quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Alexa Salomão Maldade empoderada, FSP

 

Extremistas como Sara Winter se alimentam e crescem com ódio, violência e agressão

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Conheci Berlim há um ano. Só então entendi por que tantas pessoas se apaixonam pela cidade. Tem algo na arquitetura que mistura passado e futuro, na coexistência de tantos estrangeiros nos bares, na forma de expressar diferentes culturas nos museus —algo no ar, que coloca o lugar alguns degraus acima na escala evolutiva do convívio urbano.

Exemplo básico. Não há catraca ou policiamento no metrô, mas as pessoas fazem fila para comprar seus bilhetes.

O que mais me marcou, porém, é que Berlim faz questão de lembrar até o que se deseja esquecer. Tudo por lá reforça, a moradores e visitantes, o tempo inteiro, os horrores de um governo de extrema direita, materializado pelo nazismo.

Se você pegar aquele ônibus de turistas, o guia vai associando locais aos fatos, boa parte deles desconfortáveis. Diante da Universidade Humboldt a voz avisa que dali foram retirados 20 mil livros para serem queimados na cerimônia que incinerou publicações de judeus e comunistas em 1933.

O guia poderia enaltecer pesquisadores, elogiar o prédio. Não. Fala da queima de livros.

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Faço o paralelo com Berlim para pincelar como o Brasil está na contramão da evolução que se vê por lá. Anda, inclusive, evitando debates sensíveis.

Um deles? Não discute a ascensão de uma extrema direita nacional, dessas bem ardidas.

Sorrateira, pelas beiradas, ela busca um lugar quentinho para se aninhar na sociedade. Com o discurso de que há comunistas corruptos a combater e bons costumes para defender, vai se esgueirando para dentro da vida dos brasileiros.

Quem acha que estou exagerando precisa refletir melhor sobre a recente repercussão conseguida por Sara Giromini, que prefere ser chamada pelo estiloso nome de Sara Winter.

A moça está cumprindo prisão em liberdade, de tornozeleira, por hostilizar o STF (Supremo Tribunal Federal). O cidadão comum não deu muita bola quando ela marchou por Brasília. Teve gente que riu.
Mas, olhe só, com a maldade empoderada pelas redes sociais, ela criou uma polêmica antiaborto e mobilizou pessoas para expor uma menina de 10 anos, vítima de estupro do tio.

O aborto tinha autorização judicial. Pais e mães de família, porém, saíram de casa para se meter na decisão judicial na porta do hospital. Médicos não atenderam à decisão judicial. A família teve de transportar a vítima de um estado a outro para fazer valer a lei.

Sim. Usei o termo maldade. Extremistas como Sara Winter se alimentam disso, crescem com isso —ódio, violência, agressão. Há algo muito ruim fermentando entre nós. Melhor seria que fizéssemos como os berlinenses.

Alexa Salomão

Editora de 'Mercado'.

Ruy Castro Sem caráter, como toda nuvem, FSP ( essencial)

 A frase é conhecida: “Política é como nuvem —​você olha e ela está de um jeito; olha de novo e já mudou”. Deve ter sido inventada na Europa do século 18, mas, no Brasil, é atribuída ao mineiro Magalhães Pinto (1909-1996). Em março de 1964, como governador de Minas Gerais, ele se passava por aliado do presidente João Goulart. No dia 31, sentindo a mudança na nuvem, partiu para derrubá-lo. Mas, ao contrário do que esperava, não ganhou nada com isso. Bem feito, quem o mandou estar com a cabeça nas nuvens?

Há políticos que mudam tanto que nem as nuvens os acompanham. Vide Jair Bolsonaro. Só os papalvos o acreditavam diferente, mas de hora em hora se parece mais com os políticos que fingia combater. Ao sentir, por exemplo, que suas bravatas o estavam isolando, fez como todos os governos antes dele —comprou o centrão, com ministérios, bancos e verbas. Uma das moedas dessa compra foi passar o pano em Michel Temer e mandá-lo oficialmente ao Líbano.

A Lava Jato, em nome da qual Bolsonaro se elegeu, tornou-se a inimiga a destruir, no que ele se juntou a Lula, José Dirceu, Gleisi Hoffmann, Temer, Eduardo Cunha, Sérgio Cabral, Renan Calheiros, Romero Jucá e, agora, Aécio Neves, Geraldo Alckmin e José Serra, todos, por acaso, políticos cujas contas não fecham.

Há dias, José Sarney insinuou que deseja uma aproximação —que Bolsonaro, se for esperto, aceitará. Sarney é indispensável para qualquer governo que queira se garantir, motivo pelo qual Lula e Dilma Rousseff se deram tão bem com ele durante 14 anos. Bolsonaro, aliás, refreou seu desprezo pelo Nordeste e, como Lula, também decidiu garantir lá os votos para sua reeleição. Mas, para isso, terá de gastar dinheiro que não tem, no que ameaça ser acusado de irresponsabilidade fiscal, como Dilma.

Os bolsonaristas não elegeram um mito, como eles acreditam, mas uma nuvem —sem caráter, como toda nuvem.

O ajuste de Doria, editorial FSP

 

Tucano acerta em buscar equilíbrio fiscal, mas deve esclarecer avanço sobre Fapesp e universidades

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O governador de São Paulo, João Doria
O governador de São Paulo, João Doria - Divulgação

Correto em seus objetivos, embora não necessariamente em todas as suas providências, o projeto do governo João Doria (PSDB) para ajustar as contas da administração paulista em 2021 enfrentará resistências por maus e bons motivos.

proposta enviada à Assembleia Legislativa se justifica pelo impacto da pandemia de Covid-19 sobre a economia, a arrecadação tributária e as despesas públicas.

À diferença da União, que arcou com a maior parte dos custos da crise, governos estaduais e municipais têm reduzida capacidade de endividamento —e, portanto, de manter seus orçamentos em desequilíbrio sem consequências funestas para a prestação de serviços como educação, saúde e segurança.

No caso de São Paulo, estima-se que, se nada for feito, haverá um rombo de R$ 10,4 bilhões entre receitas e despesas no próximo ano, decorrente principalmente da queda da arrecadação. O pacote de Doria busca reduzir esse déficit em R$ 8,8 bilhões, segundo os números divulgados até agora, ainda por serem mais bem detalhados.

Ao que parece, a maior parte do ajuste virá de cortes em benefícios relativos ao ICMS e a outros impostos —um aumento de carga tributária que pode ser justificado se eliminar distorções e privilégios.

Medida de impacto financeiro menor, mas politicamente importante, é a extinção de uma dezena de órgãos, cujas estruturas e tarefas serão revistas e redistribuídas na administração estadual.

Menos compreensível —e desde já objeto de polêmica— se mostra a intenção de avançar sobre recursos das universidades e da Fapesp, a fundação de fomento à pesquisa.

Essas instituições gozam de autonomia que, em termos orçamentários, traduz-se no direito a percentuais fixos da receita do ICMS que podem gerir conforme suas prioridades. O governo Doria, porém, quer se apropriar de eventuais superávits no uso desses recursos.

É verdade que nem sempre essa autonomia foi bem empregada. USP, Unicamp e Unesp, por exemplo, enfrentaram períodos de penúria após destinarem dinheiro demais aos salários das corporações. Mas, assim como arcaram com o ônus das más escolhas, devem fazer jus às vantagens de conseguir manter dinheiro em caixa.

A gestão tucana precisa, no mínimo, defender com maior clareza a conveniência da proposta. A autonomia universitária constitui avanço institucional que pode ser aprimorado, não tolhido.

editoriais@grupofolha.com.br