quinta-feira, 15 de outubro de 2020

A hora é de sair da lógica vazia das guerras digitais e avançar nas reformas, só não dá pra tirar férias, FSP

  EDIÇÃO IMPRESSA

Duas narrativas pautaram o debate brasileiro nesta era Bolsonaro. As duas vêm murchando como um balão furado, nos últimos tempos.

Uma delas, governista, conhecida de todos, sempre apostou na versão de Bolsonaro como um Capitão Nascimento capaz de purificar o sistema e destruir o “mecanismo”, como certa vez me explicou um sujeito bastante animado em um desses eventos empresariais.

A narrativa perdeu sua última camada de verniz por estas semanas. Bolsonaro se afasta dos radicaisconsolida a base com o centrãoassiste jogo com o ministro Dias Toffoli, faz as pazes, pela enésima vez, com Rodrigo Maia, ganha afagos de Renan Calheiros e é cortejado pelos partidos tradicionais para uma eventual filiação.

A nossa líder fascista de história em quadrinhos, Sara Winter, jogou a toalha. Salpicaram ativistas na internet dizendo “chega”. Muitos deles foram banidos da internet (de mentirinha, claro) por defender o tal “cabo e soldado” que iria fechar a Suprema Corte.

A segunda narrativa apostou suas fichas na tese do abismo. A ideia saborosa de que havíamos nos tornado uma República de Weimar dos anos 1930, que havia em curso uma conspiração fascista “subterrânea” para terminar de vez com nossa democracia.

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No fim a coisa esfriou. Leio nesta Folha que “Bolsonaro abriu mão da postura de embate para viabilizar o governo”. Bingo. Viabilizar o governo é isso. Negociar, ceder, fazer acordos. “Politics as usual.” A democracia e sua capacidade de moderar e fazer exatamente o que diz a Folha: induzir a turma a abrir mão, lá pelas tantas, de sua “postura de embate”.

Bolsonaro foi se revelando, com o tempo, o que sempre foi. Um político muito mais tradicional do que a boa parte da crônica sempre fez crer. Seu líder na Câmara é Ricardo Barros, um Vermeer da velha política brasileira. Seu ministro mais barulhento despacha de Washington e o país toca a vida em uma animada campanha eleitoral.

Cereja do bolo, nosso “Hugo Chávez brasileiro”, como li de um ilustre e sempre citado cientista político americano, indica um juiz garantista (seja lá o que for isso), saudado pela OAB e pelo mundo jurídico “do bem”, para o Supremo Tribunal Federal.

Alguma dessas coisas me surpreende? Nem um pouco. Como muitas vezes escrevi aqui, raspando um pouco a tinta, nosso “outsider” sempre foi mais “insider” do que quisemos acreditar. E nossa democracia mais capaz de produzir os devidos enquadramentos.

No mais, eis aí Bolsonaro, um político errático (ou “pragmático”, se alguém preferir), sem um projeto para o país, baixa convicção em política econômica e cuja “agenda conservadora” nunca passou de um punhado de frases de efeito.

As narrativas extremas erraram ao julgar o Brasil pela epiderme da política. Pela lógica das guerras digitais a qual pertencem e ajudam a alimentar. Elas são o feijão com arroz de nossas democracias polarizadas. Vão continuar por aí, ofendendo e espalhando ódio, apenas com menos “sex appeal”.

Seu problema sempre foi o mesmo: elas distraem o país das questões que realmente importam. Entulham o debate público de toxina ideológica. Seu resultado é a paralisia. O diálogo de surdos da democracia atual. E mais objetivamente, no Brasil de hoje, a perda de foco sobre a pauta de reformas que o país precisa enfrentar.

A pergunta a ser feita é a seguinte: o país retomará alguma objetividade agora que o fim do mundo não veio e há um momento de relativa distensão?

Rodrigo Maia garante que o Congresso mantém o ímpeto reformista, mas a verdade é que temos hoje menos consenso em torno da reforma tributária do que imaginávamos ter no início do ano.

