sábado, 1 de março de 2025

MARCELO RUBENS PAIVA Eunice Paiva ainda está aqui, FSP (Belíssimo)

 Marcelo Rubens Paiva

Escritor e dramaturgo. Autor, entre outros livros, de "Feliz Ano velho", "Malu de Bicicleta" e "Ainda Estou Aqui"

Alguém com Alzheimer morre aos poucos. Sua alma se evapora antes de o físico derreter. Por vezes, falávamos da minha mãe no passado, apesar de ela estar por perto, imóvel, numa cadeira de rodas. Por vezes, ela tinha lampejos de lucidez. Foi numa dessas, que reclamou: "Ainda estou aqui".

Sim, mãe, logo corrigíamos, sabemos disso, nos desculpe. Com a doença avançando, a morte se aproximando, as dores aumentando, as idas e vindas a hospitais, um sentimento devastador atingiu a todos, o que é natural, inevitável, crucial, de quando chegará o descanso final, já que no descaso da vida ela aprontou mais uma.

A imagem em preto e branco mostra um grupo de seis pessoas posando em frente a uma parede com janelas arqueadas. Há três mulheres à esquerda, uma criança do meio, e duas mulheres à direita. As mulheres estão vestidas de maneira casual, com uma delas usando uma blusa escura e outra uma saia. A criança está usando uma camisa estampada. A imagem contém uma legenda na parte inferior que menciona a reprodução da família do deputado Rubens Paiva, com a data de 08.12.95 e o nome do fotógrafo Eduardo Simões.
A família de Rubens Paiva, pai de Marcelo Rubens Paiva (segundo na foto), dias depois da sua prisão no bairro do Leblon, em março de 1971 - Eduardo Simões/Arquivo Pessoal

Ela viu, mas não registrou, ou talvez tenha feito, os resultados da Comissão Nacional da Verdade, a condenação em 2014 pela Justiça do Rio de Janeiro dos torturadores de seu marido, a ascensão da extrema-direita, a repercussão do livro "Ainda Estou Aqui", a histeria e polarização das eleições de 2018. Não viu cartazes pedindo o AI-5, ou pior, "Ustra vive".

Carregava o fardo do Alzheimer há mais de quinze anos e morreu justamente no dia 13 de dezembro, nos cinquenta anos do AI-5. A grande satisfação foi ver no Jornal Nacional uma matéria de mais de dez minutos sobre ela, ouvir Heraldo Pereira, apresentador da GloboNews, dizer que morria uma brasileira amorosa, lúcida e que sempre atendeu bem e respeitou a imprensa, com só uma menção à data do AI-5.

No velório e enterro, surpresa: apareceram amigos de toda a vida, amigos das minhas irmãs, meus amigos. O Bloco Acadêmicos do Baixo Augusta compareceu em peso. Amigos roqueiros dos anos 1980 ajudaram a carregar o caixão. No enterro, eu me emocionei: "Mãe, você está sendo carregada por dois punks, dois pós-punks, um trotskista, petistas, tucanos, diletantes, poetas, boêmios e até por um palhaço dos Parlapatões".

No cemitério do Araçá, na capital paulista, foi levada ao mausoléu dos Facciolla, uma casinha mediterrânea azul e branca que, da avenida Doutor Arnaldo, dá para ver o telhado e parte da fachada —sempre que passo de ônibus ou carro, vejo e aceno. Foi enterrada com sua mãe, suas tias e tios, cujas plaquinhas indicavam a data da morte, mas não a do nascimento. Eram parentes italianos que não sabiam o dia em que nasceram.

É para cá que quero ser trazido, quando morrer, avisei em alto e bom som. Cada nome, uma fotinho. A da minha mãe é uma em que ela sorri. Ao final, não poderia faltar: Eduardo Suplicy, o único político presente, cantou a pedidos "Blowin in the Wind". Empostava a voz como se estivesse num comício. Pôs na letra toda a emoção que nem Bob Dylan tinha imaginado quando a compôs.

