quinta-feira, 1 de junho de 2023

Como pôr fim ao marco temporal, Thiago Amparo, FSP

 A tese do marco temporal, aprovada na Câmara nesta terça-feira (30), é ancorada em quatro pilares: genocídio, desinformação, atraso e inconstitucionalidade. Dos dois últimos, deve-se dizer que é em grande medida culpa do Supremo Tribunal Federal que uma tese inconstitucional tenha ganhado sobrevida, apenas porque a análise do tema fora interrompida por um pedido de vista em 2021 e o resultado na corte é incerto. Se a Câmara cometeu o crime, foi o STF que preparou a cena por sua omissão.

A corte não pode se dar ao luxo de dois anos depois escusar-se de cumprir o seu mandato principal: evitar que mudanças legislativas corroam direitos constitucionais. A menção temporal a outubro de 1988 no marco serve apenas para ofuscar sua clara inconstitucionalidade, formal e substantiva, como defende parecer recente do Ministério Público Federal. A tese viola direito à consulta prévia e autodeterminação de povos indígenas, na única carta constitucional que não os tratou como menos que humanos.

Indígena participa de manifestação contra o marco temporal em frente ao Congresso Nacional, em Brasília - Sérgio Lima/AFP - AFP

Do genocídio, pode-se dizer que a intenção do marco temporal nem sequer é oculta: ao congelar direitos indígenas, ignorando a violência que retirou povos de suas terras, a tese busca sujeitar intencionalmente indígenas a condições de vida com vista a provocar a sua destruição física, definição legal de genocídio.

No Senado, as implicações jurídicas e internacionais desse caminho deveriam influenciar os parlamentares.

Da desinformação, pode-se dizer que a tese do marco temporal se baseia em um falso pânico entre ruralistas de que haveria muita terra indígena no país (em 7 dos 9 principais estados agrícolas, não passa de 1% do território), segundo estudo do Instituto Socioambiental. Agropecuária não precisa tomar terras indígenas: pastagem (com 22% do território) e agricultura (8%) já podem crescer com ganho de eficiência, não com sangue indígena. Ao STF e ao Senado, cabem responder se vale passar trator sobre indígenas para produzir, de forma arcaica e ineficiente, agricultura subdesenvolvida.

Os que invadem terras no Brasil não estão em barracas do MST, FSP

 

Bruno Stankevicius Bassi

Pesquisador e coordenador de projetos do De Olho nos Ruralistas, que documenta as impressões digitais do agronegócio nos conflitos agrários e no lobby político em Brasília

Existe no Brasil um surto de invasão de terras. Todo ano, milhares de hectares são tomados por criminosos —muitas vezes utilizando de violência e ameaça à vida. Não raro, com apoio explícito do Estado brasileiro.

Segundo a narrativa imposta pelos líderes da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) —a face institucional por trás do lobby político de latifundiários e megacorporações agrícolas—, a grande ameaça para a segurança pública brasileira são as ocupações de fazendas improdutivas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e por outras organizações do campo. Junto à ala bolsonarista da Câmara, a FPA criou uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sob medida para perseguir os movimentos de luta pela terra, equiparando sua ocupação ao crime de terrorismo.

Mas quem realmente invade terras no Brasil não são os sem-terra. Tampouco indígenas e quilombolas, também na mira da criminalização pela CPI.

Em 19 de abril, Dia dos Povos Indígenas, o observatório De Olho nos Ruralistas publicou o relatório "Os Invasores", revelando, com base nos dados fundiários do Incra, os nomes de pessoas físicas e jurídicas responsáveis por 1.692 fazendas incidentes em 213 terras indígenas (TIs) homologadas ou em processo de homologação pela Funai.

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Placa indicando estrada vicinal dentro da Terra Indígena Apyterewa (PA) com marcas de tiro e um adesivo de apoio a Bolsonaro - Lalo de Almeida - 20.jul.20/Folhapress

Ao todo, as áreas de sobreposição de imóveis privados em TIs somam 1,18 milhão de hectares —do tamanho do Líbano. Considerando apenas as áreas incidentes em TIs com processo de demarcação concluído, são 53,6 mil hectares —o equivalente à área urbana do Rio de Janeiro. O registro de imóveis rurais sobrepostos a TIs homologadas constitui crime federal.

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Entre os beneficiários diretos e indiretos da espoliação estão megainvestidores, como Jorge Paulo Lemann, o novo "dono" da Eletrobras, que herdou um conflito histórico com o povo avá-canoeiro, em Goiás, uma das seis TIs homologadas em abril deste ano. Também compõem o estudo nomes de destaque do agronegócio, como José Maria Bortoli, sócio do grupo Bom Futuro, terceiro maior produtor de soja do país e fornecedor premium da Cargill. Bortoli foi doador de campanha do ex-presidente Jair Bolsonaro e é proprietário de uma fazenda sobreposta à TI Enawenê-Nawê, em Mato Grosso, regularizada desde 1996. Há ainda subsidiárias das multinacionais Bunge e Syngenta, donos de espaços culturais badalados, madeireiros, exportadores de frutas e políticos.

O mesmo Brasil que ignora as invasões dos territórios tradicionais é aquele que fecha os olhos para o roubo de terras públicas pelo agronegócio.

Em São Paulo, o governador Tarcísio Freitas (Republicanos) resolveu premiar grileiros da região do Pontal do Paranapanema, no Oeste do estado, concedendo um desconto de até 90% para quem quisesse "regularizar" suas terras, usando uma lei aprovada pelo antecessor, João Dória (PSDB), e que pode ser derrubada nas próximas semanas pelo Supremo Tribunal Federal. Segundo noticiado pela Folha, o presidente do Instituto de Terras de São Paulo (Itesp), Guilherme Piai, convocou fazendeiros a agilizarem seus processos "antes que a lei caia".

