sábado, 9 de novembro de 2019

Constituição viva, Hélio Schwartsman, FSP

Constituições, embora possam ser emolduradas e guardadas num museu, são documentos vivos. A melhor prova disso é a Carta norte-americana. A peça, que surgiu no bojo de um movimento independentista que prometia liberdade e igualdade para todos, conviveu por mais de 70 anos com a escravidão e, mesmo depois de uma sangrenta guerra civil para pôr fim a essa chaga, passou mais um século sem enxergar contradição entre a “Bill of Rights” (carta de direitos) original e legislações racistas nos estados.
Hipócritas? Com certeza, mas, se políticos e magistrados não tivessem fechado os olhos para essas contradições, os EUA provavelmente nem existiriam na forma como o conhecemos. É que os estados do sul, cuja economia estava baseada na exploração da mão-de-obra escrava, dificilmente teriam se juntado à União.
Meu ponto é que constituições só perduram no tempo, criando uma continuidade nos marcos jurídico-institucionais, porque cortes têm alguma maleabilidade para interpretá-las.
Assim, está dentro do esperado que, num contexto em que a sociedade vê a impunidade como um problema grave, forme-se uma jurisprudência que facilite condenações. Se a percepção é a de que o sistema promove perseguições, é natural que se reforcem as garantias individuais. É nesse quadro que se inscreve a polêmica da prisão após a segunda instância.
O problema não é tanto a mudança de orientação, mas a frequência com que ela ocorre. Cortes constitucionais, afinal, têm não apenas a missão de compatibilizar a Carta com o presente mas também a de fazê-lo preservando a estabilidade jurídica. Dar uma guinada de 180 graus apenas três anos após a decisão anterior parece-me precipitado.
Se as movimentações da corte são percebidas como motivadas por interesses pessoais ou partidários, sua credibilidade vai para o ralo e, com ela, um dos principais mecanismos que permitem manter viva a Carta.
Hélio Schwartsman
Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".

O QUE A FOLHA PENSA Retrocesso penal

STF reverteu instituto que ajudou a mudar a percepção sobre o alcance da lei

O presidente do STF, Dias Toffoli, durante sessão que examinou a prisão de condenados em segunda instância - Xinhua/Lucio Tavora
Não é simples explicar para o cidadão leigo por que o Supremo Tribunal Federal mudou três vezes, em menos de 11 anos, o seu entendimento sobre a possibilidade de um condenado à prisão começar a cumprir a pena após perder a apelação em segunda instância.
A tarefa se complica pois, nesse período curto para a dieta das jurisprudências constitucionais, dois ministros —inclusive o presidente, Dias Toffoli— mudaram de ideia. Gilmar Mendes alterou duas vezes a sua opinião, demonstrando eloquência comparável ao defender A, o contrário de A e novamente A.
O comentário realista diria que este é o Supremo Tribunal Federal de que dispomos. Embora longe do ideal, melhor tê-lo como um  pivô do regime democrático do que qualquer alternativa. De fato.
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Ainda assim, não há dúvida de que a decisão da maioria dos ministros, consumada nesta quinta (7), significa retrocesso, seja para a expectativa de estabilidade na aplicação das normas, seja para a percepção de que a lei atinge a todos, ricos e pobres, sem distinção.
De 2005 —quando nesta Folha o então deputado Roberto Jefferson denunciou um esquema de compra de apoio ao governo— para cá, a única questão substantiva a ser alterada no panorama do direito penal brasileiro foi o aumento da probabilidade de enquadramento de poderosos, nas empresas e na máquina estatal, envolvidos em negociatas com recursos públicos.
O STF foi protagonista nessa trajetória ao julgar com rigor os desmandos revelados no mensalão e ao favorecer a aplicação de instrumentos que ajudaram a recuperar bilhões roubados dos cofres públicos e a condenar figuras que muitos pensavam imunes à punição.
As decisões da corte em 2016, que restituíram a jurisprudência de validar a prisão do condenado em segundo grau, constituíram vigorosa sinalização no mesmo sentido. Ajudaram a mudar a percepção sobre o alcance da lei penal no Brasil.
Infelizmente, o Supremo acaba de apagar esse instituto apenas três anos depois de tê-lo ativado.
As notícias de abusos de autoridades investigativas e judiciais que atuam em casos de corrupção deveriam levar, como estão levando, a revisões pontuais e circunstanciadas dos processos, bem como à punição dos violadores.
É temerário adotar terapia sistêmica para esses males, pois seu efeito colateral provável será estimular os crimes do colarinho branco.
No horizonte das conquistas recentes contra a corrupção, sempre pairou a ameaça da associação tácita entre as possíveis vítimas poderosas e suas clientelas para colocar freios no processo. Após a decisão desta quinta, o STF terá trabalho para convencer o público de que não endossa o chamado acordão.