A missa de sétimo dia foi na capela modesta do Sion de Higienópolis, para quem ela, quando menina, fez campanha para arrecadar dinheiro para a compra de tijolos. Minha mãe era católica. Quando me via lendo sobre anarquismo, minha camiseta do Sex Pistols, ou lia os primeiros textos em que publiquei, para fanzines punks, perguntava se eu não acreditava em Cristo. Logo ela, neta do anarquista italiano Pedro Donatti, que veio ao Brasil em fuga com duas filhas. Ela me mandava prestar atenção na ética cristã e me fez ler livros da teologia da libertação. Foi essa ética que seguiu e moldou a heroína brasileira que agora o mundo conhece.

Meses após sua morte, sonhei com ela, não com Alzheimer, mas com a mãe com quem convivi intimamente nas décadas de 1980, 1990, aquela que virou conselheira e amiga. Estava feliz, realizada como advogada, com planos. Nas fotos da época, sempre aparece surpreendentemente sorrindo ou gargalhando. No sonho, me lembro de entrar no seu antigo apartamento, com os móveis da minha infância, com o cheiro de sempre, a luz de sempre. Me lembro de entrar, vê-la, abraçá-la e dizer: "Preciso tanto de você...".

Na pandemia, um dos programas que eu fazia com meus dois filhos era visitar cemitérios. A quinze minutos a pé, visitávamos dois. Não foram ao enterro da vovó, mas conheceram seu túmulo. Corriam como se estivessem num parque. Examinavam outros túmulos, viam nomes, datas, fotos. Alfabetizavam-se lendo epitáfios. O cemitério do Araçá tem uma paz e um silêncio que eram bem-vindos naquela época.

Para Sebastião, o mais novo, a cruz era uma espada. Perguntou se um dia vai morrer, se Jorge, seu melhor amigo, também, e se eles podiam viver na casinha da vovó depois que morrerem, porque é "muito fofinha".

Mas o nosso favorito era o cemitério São Paulo. Estão lá o general Miguel Costa, comandante da Coluna Prestes, combatentes mortos na Revolução Constitucionalista de 1932 e os estudantes símbolos do movimento. No mausoléu, incríveis esculturas de soldados com rifles e baionetas. Esculturas de Victor Brecheret, que está enterrado lá, num túmulo modesto, com a foto dele e de sua mulher. Ossos e caixões (caveiras, uma obsessão infantil) não são retirados. Viram pó, nos explicou um coveiro. "Caveira é coisa de cinema. Tudo esfarela."

Em agosto passado, embarcamos nós três para Veneza, para a estreia do filme "Ainda Estou Aqui". A família toda nos encontrou em Veneza —minhas irmãs Veroca, Babiu e Nalu, os tios Avê e Daniel, os primos Chico e Juca, com seu marido Márcio, mais primos, amigos e agregados. Após cinco dias na Itália, fomos todos de volta a Paris, na casa da Nalu. Estava dada a largada para a fama internacional da saga de Eunice e da admiração de todos.

"Ainda Estou Aqui" estreou nos cinemas brasileiros exatamente no dia do nascimento da dela, 7 de novembro, quando faria 95 anos. Virou um fenômeno. Fernanda Torres fez uma foto diante do túmulo dos Facciolla. Virou visitação pública —algo assustador, mas compreensível.

Em 1966, minha família se mudou para o Rio de Janeiro depois que meu pai voltou do exílio. A casa que alugara, aquela do filme, estava ainda em reforma e, como engenheiro, ele mesmo tocava a obra, que nunca acabava. Fiquei sozinho com meu pai no Hotel Glória, prédio enorme, clássico.

Não tinham começado as aulas. Eu passava o dia sozinho pelos corredores do hotel. À noite, dormia com meu pai, na grande cama de casal. Via seu barrigão branco respirar. Era muito confortável deixar a cabeça nela. Subia e descia. Era lisa, branca, quente. Me sentia honrado e protegido por estar sozinho com ele.