Novamente, os principais beneficiários não são acampados do MST. Entre os donos de terras no Pontal figura Jovelino Mineiro, sócio do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso em empreendimentos de pecuária bovina, conforme exposto no livro "O Protegido: por que o país ignora as terras de FHC" (Autonomia Literária, 2019), do jornalista Alceu Luís Castilho. A esposa de Jovelino, Maria do Carmo Abreu Sodré, é herdeira do clã que domina a região —um império formado majoritariamente através da grilagem de terras.

O filho do casal, Bento Mineiro, é amigo íntimo de Ricardo Salles (PL-SP), relator da CPI do MST. Juntos, eles formaram a Rural Jovem, uma divisão da Sociedade Rural Brasileira. Esta, por sua vez, é uma das financiadoras —através do Instituto Pensar Agro— do lobby ruralista encabeçado pela FPA no Congresso.

Como sempre, o ciclo da invasão recai sobre os mesmos atores. E nenhum deles está em um barracão do MST.


O cromossomo Y está sumindo, CIÊNCIA FUNDAMENTAL, FSP

 Rossana Soletti

No último dia de agosto de 2011, duas geneticistas travaram um debate numa conferência internacional em Manchester, na Inglaterra. Enquanto Jennifer Graves defendia que o cromossomo Y dos mamíferos estaria fadado a um desaparecimento gradual — tanto que alguns roedores já sumiram do mapa devido a uma degeneração contínua e rápida desse cromossomo —, Jennifer Hughes, embora concordasse com o histórico degenerativo do cromossomo, argumentava que o fenômeno já estaria estagnado em humanos. Passada uma década, ainda não temos certeza a respeito do destino do cromossomo Y, a despeito de muitas pesquisas apontarem para seu contínuo apagamento.

O sexo dos animais é determinado por fatores ambientais como a temperatura, ou genéticos, por meio da combinação de cromossomos específicos, como o X, Y, Z e W. Entender todos os aspectos que regem a determinação sexual não é simples. O que encontramos nos livros de biologia é que em mamíferos o sexo é estabelecido por cromossomos sexuais, sendo um herdado da mãe (o X) e outro do pai (o X ou o Y).

Arte ilustra uma mulher vestida de mágica segurando uma varinha com uma mão e, com a outra, ela tira da cartola uma letra Y
Ilustração: Julia Jabur - Instituto Serrapilheira

Embora existam exceções, em geral as mulheres têm um par de X e homens um X e um Y. Há milhões de anos, os X e Y dos mamíferos eram muito semelhantes em tamanho e função, mas com o tempo o Y foi ficando para trás. Atualmente, o X humano abriga cerca de mil genes que codificam proteínas com diferentes papéis no organismo, da determinação da genitália ao desenvolvimento cerebral e à cognição. Já o Y ficou com somente cerca de 50 genes, incluindo o SRY, um dos responsáveis por comandar o desenvolvimento dos testículos.

Mas alguns mamíferos seguiram um caminho diferente. Ornitorrincos fêmeas, por exemplo, apresentam dez cromossomos X, e os machos, cinco pares de X e cinco pares de Y. No outro lado do espectro, uma espécie de toupeira da Europa perdeu em definitivo o cromossomo Y ao longo das gerações: machos e fêmeas carregam apenas um X, ou seja, outros cromossomos devem abrigar genes responsáveis pela determinação do sexo.

Além dessa toupeira, sabe-se que outra espécie de roedor, este no Japão, já não tem o antigo Y, o rato Tokudaia osimensis — ele não possui mais o gene SRY, e os genes encarregados da produção de espermatozoides foram translocados para um cromossomo compartilhado por machos e fêmeas. Os pesquisadores encontraram uma diferença entre os sexos no gene SOX9, que é duplicado nos machos. Humanos também possuem SOX9, que é ativado pelo SRY e tem um papel-chave na determinação do sexo masculino. Como os ratos japoneses perderam o Y e também o SRY, a hipótese é que a duplicação do SOX9 seja o botão que leva ao desenvolvimento da genitália nos machos.

Que futuro terá o Y entre os humanos? Estimativas que levam em consideração o surgimento dos cromossomos sexuais há 160 milhões de anos, e o tempo necessário para que o Y perdesse 95% de seu conteúdo, aventam que resta ao Y uma expectativa de vida entre 11 milhões a alguns milhares de anos. A possibilidade de seu fim é um fato, quando então formas alternativas de determinação do sexo tomariam seu lugar. Caso isso aconteça, outra mudança ainda maior pode surgir: se os novos sistemas evoluírem de modo desigual em distintas populações, espécies diferentes de humanos poderão surgir mundo afora...

Enquanto o papel do cromossomo Y segue garantido ao menos na atual geração, evidências recentes sugerem que alguns genes localizados nele podem estar relacionados a aspectos da saúde do homem, influenciando a resposta imune e inflamatória, e aumentando ou diminuindo o risco para certas doenças. Assim, com o desaparecimento do Y surgiriam outros complicadores.

Não sabemos se os homens XY existirão para sempre, mas nas próximas décadas a ciência deverá elucidar parte desse quebra-cabeças. Novos estudos já vêm reforçando a existência de genes relacionados ao desenvolvimento dos ovários e dos testículos que estão fora dos cromossomos sexuais, provando que os mecanismos de determinação do sexo são muito mais complexos e fascinantes do que se imaginava.

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Rossana Soletti é doutora em ciências morfológicas e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

O blog Ciência Fundamental é editado pelo Serrapilheira, um instituto privado, sem fins lucrativos, que promove a ciência no Brasil. Inscreva-se na newsletter do Serrapilheira para acompanhar as novidades do instituto e do blog.