A Constituição não permite atalhos, Oscar Vilhena Vieira, FSP

Ao Supremo Tribunal Federal cumpre a difícil missão de guardar a Constituição. Não é sua atribuição corrigir o poder constituinte, por mais que seus ministros discordem de seus dispositivos. A tarefa de corrigir a Constituição só cabe ao Congresso Nacional e, mesmo assim, dentro dos estritos limites estabelecidos pela própria Constituição. 
Nesse sentido, mais do que correta a decisão do STF que declarou constitucional o artigo 283 do Código de Processo Penal, uma vez que esse dispositivo, que proíbe a prisão antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, encontra-se em absoluta conformidade com a letra da Constituição, ao determinar que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”. 
Ainda que tardia, a decisão do Supremo restabelece o direito dos réus, inclusive do ex-presidente Lula, de aguardar em liberdade o julgamento dos recursos que se encontrem pendentes, pois é isso que determina a Constituição.
Por mais que se discorde da opção de política criminal escolhida pela Constituinte em 1988, o seu significado é simples: enquanto houver a disponibilidade de recursos, a pessoa não dever ser considerada culpada e, salvo em circunstâncias excepcionais, não poderá ser presa. O Supremo apenas confirmou o que está expresso na Constituição.
Esse é, de fato, um modelo bastante problemático. O Congresso Nacional perdeu uma oportunidade de ouro de racionalizar nosso sistema de Justiça em 2011, quando o então presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Cesar Peluso, compareceu ao Senado Federal para propor a chamada PEC dos Recursos. 
Como reconhecia o ministro “temos um sistema jurisdicional perverso e ineficiente”, que retarda a prestação de justiça, em função da existência de um modelo recursal irracional.
De um lado, esse sistema prejudica pessoas que, mesmo após terem seus direitos reconhecidos por juízas e tribunais, chegam a aguardar décadas pela manifestação de um tribunal superior ou do próprio Supremo Tribunal Federal, para receber o que lhes é de direito.
De outro lado, o sistema permite que a aplicação da pena daqueles que já foram condenados em primeira e segunda instâncias possa ser procrastinada, favorecendo a percepção de impunidade e muitas vezes incentivando a vingança privada.
Para reverter esse quadro, o ministro Peluso propunha, de maneira engenhosa, reformar a Constituição, transformando recursos especiais e extraordinários em ações constitucionais rescisórias. O efeito dessa mudança seria antecipar a coisa julgada.
Tomada a decisão de segunda instância, a sentença poderia ser executada. A PEC 15/2011 não impediria, no entanto, o direito de acesso aos tribunais superiores ou ao STF, seja por intermédio das novas ações rescisórias ou por remédios constitucionais tradicionais, como o habeas corpus. 
A PEC dos Recursos sucumbiu à pressão dos litigantes recorrentes —que fazem do descumprimento da lei e da lentidão da Justiça um bom negócio—, e ao próprio interesse de setores da máquina pública que se viram ameaçados com a possibilidade de ter que cumprir suas obrigações antecipadamente. 
O sistema de Justiça brasileiro tem muitas mazelas que precisam ser enfrentadas, mas não se pode aceitar que sejam tomados atalhos constitucionais para sua correção. Por isso, fez bem o Supremo Tribunal Federal em assumir a responsabilidade de rever o seu próprio erro.


Oscar Vilhena Vieira
Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.