Depois do susto do que aconteceu dois anos antes, sem poder sair, com seus amigos, numa embaixada em Brasília, de perder o cargo de deputado federal e de mudarmos de cidade repentinamente, e de escola, como em fuga, eu estava em paz ali com ele. Estava tudo calmo.

No hotel, todos já me conheciam, cuidavam de mim, eu tinha direito a comer o que quisesse, passava horas na piscina. Certa tarde, entediado, vi um botão vermelho de emergência ao lado do elevador. A curiosidade foi mais forte. Apertei o botão, só para ouvir como era. Acontece que estourei o alarme do hotel e, por mais que eu apertasse de novo, ele não parava.

Corri em pânico de volta para o quarto e, ciente de que fizera algo muito errado, me escondi debaixo da cama. Vi pela fresta da porta um corre-corre de hóspedes e funcionários. Achei que, por algum motivo, estavam atrás de mim. Sabiam que era eu, aquele garoto, que tinha feito a molecagem. Conseguiram desligar o alarme, e a calmaria voltou. Acabei dormindo ali, debaixo da cama, sobre o grosso carpete.

Que alegria me deu quando, muito mais tarde, vi meu pai ajoelhado, me olhando, me oferecendo os braços para sair debaixo dali. Estava com a roupa de trabalho ainda. Nem perguntou nada. Caímos junto na cama. Eu o abracei. O calor de seu corpo, sentir sua respiração, sua mão nas minhas costas, me deu a segurança de um escudo. Nunca me senti tão protegido na vida. Quero muito que meus filhos sintam o que senti nesse dia. Quero que sintam isso todos os dias.

Registrei tudo isso num livro novo. Não consigo evitar. Explorar a dor e a saudade escrevendo é compulsivo. Conto do ex-boêmio do Baixo Augusta que virou pai aos 50. Da separação, quando os filhos eram bebês. Das lembranças de como fui educado para aprender a ser pai e, eventualmente, mãe. De como atravessar um isolamento social. De como, como a maioria dos artistas, sobreviver a um governo que considerava a cultura inimiga. O livro desse tempo, desse "novo normal", em que dizíamos "ninguém larga a mãe de ninguém", se chamará "O Novo Agora". Mas poderia se chamar "Ainda Estão Aqui". Porque os ancestrais estão conosco. Sempre estarão.

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

Giambiagi: ‘Precisamos de um capitalismo que leve ao progresso sem abandonar o campo democrático’, OESP (definitivo)

 BRASÍLIA – Fábio Giambiagi é um economista liberal que possui, pelas suas próprias palavras, “um pacto inegociável com a democracia”. Em seu novo livro, “A Vingança de Tocqueville – A importância do bom debate”, que chega às livrarias nesta sexta-feira, ele revê a história econômica do Brasil nas últimas décadas e se questiona: onde foi que o Brasil se perdeu?

Uma das vozes mais influentes sobre contas públicas no País, ele critica a política econômica dos governos petistas e lamenta o fato de Lula ter se afastado da “frente ampla” que o elegeu na última eleição. Giambiagi, por outro lado, não deixa de lamentar o que chama de “escorregão” do liberalismo econômico brasileiro, que passou a apoiar Jair Bolsonaro – no que classifica como “uma página sombria” da direita brasileira.

“Se o cara não for democrata, estou fora. Democracia é, para mim, essencial como o ar que eu respiro. Acho que falta à nossa direita definir esse risco de giz no chão e dizer o seguinte: até aqui eu vou; daqui para frente, isso é inaceitável”, diz.

Filho de argentinos, ele lembra, em conversa com o Estadão, do sequestro do tio durante a ditadura no país vizinho, e diz não ter dúvidas de que houve tentativa de golpe de Estado no Brasil entre os meses de dezembro de 2022 e janeiro de 2023. A seguir, os principais trechos da entrevista.