A reforma administrativa avançou muito pouco e sequer descobrimos um jeito de financiar um óbvio programa de transferência de renda sem quebrar a regra do teto. Se o país decidisse por um momento sair do modo procrastinador, deveria exigir que o Congresso cumpra o aceno feito nesta semana de que irá cancelar o recesso de verão e trabalhar nas reformas.

No fundo, é disto que o país precisa. Menos conversa fiada e uma dose cavalar de senso de urgência.​

Fernando Schüler

Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.

PEDRO DORIA- A coragem de Face e Twitter nos EUA, FSP

 O que Facebook e Twitter fizeram quarta-feira, nos Estados Unidos, é histórico. Cercadas por críticas justas relacionadas a suas condutas em inúmeras eleições — incluindo as que levaram à presidência Donald Trump, em 2016 —, as duas plataformas agiram com incrível coragem numa decisão particularmente difícil. Do ponto de vista jornalístico, porém, uma decisão indubitavelmente correta. Uma decisão que também levanta o debate a respeito da fronteira entre imprensa e redes sociais.

Na mesma quarta, o tabloide New York Post publicou uma extensa reportagem sobre o candidato democrata à presidência Joe Biden e seu filho, Hunter. Na capa, o jornal classificava a matéria como uma bomba capaz até de mudar os destinos do pleito. E as duas redes sociais tomaram a decisão de interferir para diminuir a distribuição da história. É algo que já fazem corriqueiramente com fake news óbvias, mas é uma decisão que se torna mais difícil quando o relato vem de um veículo da imprensa tradicional.

Post, típico tabloide sensacionalista nova-iorquino, pertence a Rupert Murdoch, também dono da FoxNews, canal de apoio a Donald Trump. E este contexto é importante. A reportagem afirma  ter conseguido, através de Rudolph Giuliani, advogado de Trump e ex-prefeito de Nova York, o conteúdo do disco rígido de um computador que pertencia a Hunter Biden e que foi misteriosamente abandonado em uma oficina para consertar. Lá dentro, e-mails comprometedores, fotos pessoais, que indicariam contatos de Hunter com corruptos ucranianos. Entre os e-mails indícios de que o filho teria envolvido o pai quando ainda vice-presidente na história.

Foi por usar o poder da presidência americana para pressionar seu par ucraniano a investigar Biden por um escândalo sem indício concreto que Trump viu aberto contra si um processo de impeachment. A agenda oficial de Biden quando vice, que é controlada, demonstra que um encontro chave citado na reportagem não deve ter ocorrido. O Post publicou fotos privadas de Hunter, portanto algo tem. Mas seus repórteres não apresentaram o caminho que seguiram para determinar a autenticidade e a origem dos e-mails que dizem ter conseguido. E-mails são falsificáveis. E, como fonte, Giuliani é justamente quem está há pelo menos dois anos tentando bancar uma história que, até agora tudo indica, é apenas uma teoria conspiratória.

Não é à toa que o governo Trump vem tentando colar em Biden a pecha de corrupto desde o início de 2019. Sempre foi o candidato democrata que o presidente mais temia enfrentar. Contra um homem abertamente de esquerda como Bernie Sanders, nos EUA, a briga seria mais fácil. Contra um social-liberal centrista é mais duro. Em ano de pandemia no qual a conduta da Casa Branca é criticada, pior.

Quando se publica um material destes, o bom jornalismo precisa dar ao leitor pistas de como conseguiu determinar sua autenticidade. O Post não o fez. Por vir de uma holding que há mais de quatro anos faz campanha aberta para Trump, as razões para editores olharem para o trabalho de reportagem do tabloide com dois pés atrás são evidentes.

Estes são critérios jornalísticos.

Oficialmente, o Facebook reduziu a distribuição das matérias até seus parceiros terceirizados que fazem checagem revejam o material. A conclusão à qual chegarão é evidente e, na rede social, provavelmente seus executivos já a conhecem. A matéria não se sustenta. O Twitter usou outro argumento. Não permite distribuição de conteúdo obtido através de hackers.

