sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Tendências/Debates: Judiciário na democracia e da ditadura


KENARIK BOUJIKIAN FELIPPE
ROBERTO LUIZ CORCIOLI FILHO
O período da ditadura militar teve expressiva atuação dos atores diretos do golpe de março de 1964, mas também se sabe de episódios nos quais o Judiciário andou de mãos dadas com o Executivo, dando suporte e legitimando violações, seja de forma ativa, seja na forma omissiva.
A Comissão Nacional da Verdade firmou acordo de cooperação técnica com a Associação Juízes para a Democracia com o objetivo de recolher dados, documentos e informes sobre a atuação do Judiciário, para efetivar o direito à memória e à verdade histórica.
A magistratura não saiu ilesa das arbitrariedades cometidas pelo regime. Vejam a aposentadoria compulsória dos ministros do Supremo Tribunal Federal Victor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva.
Houve também momentos memoráveis de reafirmação dos direitos humanos pelo Judiciário, como a sentença do juiz federal Márcio José de Moraes, no caso do assassinato do jornalista Vladimir Herzog (1978).
Várias decisões do STF não referendaram o arbítrio, como: o habeas corpus a favor de Miguel Arraes, preso sem processo; pela liberdade de cátedra de Sergio Cidade Resende, em momento que professores estavam sendo cassados; o uso de medida liminar para evitar constrangimento ilegal em relação ao governador de Goiás etc.
Mas tivemos, por exemplo, torturas sabidas pelo Judiciário de ontem. Elas continuam presentes, o que mudou daquele tempo da ditadura para hoje são os eleitos como inimigos do Estado.
É preciso identificar, dentro do chamado sistema do devido processo legal, do direito de defesa, o que foi feito e o que não foi feito.
Herman Tacasey/Folhapress
Fundamental revelar os marcos normativos institucionais do Judiciário que ainda perduram, sem que o país tenha cumprido os ditames da justiça de transição, que implica instituições reorganizadas e "accountable" (dever de prestar contas), reformas institucionais que vão de expurgos no aparato estatal a transformações profundas em instituições como Forças Armadas e Judiciário.
Naquele período não havia qualquer linha que lembrasse uma gestão democrática do Poder Judiciário, o que ainda se faz presente.
A Lei Orgânica da Magistratura, de 1979, legado da ditadura, ainda não foi revogada e possui regramento inaceitável em instituições democráticas, como o sistema de eleição dos cargos diretivos dos tribunais, bem como dispõe sobre a principal conquista da Constituição de 1988, o direito de expressão e manifestação, com vedação de manifestação dos magistrados, em completa dissonância com a normativa constitucional e internacional.
Apenas a título de exemplo, a norma serviu de base, em pleno 2012, para três desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo representarem contra magistrados que assinaram um manifesto crítico à forma pela qual se deu a desocupação do Pinheirinho (São José dos Campos).
Exerciam direito assegurado pela Constituição ("é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato"), consagrado na Declaração Universal dos Direitos do Homem, na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, na Convenção Americana de Direitos Humanos e preconizado no 7º Congresso da Organização da ONU, no sentido de que "magistrados gozam, como outros cidadãos, das liberdades de expressão, crença, associação e reunião".
A representação foi arquivada pela Corregedoria, mas tudo a apontar o sintomático déficit democrático ainda vivido por esse Poder.
Conhecendo melhor o papel do Judiciário, tornando os fatos do passado públicos e transparentes, certamente o país dará um passo adiante para que o Judiciário se torne plenamente o garantidor dos direitos humanos, para superarmos velhas práticas autoritárias que ainda imperam em instituições públicas, pois só assim poderemos atingir os objetivos prometidos pela Constituição, de construção de uma sociedade livre, justa, solidária.
KENARIK BOUJIKIAN FELIPPE, 53, é desembargadora do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. É cofundadora e ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia; ROBERTO LUIZ CORCIOLI FILHO, 29, é juiz de direito em São Paulo e membro da Associação Juízes para a Democracia