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O livro tem um título enigmático: ‘A Vingança de Tocqueville - A importância do bom debate’, em referência ao pensador francês do século XIX. Por que esse nome?

É obviamente provocativo e está relacionado ao fato de que gosto muito de frases. Há uma frase de Alexis de Tocqueville, que talvez seja o maior teórico da democracia, que diz: “É preciso que os governantes se apliquem em dar aos homens esse gosto pelo futuro. E que, sem o dizer, ensinem a cada dia aos cidadãos que a riqueza, o renome, o poder são o preço do trabalho. Que os grandes triunfos se encontram situados ao cabo dos longos desejos, e que nada se obtém de durável senão aquilo que se adquire com dificuldade”. Então, a essência do livro é o seguinte: os países que deram certo, não foi porque alguém teve um lampejo, o governo inventou algum programa, uma empresa inventou alguma coisa. Foi por um conjunto de medidas que foram construídas ao longo de décadas.

E o mundo hoje é bastante imediatista.

A ideia da vingança de Tocqueville é: nesse mundo – vale tanto para as pessoas como para os países – de procura do sucesso imediato, do enriquecimento imediato, a mensagem é a seguinte: isso pode dar certo para uma ou outra pessoa, mas a maioria vai ter que trabalhar duro. Eu fico, como cidadão, entre abismado e deprimido. Há influencers que orientam adolescentes a largar a escola, porque assim iriam enriquecer mais rapidamente. Veja que crime contra o país, eu não recomendaria isso para um filho. O que faz sentido, ao contrário, é o que dá retorno no longo prazo. E, obviamente, numa democracia, isso é um desafio – particularmente numa democracia com essa polarização absurda e doentia que estamos vendo nos últimos dez anos, e que não nos leva a lugar nenhum.

Como o sr. avalia o Brasil nas últimas décadas?

O Brasil é uma situação daquelas típicas de copo meio cheio e meio vazio. Em um dos últimos capítulos, tem um quadro no qual eu listo as reformas feitas no País desde o governo Collor. E é um conjunto bastante respeitável de reformas que começam lá com as privatizações. Todo o esforço de estabilização, as reformas do FHC, mais recentemente, do Temer. Quando você vê isso, você vê um país que, mesmo que aos trancos e barrancos, institucionalmente, vai avançando e fazendo progresso.

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Qual seria o copo meio vazio?

Em 1984, eu tinha 22 anos e, como estudante, eu estava na famosa Passeata das Diretas, no Rio de Janeiro, na Candelária, pedindo eleição de governador e para presidente no final do governo militar. Então, quando eu comparo o Brasil de hoje com o que a gente achava que seria um país democrático em 2025, quando eu tivesse 60 anos – ou seja, no longuíssimo prazo –, não há como não haver um sentimento de decepção, de frustração.

Seus pais são argentinos. Como você compara os dois países?

Quando eu vejo a Argentina de hoje, não há como não haver um sentimento de fracasso, porque praticamente não há nada a ser resgatado. O Brasil, mal ou bem, teve três avanços importantes. O primeiro é o da redemocratização. Eu sou filho de argentinos, e dois dias antes de a gente se mudar para o Brasil o meu tio foi sequestrado por agentes da ditadura. Naquela época, as pessoas sumiam, mas felizmente ele é um dos poucos casos que em que reapareceu, em 1976. Então, eu tenho um pacto com a democracia que não pode ser negociado. Se o cara não for democrata, estou fora. Democracia é, para mim, essencial como o ar que eu respiro.

Quais os outros dois avanços?

Depois tivemos um segundo avanço inequívoco, associado, obviamente, à gestão do presidente Fernando Henrique, que foi a estabilização e, na primeira metade da década, os avanços sociais, associados ao governo de Lula. Na década de 2010, por outro lado, foi quando o Brasil se desencontrou de si mesmo, e o que falhou miseravelmente foi a política.

Como o sr. vê a polarização política atual?

