-pró-reitor de Graduação. Visão endossada por muitos na cúpula uspiana, que estranham a baixa frequência com que o ex-reitor teria se reportado ao Conselho Universitário, instância máxima da universidade.
Walter Colli, médico de formação, professor titular aposentado do Instituto de Química e com meio século de dedicação integral à universidade, amplia o foco da crise. "Aos 80 anos, a USP precisa reformar seus estatutos. É o momento certo de estabelecer que reitores sejam auditados por órgão independente."
Na outra ponta, mas na mesma direção, reclama o servidor Magno de Carvalho, representante do sindicato dos funcionários, o Sintusp. "Para que construir um centro de convenções com teatro para 1,5 mil pessoas, como quis o Rodas? Para que comprar prédios caros e até uma mansão para integrar ao patrimônio da USP? Por que fazer dos câmpus no interior canteiros de obras quando falta dinheiro para cirurgia no Hospital Universitário?", questiona Carvalho, embora falando pela corporação mais beneficiada por Rodas: nos últimos quatro anos, os servidores tiveram aumento de 74%, contra os 43% do corpo docente.
Nina Ranieri, também professora da Faculdade de Direito e ex-assessora de vários reitores da USP, faz ponderações à gritaria anti-Rodas - com quem, esclarece, jamais trabalhou. "Não podemos confundir fluxo e investimento. Comprar imóveis para a universidade é também uma maneira de investir, imobilizando recursos em patrimônio. Já o que se vê no déficit da folha de pessoal, aí sim, é problema de fluxo." Nina relativiza o que para muitos terá sido uma gestão repleta de generosidades do ex-reitor, supostamente receoso de enfrentar uma ocupação da reitoria tão espalhafatosa quanto a da gestão anterior à sua, sob comando de Suely Vilela, da Faculdade de Farmácia de Ribeirão Preto. "Rodas descentralizou a administração. Trouxe o departamento jurídico e o centro de computação para fora da Cidade Universitária. Certamente não queria correr o risco de colapsar a administração, num confronto com grevistas. Desse ponto de vista, agiu bem."
Nós e os outros. Politização ou sindicalização da vida universitária? Para a maioria dos docentes ouvidos, a USP padece de aguda sindicalização em suas relações internas, o que trava o debate. "As discussões estão partidarizadas. O Brasil ficou assim, 'nós e os outros', e a universidade é o reflexo da sociedade", diz Colli. "A Adusp, que nasceu como uma associação dos docentes e teve papel de liderança no passado, hoje luta por modelos que julga certos e quer nos impor", agrega Dantas. "Parece haver uma divisão maluca na USP, entre marxistas e burgueses. Até Anísio Teixeira (1900-1971), o grande educador, virou burguês, já não se pode nem falar dele", provoca Eunice Durham, cientista social, professora titular da USP e ex-secretária Nacional de Educação Superior do Ministério da Educação no governo Collor de Mello (voltaria à pasta com FHC). A Adusp já está mobilizada para a greve: quer aumento salarial e cobra transparência nas contas da USP.
Eunice Durham defende que a atual crise sirva como oportunidade de revisão da estrutura da universidade, até mesmo para melhor empregar os recursos, como propõe Giannotti. Para ela, a USP sofre da "síndrome do modelo único", doença que contamina a instituição como um todo e a gestão das carreiras, em particular. "Como aplicar a mesma concepção de carreira acadêmica a um físico nuclear, um diretor de hospital e um regente de orquestra? É o que acontece aqui." Critica o sistema de avaliação dos docentes, "único, também", a peneira dos concursos, a rigidez na titulação, a exigência e perda de qualidade das publicações acadêmicas, e, por fim, a cristalização de uma ideia antiquada de profissão. "Tudo isso resulta dessa estrutura sem flexibilidade, cujos reflexos estamos vendo agora."
Kit faculdade. Em outras palavras, a USP, que ainda é referência para a vida universitária brasileira, acabaria alimentando desequilíbrios. Com carreiras de progressão mais lenta e remuneração média inferior, hoje perde professores para as federais, que por sua vez pagam salários melhores, fixados pelo Ministério da Educação. "Pior é a pressão que vem das particulares, que correspondem a 80% do ensino superior do País", alerta Giannotti. "Há casos escandalosos, universidades privadas que importam cursos prontos dos Estados Unidos. Kits para formação em Ciências Sociais, Direito... É comércio."
Nina, atualmente na assessoria jurídica do governador Geraldo Alckmin, tenta separar os desafios estruturais dos conjunturais na universidade octogenária. Do ponto de vista do regime jurídico, entende que, embora sujeita às normas do funcionalismo público, a USP dispõe de brechas para atuar em regime próprio, como favorecem certos artigos da Lei de Diretrizes e Base (LDB). "São brechas que possibilitam situações tais como selecionar docentes por currículos e não só por concursos, por exemplo." Do ponto de vista da sustentabilidade financeira, acredita que as universidades públicas estaduais, USP incluída, ainda não conseguiram chegar a um bom modelo de prestação de contas, seja internamente, seja ao poder público, seja à sociedade, lembrando que a autonomia financeira não as exime disso. "Em uma palavra, falta accountability", resume.
Como outras fontes ouvidas, a professora apoia a expansão recente da USP, que se multiplica em vagas, cursos e câmpus pelo Estado, no entanto questiona se esse crescimento deve ser pela base (a graduação) ou por meio da formação de quadros (leia-se 'doutores') que se espalhem pelo sistema universitário nacional, elevando o ensino superior como um todo. Entende que esse modelo de expansão "por cima" pode ter efeito democratizante. "Mas um dos problemas", diz Caio Dantas em sua avaliação, "é que não há visão sistêmica". "Um exemplo: hoje vemos alunos e docentes da USP sendo bancados para estudar em universidades inferiores à nossa do ponto de vista acadêmico. Pergunto: o que se ganha com esse tipo de internacionalização que não traz nada de bom como retorno?".
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