Seu sorriso vale 1 milhão, na FSP


No extenso arco que vai de Sêneca a Gabriel Chalita, de 2010 para cá enfileiraram-se nas prateleiras das livrarias brasileiras mais de 350 livros com "felicidade" ou seus derivados no título. Nada mais sintomático: assim como a profusão de obras sobre dietas indica uma sociedade obesa, a obsessão pessoal e corporativa pela felicidade é sinal do descontentamento generalizado.
Foi "inspirado pela falta de felicidade" que o jornalista Alexandre Teixeira, 41, decidiu investigar a felicidade no trabalho. Depois de anos entrevistando executivos para uma revista de negócios, percebeu que o "brilho nos olhos" vendido por muitos deles escondia uma "crise de felicidade".
O resultado está em "Felicidade S.A.- Por Que a Satisfação com o Trabalho É a Utopia Possível para o Século 21" [Arquipélago, 288 págs., R$ 45], que chega às livrarias nesta semana.
Mesclando economia, psicologia e filosofia, Teixeira repassa diversas teorias badaladas sobre o tema, de autores como o filósofo suíço Alain de Botton, o economista brasileiro Eduardo Giannetti e o psicólogo e Prêmio Nobel americano Daniel Kahneman.
Ele discute questões como a baixa correlação entre salário e felicidade e especula sobre a possibilidade de o dinheiro estar perdendo importância, em benefício de conceitos mais complexos (e muitas vezes vagos) como tempo, propósito e significado.
Estudos citados no livro mostram que "gerenciar a felicidade" pode ser lucrativo. Pesquisa do instituto Gallup estima que o custo do desengajamento nos EUA seja de US$ 300 bilhões anuais em perda de produtividade.
"É uma reportagem sobre o mundo do trabalho, que pretende estimular a reflexão", diz. "Não espero que ninguém largue o emprego depois de ler o livro. Só acho que as pessoas pensam pouco sobre por que fazem o que fazem."
Para ele, as empresas se preocupam muito com o meio ambiente e pouco com o clima dentro delas mesmas, "e este talvez seja o aspecto mais ignorado de todo o atual debate sobre sustentabilidade".
Ele afasta, no entanto, fórmulas mágicas para atingir a felicidade: "De guru, só tenho a careca", diz.
*
Folha - Uma das teses de "Felicidade S.A." é que dinheiro e sucesso vêm perdendo terreno no mundo do trabalho para a busca de um propósito no que se faz. A teoria se aplica ao Brasil e seu crescente mercado consumidor?
Alexandre Teixeira - Colocar na balança o peso que se dá para dinheiro e qualidade de vida é uma tendência no mundo empresarial e entre os que podem fazer essa opção. É um grupo pequeno, que na tecnologia é chamado de "early adopters" (pioneiros no uso de uma novidade). Nos EUA, esse universo é maior, mas no Brasil ainda é relativamente pequeno.
Somos emergentes e é improvável que a nova classe média esteja mais preocupada com propósito do que com dinheiro. Mas já se sabe que dinheiro traz felicidade até certo ponto. Estudo conduzido pelo psicólogo Daniel Kahneman, Prêmio Nobel de Economia, mostra que, a partir de US$ 6.250 (R$ 12.740), o que você ganha a mais não determina que será mais feliz.
Pesquisa do Datafolha mostra que três em cada quatro brasileiros se sentem felizes no trabalho. Mas você cita um estudo que aponta os executivos brasileiros entre os mais insatisfeitos do mundo com o equilíbrio dado a trabalho e vida pessoal. O que explica isso?
São dois universos diferentes. A pesquisa do Datafolha é bem abrangente e traz resultados positivos. A outra é feita só com executivos que reclamam que não têm tempo para a vida pessoal.
Acredito que o resultado é fruto de sermos um país emergente. O Brasil aceita jornadas de trabalho que, na Europa, seriam consideradas obscenas. Nos EUA, só banco de investimentos tolera jornadas de 10, 12 horas, que aqui são coisa rotineira. China e Índia deveriam relatar índices iguais ou piores de descontentamento pelo excesso de horas trabalhadas, já que também são economias emergentes?
Não. É aí que entra a cultura. Os chineses são coletivistas. Não têm problema em fazer um sacrifício pelo país ou pela empresa. Aqui, executivos fazem sacrifício para sustentar um modo de vida caro. Mas reclamam que têm um preço a pagar por isso.
Como se pode medir a felicidade dentro das empresas?
Além de rankings consagrados como o internacional Great Place to Work (Melhores Empresas para Trabalhar), aplicado no Brasil, empresas vêm tentando criar seus próprios índices. A Natura tentou implementar o FIB, Felicidade Interna Bruta, índice criado no Butão como contraponto ao PIB e que a ONU apoia como indicador do bem-estar social nos países.
O questionário é complexo, e a implementação esbarrou em problemas técnicos com o instituto que difunde o FIB no Brasil. Já a Serasa criou seu próprio índice, mais simples, e mede a felicidade interna a cada trimestre.
*A preocupação com a felicidade interna nas empresas pode virar tendência? *
Sim, porque é um bom marketing e porque tem muita gente convencida de que empresas com funcionários mais felizes conseguem resultados melhores. Isso se chama gerenciar felicidade.