Este é um livro assumidamente de um órfão. No sentido de que você, como cidadão, procura ter uma representação política, alguém que diga: essas ideias me representam independentemente da possibilidade de conviver civilizadamente com o adversário que ganha as eleições legitimamente e que tem direito a esse poder durante quatro anos. O que ocorre é que há uma fração da sociedade que, creio, não se identifica com nenhuma dessas duas visões (do campo político atual). De alguma forma, o livro espelha um pouco esse sentimento de uma parte da sociedade.

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O sr. acha que o Lula abandonou esse eleitor de centro, da frente ampla?

Lula se elege no espírito da frente ampla, em defesa da democracia, e o que ele faz logo depois de assumir? Ele joga fora todo o esforço que tinha sido feito. Começou com a Petrobras, cujo elemento fundamental era a harmonização dos preços com o resto do mundo. Depois, xingou o presidente do Banco Central, se reuniu com Nicolás Maduro. Então, ele chuta o balde da frente ampla. É um espírito (de união) que foi jogado no lixo.

Giambiagi: Lula 'chutou o balde' da frente ampla depois de eleito

Para economista, distanciamento do presidente dos eleitores de centro é grande erro político do governo

O sr. acha que esse é o grande erro deste governo?

Sem dúvida nenhuma. E do jeito que ele está levando a economia, o PT dificilmente vai ter uma outra oportunidade, com esse tipo de políticas equivocadas.

O sr. enxerga alguma forma de superar a polarização?

Acho que essa possibilidade só vai surgir depois que a gente tiver superado a dicotomia entre duas pessoas, Lula e Bolsonaro. Então, eu sou bastante pessimista em relação ao curto prazo, porque são as duas figuras que continuam dominando a política brasileira.

Há um trecho no livro em que o senhor fala que a direita escorregou ao apoiar o bolsonarismo e que essa seria uma página sombria da direita do país, da direita liberal.

Nos últimos 15 anos, fui vendo pessoas com quem eu ficava em uma situação ambígua, porque eram pessoas que gostavam genuinamente de mim, das coisas que eu escrevia, mas que, em um determinado momento, eu vi que, politicamente, estavam em outro campo. No limite, estavam dispostas a abrir mão de princípios dos quais eu não abro mão. Então, se eu entendo que deve ter alguma aproximação entre pessoas que pensam diferente, nós temos que tentar conduzir o País na linha de um capitalismo que leve ao progresso, mas sem abandonar o campo democrático. E, realmente, lamento que expressões dessa direita tenham, como se diz popularmente, passado o pano para desvios absolutamente inaceitáveis, como a gente está voltando a ver nos últimos dias. Não é preciso desenhar mais que houve uma tentativa de golpe de Estado no Brasil entre dezembro de 2022 e janeiro de 2023. Acho que falta à nossa direita definir esse risco de giz no chão e dizer o seguinte: até aqui eu vou; daqui para frente, isso é inaceitável.

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Giambiagi: 'Não é preciso desenhar mais que houve tentativa de golpe de Estado no Brasil'

Para economista, Brasil precisa de capitalismo que leve ao progresso sem abandonar a democracia

Como o sr. avalia a condução da política econômica pelo ministro Fernando Haddad?

A impressão que dá para quem está de fora é que o presidente parece ilhado e, certamente, o ministro não consegue ter ascendência sobre ele. E, como todo mundo sabe que o presidente pensa uma coisa e o ministro gostaria de ir para outro lugar, ficamos numa situação que é muito ruim para o País politicamente, porque, se o ministro leva a melhor, parece, diante da opinião pública, que ele está derrotando o presidente. E, se o presidente leva a melhor, o ministro aparece como um ministro fraco.

O governo elevou bastante o gasto social, mas popularidade está em queda. Não existe uma contradição nesses números?

