domingo, 19 de maio de 2024

José Henrique Mariante - Céu, sol, sul em tempos de horror, FSP (última coluna)

Aos 88 anos e com um tumor no esôfago, José "Pepe" Mujica fala com desenvoltura sobre a morte. "Nossa maneira de lutar contra a morte é uma luta impossível que sempre perderemos, mas lutamos com amor", declara em entrevista à Folha. Diante do inescapável, "fazemos as perguntas eternas que não têm resposta" e "estragamos tudo, complicamos a vida dos outros bichos".

Mujica diz que temos "muito mais riqueza, mas somos seres piores". O ícone da esquerda e ex-presidente do Uruguai não se referia a Porto Alegre, Canoas, São Leopoldo, Eldorado do Sul, Pelotas ou Taquara, mas é fácil transpor suas palavras, sua dura constatação, ao que se passa no Rio Grande do Sul. A água subiu na capital gaúcha assim como inundou muitas localidades do Maranhão, há alguns meses, e desceu morro abaixo em São Sebastião, há pouco mais de um ano. Água que sumiu assustadoramente na Amazônia e despencou em Dubai. Somos e continuaremos piores enquanto não pararmos de estragar o planeta, isso já parece óbvio.

É evidente o papel do jornalismo profissional diante da tragédia. Saímos de descrições tolas como "desastre natural" para a narração explícita de extremos da crise climática em questão de anos. Por força das evidências, mas também por decisão editorial. Há muito mais a fazer, no entanto.

Nestes dias em que os centímetros do Guaíba são acompanhados pelo país como números da Mega-Sena, a Folha conversa com o diretor de exploração da Petrobras, que minimiza a polêmica em torno da Foz do Amazonas, sem ser questionado sobre o colapso socioambiental no Sul.

Ao Valor Econômico, o secretário do Ministério da Fazenda, que agora ocupa assento no conselho da estatal, afirma, com absoluta tranquilidade, que o país será um dos últimos a deixar a produção de petróleo, pois o nosso é mais limpo.

Um garoto de costas para o leitor observa um sol amarelo à sua esquerda, ele tem os pés mergulhados na lama.
Carvall/Folhapress

Folha faz editorial em "termos fortes", como descreve um leitor, achincalhando a intervenção do Planalto na Petrobras, mas não gasta nenhuma das pesadas linhas com a responsabilidade da empresa na indução de uma transição energética minimamente coerente com o momento do país.

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São apenas exemplos da semana. Nada que comova como o cavalo Caramelo, a disputa pelo mérito de salvá-lo, a politização em torno da reconstrução, a desinformação e tudo mais que movimenta a mídia.

Esse é o problema. A imprensa parece satisfeita em pontuar os efeitos da crise climática, mas não a ponto de torná-la o item mais relevante de sua pauta. Não há nada mais importante no jornalismo atual. A tragédia não é em Porto Alegre ou no Rio Grande do Sul. A tragédia é de todos nós em todos os lugares, dado que é imensa a chance de o espectador atônito de hoje se tornar o personagem de amanhã.

Com a inestimável ajuda dos leitores, encerro com esta coluna três anos de crítica à Folha e uma campanha franca para que a questão ambiental se torne a prioridade das prioridades em um dos jornais brasileiros que mais lhe dá atenção. São tempos de horror, estamos muito longe do suficiente.

CAMPANHA

Se os últimos parágrafos transpiram certo ativismo, aqui ele se materializa. Há muitas colunas atrás, este ombudsman sugeriu que a complexa cobertura da Amazônia merecia um consórcio de veículos de imprensa semelhante ao montado na pandemia para combater a desinformação do governo Bolsonaro; é muito território e muito problema para poucos repórteres, não há orçamento que chegue.

Diante da espetacular onda de solidariedade gerada pela tragédia no Rio Grande do Sul, seria muito interessante que TVs, sites e jornais aproveitassem o ensejo para promover uma grande frente de letramento ambiental. Junto com o estímulo às doações a desabrigados, levar a sociedade a refletir e quantificar o quanto os próprios hábitos e votos na vida real ou virtual protegem ou prejudicam o planeta.

Há algo intrínseco que nos faz ajudar o próximo. Daremos um grande passo quando incluirmos no pacote algumas atitudes, notadamente as que evitamos por conveniência, preguiça ou ignorância.

É O MEU TAMBÉM

A casa de Mujica, registrada em foto na entrevista à Folha, lembra Porto Alegre. Talvez pela cozinha que mistura coisas, livros e alimentos nas prateleiras; é o lugar em que se passa a maior parte do tempo, onde há o calor do forno, do mate, da conversa. No fim de uma reportagem do Jornal Nacional, que faz intensa cobertura, a memória vem de novo. É preciso ser gaúcho para identificar nos poucos segundos da imagem do ginásio que distribui mantimentos os versos que os voluntários cantam: "É o meu Rio Grande do Sul, céu, sol, sul, terra e cor...". O piegas sucumbe rápido à nostalgia. Que o sol apareça e nos faça pensar antes de continuarmos a estragar tudo de novo.