São dribles. As duas empresas não querem admitir que usaram critérios jornalísticos para impedir que desinformação circule e afete a eleição. E, ao fazê-lo, tomaram uma decisão politicamente corajosa e correta.

New York Times questiona trabalho de sua repórter sobre terrorismo, FSP

 

A repórter Rukmini Callimachi, do New York Times, se firmou nos últimos anos como uma das grandes especialistas da imprensa em terrorismo. Foi  indicada ao consagrado prêmio Pulitzer por suas investigações sobre as organizações radicais al-Qaida e Estado Islâmico. Virou uma das estrelas daquele jornal americano. Foi tida como um novo modelo de repórter, conectado às redes sociais e capaz de produzir um variado material audiovisual em diversas plataformas.

Até que, no fim de setembro, a polícia canadense acusou um homem conhecido como Abu Huzayfah de ter mentido sobre ter feito parte do Estado Islâmico. Huzayfah é um dos personagens principais do podcast Caliphate, do New York Times, e Callimachi baseou parte de sua premiada narrativa na história dele — que, ao que parece, era falsa. Caíram por terra, assim, algumas das detalhadas descrições de Callimachi sobre como funcionava aquele auto-proclamado califado.

A notícia não ruiu apenas o podcast da repórter. Com as informações divulgadas desde então, ficou evidente que Callimachi, assim como seus chefes, estavam cientes da fragilidade do depoimento de Huzayfah. Ainda assim, decidiram lançar o projeto em abril de 2018, pelo qual colheram loas. Colegas e ex-colegas foram a público, ademais, para questionar o trabalho de Callimachi. O New York Times decidiu investigar algumas das reportagens da jornalista. No domingo (11), o próprio jornal publicou um artigo sobre os problemas no trabalho.

“Ela era tida como  uma estrela — uma posição que a ajudou a sobreviver uma série de questionamentos feitos nos últimos seis anos por colegas no Oriente Médio”, segundo o texto do New York Times. Ela foi criticada por um de seus tradutores, por exemplo. Foi acusada, também, por ter coletado milhares de documentos no Iraque e levado embora. Foi dito que sua abordagem em relação ao terrorismo resvalava no sensacionalismo. E veio à tona um episódio do ano passado, em que especialistas em terrorismo provaram que os documentos usados por Callimachi em outra matéria eram falsos. Veja abaixo, em inglês, alguns dos tuítes desmentindo a apuração dela.

Além do New York Times, outros grandes veículos americanos têm acompanhado a crise em torno do trabalho de Callimachi. O Washington Post, por exemplo, publicou também um longo artigo destrinchando as inconsistências na apuração dela. Mas a questão não é apenas sobre prática jornalística. O trabalho de um repórter como Callimachi tem consequências na elaboração de políticas. Como lembra o New York Times, a apuração dela foi citada por autoridades americanas avessas à migração de muçulmanos aos Estados Unidos. Os textos de Callimachi também influenciaram o debate no Canadá sobre o que fazer com as mulheres de membros do Estado Islâmico.

Para este Orientalíssimo blog, a questão toca em outro ponto importante sobre a cobertura feita pela imprensa em lugares como a Síria e o Iraque. Por vezes, jornalistas não seguem o mesmo rigor que é esperado, por exemplo, de quem escreve sobre os Estados Unidos ou a Europa. Proliferam, ademais, jornalistas que — como Callimachi — não falam árabe e, portanto, dependem de tradutores para conversar com seus interlocutores. Não é raro encontrar em campo jornalistas que pouco ou nada estudaram sobre o Oriente Médio, mas acabam determinando o tom do debate público. Testemunhei isso inúmeras vezes, como correspondente da Folha em Jerusalém em 2013 e 2014.

Ainda há, por outro lado, bastantes entusiastas do trabalho de Callimachi. Ela própria tem compartilhado em seu perfil na rede social Twitter diversas mensagens de apoio e elogios à cobertura. Em uma das mensagens que Callimachi retuitou, Margaret Sullivan — do Washington Post — sugere que parte das críticas à repórter é resultado de ressentimento de seus colegas, inveja por seu sucesso e machismo.