A popularidade no mundo de hoje, frenético, das mídias sociais, está associada não apenas a fatos concretos da economia, mas à forma com que determinadas interpretações se disseminam. Digamos que você tenha sido eleitor da Simone Tebet no primeiro turno de 2022 e do presidente Lula no segundo turno, dentro daquele espírito da frente ampla. Aí, você vê a presidente do PT elogiando o Nicolás Maduro. Se o entrevistador te perguntar o acha do governo, você vai dar nota ruim, mesmo que reconheça que a economia possa estar melhor ou razoável. Por outro lado, o gasto social aumentou muito nos últimos 20 anos. O Bolsa Família, no passado, pagava R$ 200 por mês a 13 milhões de famílias e hoje paga mais ou menos R$ 700 por mês a 22 milhões de famílias. Num país que faz progresso, isso não vai fazer mais sentido. Então, o sucesso do Bolsa Família, que no passado era associado à métrica do aumento do número de pessoas, no futuro vai ter que estar associado à redução do número de beneficiários. Se você tinha 13 milhões de beneficiários no passado e tem 21 milhões de beneficiários hoje, e a taxa de desemprego é menor do que no passado, tem alguma coisa que não está funcionando.

O governo enviou medidas de contenção de gastos no ano passado que foram desidratadas no Congresso. Como o sr. vê o ajuste fiscal?

Temos que envolver o Legislativo e o Judiciário nessa discussão. O que a gente tem que fazer é olhar os números, pensar qual é a política ideal, mas depois contrastá-la com a realidade orçamentária e ver quais são as prioridades. É preciso discutir com um pouco mais de racionalidade as nossas políticas públicas. Eu tenho procurado me esforçar nessa linha com meus livros, mas confesso que, até agora, acho que possa estar tendo pouco sucesso.

Hélio Schwartsman Trump já deu um golpe?, FSP

 


SÃO PAULO

Patrícia Campos Mello, como sempre, levanta ótima questão. Já dá para chamar de golpe o que Donald Trump está fazendo nos EUA?

A própria Patrícia, recolhendo comentários de historiadores, cientistas políticos e outros analistas, constata que é crescente o número de especialistas, da esquerda e da direita, de Timothy Snyder a Anne Applebaum, que classificam algumas das ações de Trump como ruptura institucional, que é uma das definições de golpe.

Um homem sentado à mesa em um escritório, com as mãos sobre um documento. Ele usa um terno escuro e uma gravata vermelha. Ao fundo, há bandeiras e outros objetos decorativos típicos do Escritório Oval.
O presidente dos EUA, Donald Trump, no Salão Oval da Casa Branca - Evelyn Hockstein/Reuters

Existem golpes insofismáveis, como quando militares destituem um presidente (Chile, 1973) ou quando um presidente fecha o Legislativo e o Judiciário (Peru, 1992), mas, especialmente nos dias de hoje, a maior parte das descontinuidades constitucionais se desenrola de modo mais ambíguo.

Caíram de pau em cima do Lula quando ele disse que a democracia é relativa, mas, conceitualmente, ele tem razão. A democracia não é um estado binário, que se materializa ou não se materializa, sem admitir nuances. A melhor prova disso é que existem vários rankings de democracia, que a analisam em várias dimensões e atribuem notas a cada país avaliado.

A democracia é um espectro —e Trump, sua assombração. Com o novo presidente, já está contratada uma boa dose de erosão institucional. Mas daí não decorre, pelo menos não necessariamente, que os EUA caminham para uma ditadura escancarada ou mesmo para um autoritarismo explícito. Assim como a democracia comporta graus, a regressão institucional vem em "quanta" de diferentes magnitudes.

Trump, embora tenha vencido de forma convincente, está longe de ter-se convertido em unanimidade nacional (no voto popular ele superou Harris por mero 1,5 ponto percentual). E, se há um país que coloca barreiras à chamada ditadura da maioria, são os EUA. Ali, é quase impossível aprovar uma emenda constitucional, para dar um único exemplo.

Daí não se segue que possamos dormir tranquilos. Os EUA são um transatlântico, que não dá freadas. Mesmo pequenos desvios de rota podem destruir tudo o que esteja em seu caminho.