 

Hélio Schwartsman- A gangue de três, FSP

Neel Burton (Oxford) escreve copiosamente sobre psiquiatria, filosofia e vinhos. "The Gang of Three: Socrates, Plato, Aristotle" é o primeiro de seus livros que leio. Gostei. Não é que Burton ofereça uma nova interpretação revolucionária sobre o pensamento desses filósofos. Pelo contrário, ele vai numa linha bem clássica, que descreve o surgimento da filosofia como uma passagem do "mýthos", isto é, do discurso poético ou religioso, para o "lógos", a razão.

Na ilustração, diante de um templo grego, dois homens representando os filósofos Platão e Aristoteles, usando trajes da época da Grécia Antiga, carregando livros e conversando; do lado direito da cena, uma estátua de Sócrates.
Annette Schwartsman

O que me chamou a atenção positivamente em "The Gang..." é a contextualização histórica. Na graduação, li histórias da filosofia escritas por autores franceses que, talvez por acreditarem na prevalência das ideias, eram econômicos, para não dizer pães-duros, nos elementos biográficos. Não é o caso de Burton. Ele fala dos irmãos de Aristóteles, Arimneste e Arimnesto, e vai aos detalhes das várias tentativas de Platão de implantar no mundo real, mais especificamente na corte do tirano Dionísio de Siracusa, as ideias que defendeu em "A República". Desnecessário dizer que todas elas fracassaram estrondosamente. Numa, a segunda, Platão chegou a ser posto sob "guarda de honra", que é um eufemismo para preso. Mas foi por pouco tempo.

Também achei interessante a arquitetura que Burton escolheu para sua obra. No caso de alguns dos diálogos mais importantes de Platão, como "A República" e"Teeteto", além da "Ética a Nicômaco", de Aristóteles, ele oferece valiosos resumos livro a livro, que nos permitem captar não apenas as teses defendidas como também a estrutura geral da argumentação. É só depois dessa exposição mais descritiva que Burton introduz seus comentários.

Numa observação menos positiva, devo dizer que fiquei chocado com a quase inexistência de notas. Até entendo que é uma obra dirigida ao público geral, não a especialistas, mas, mesmo assim, seria importante mostrar de onde vêm os ótimos achados descritos no livro.

 

Monocultura vai tomando conta da internet, Ronaldo Lemos, FSP

 No século 18, oficiais da Prússia tiveram uma ideia que parecia genial: reorganizar as florestas do país. Em vez da configuração selvagem original, replantar tudo de forma organizada. Árvores e plantas consideradas úteis foram colocadas juntas em fileiras definidas, trocando diversidade florestal por monoculturas.

Quando a primeira colheita chegou, anos depois, a fortuna gerada foi extraordinária. A madeira e os insumos colhidos foram abundantes como nunca se havia visto. O problema foi o desastre que se seguiu. As monoculturas foram devastadas por inanição, levando à eliminação de florestas inteiras na Alemanha. Surgiu até nova palavra em alemão: "Waldsterben", a morte da floresta. Esse termo marca até hoje o fracasso da monocultura.

Corte para o mundo de hoje.

Essa história recontada por Maria Farrell e Robin Berjon no artigo "É preciso tornar a internet selvagem de novo" serve de lição para os tempos atuais. Não é só a natureza que sofre com a monocultura. A internet como a conhecemos também.

Se a rede de 1994 a 2009 operava como um ecossistema ainda selvagem, onde a descentralização e a imprevisibilidade eram a regra, o que veio a partir dos anos 2010 lembra o caso da Prússia.

Google, que agora é buscador e "informador", é só um dos inúmeros exemplos de perda de diversidade da internet em curso - AFP

A diversidade foi sendo substituída por espaços controlados e fechados. Tanto os serviços da rede, como a sua infraestrutura, são cada vez mais concentrados nas mãos de poucas grandes empresas. Com a chegada da inteligência artificial, a aposta na monocultura está sendo dobrada.

Veja-se o caso do serviço novo do Google, chamado "Google Overviews", anunciado na terça da semana passada. A ideia é que quando alguém fizer uma busca na plataforma, o resultado não seja mais somente uma coleção de links clicáveis. Haverá um resumo das informações disponíveis sobre o tema pesquisado, feita por inteligência artificial, e mostrada para o usuário para fins de conveniência no site da plataforma.

A preocupação é que o usuário fique satisfeito com o que está vendo no buscador e não se dê ao trabalho de sequer clicar nas fontes originais. Com isso, o tráfego que hoje é distribuído para inúmeras páginas indexadas, passa a ficar concentrado no próprio buscador. Que, aliás, deixa de ser buscador e se torna também "informador".

O caso do Google é só um dos inúmeros exemplos de perda de diversidade da internet em curso. Já falei disso em outras colunas, inclusive em uma que tratou da hipótese de que a internet está morrendo.

O que fazer em face da monocultura? A solução brasileira foi criar áreas de preservação permanentes, definidas pela lei como "área protegida com a função ambiental de preservar a estabilidade geológica e a biodiversidade, assegurando o bem-estar das populações". Essas áreas obrigatórias em qualquer propriedade derivam do artigo 225 da Constituição, que protege o direito a um "meio ambiente ecologicamente equilibrado".

Esse mesmo pensamento ecológico precisa ser pensado para nossos ecossistemas de informação. Como criar áreas de preservação na internet, em face do avanço das monoculturas? Evitar um "Internetsterben" torna-se tema central para os próximos anos.

Já era – Diversidade da internet

Já é – Monocultura da internet

Já vem – Uma internet feita muito mais por máquinas do que por pessoas