David e Wendy Ulrich, autores do livro "The Why of Work" (O Porquê do Trabalho), compararam as cem melhores empresas no Great Place to Work americano e calcularam que o retorno médio anual daquelas com ações negociadas na Bolsa de Nova York, entre 1998 e 2008, foi de 6,8%. No mesmo período, o retorno anual médio das 500 companhias mais negociadas na bolsa ficou em 1,04%.
Por que, segundo o livro, a qualidade do ambiente de trabalho é o aspecto mais negligenciado do debate sobre sustentabilidade?
Desde do filme "Uma Verdade Inconveniente", de Al Gore, a sustentabilidade está na pauta não só dos ambientalistas, mas de todo o mundo, principalmente do empresarial. Existe uma preocupação sobre como os animais são criados nas fazendas industriais, enquanto os funcionários de telemarketing estão trabalhando em espaços minúsculos, confinados, com hora para ir ao banheiro.
É uma verdade inconveniente a entrar na agenda. Mas não é um assunto tão charmoso quanto o verde, o meio ambiente.
Você cita a recente oportunidade de escolher como empregador uma empresa "com uma causa" ou "com bandeiras", mas falta espaço. Não tem vaga para todo mundo no Google ou no Facebook, para citar algumas das prestigiadas pelos jovens.
Não é só questão de não ter espaço. Mas pesquisas mostram que grande parte dos jovens brasileiros ainda coloca, como primeiras opções de emprego, Petrobras e Banco do Brasil. Ou seja, ainda há uma grande demanda por estabilidade, e não por propósito. Mas, nesse caso, cada vez mais o "efeito demonstração" é importante. Quanto melhor o ambiente de trabalho, mais cobiçada a empresa é e menos ela precisa pagar, na média, na hora de recrutar.
Como as escolas de samba podem se tornar um "case" empresarial a se exportar?
Nossa cultura empresarial é muito importada. Mas há uma corrente que defende abrasileirar as nossas empresas em vez de europeizar nossos trabalhadores. A escola de samba é um tipo de organização hierárquica. Cada ala tem seu chefe, é quase como uma empresa. Há certa tensão, mas as pessoas basicamente se divertem.
E ainda tem gente que paga por isso. A cultura brasileira tem um "know-how" de organizar bagunças que talvez possa ser exportado e que certamente pode ser utilizado por aqui.
E quando empresas põem a felicidade como parte de uma cartilha?
Nos EUA, é comum ter empresas em que é regra receber as pessoas com um sorriso, que eu chamo de "sorriso americano", "fake", forçado. Quando a Blockbuster chegou ao Brasil, eles te cumprimentavam desse jeito, seguindo a cartilha. Mas aqui não dá certo. Adotar a bandeira da felicidade desse jeito é uma coisa idiota, uma macaquice.
Qual é seu "case" preferido entre as empresas brasileiras?
Uma das melhores histórias é a da Serasa, que adotou a bandeira da felicidade, mas, para o público em geral, está sempre ligada a "nome sujo na praça".
Tudo começou quando o ex-presidente pediu uma pesquisa interna sobre trabalho voluntário. Descobriu que pouca gente fazia e muita gente queria fazer. Criou "pools" de voluntários para adotar instituições. Depois, começou a oferecer cursos, de circo, de música. Tem um diretor sisudo, sério, que virou o palhaço Adamastor. A empresa foi incorporada por um grupo internacional, mas não acabou com essas práticas.
Você discute exemplos bem distintos, do Pão de Açúcar aos Doutores da Alegria. O que Abilio Diniz e o palhaço Wellington Nogueira têm em comum?
É difícil responder. O Abilio (presidente do conselho de administração do Grupo Pão de Açúcar) é assumidamente um convertido à causa da felicidade. Quem conviveu com ele diz que era um cara muito duro, ríspido, quase violento com as pessoas no trabalho.
Ele diz que, a partir da virada para os 1990, quando foi sequestrado e o Pão de Açúcar quase quebrou por problemas de gestão e depois pelo confisco do plano Collor, ele fez terapia e começou a se preocupar mais com as pessoas. Hoje, é um divulgador da ideia de felicidade.
Wellington, fundador dos Doutores, leva a alegria aos outros e gerencia profissionais do riso, mas tem um discurso menos propagandístico da felicidade dentro da organização do que o Abílio. Talvez por não ser um convertido, por ter descoberto cedo essa causa.
Laerte

É natural, por Francisco Daudt, na FSP


O pensamento do filósofo Baruch (abençoado, em hebraico = Benedito = Bento) Spinoza sobre a liberdade poderia ser definido assim: "ela consiste em conhecer os cordéis que nos manipulam". Repare que ele não reconhecia a liberdade como coisa de existência verdadeira, mas poderíamos ampliá-la um pouco se aliviássemos, ao conhecê-los, os puxões dos cordéis.
Outro grande, Schopenhauer (bem lembrado por um leitor), disse que podemos até ter vontades, mas não podemos escolher nossos desejos. Tenho escrito sobre a natureza humana para que saibamos como somos manipulados.
O que me lembrou a portuguesa avó Lucia, de uma amiga querida, que a tudo reagia com o mesmo bordão: "É natural", por mais estapafúrdia que a coisa fosse. "Vó, o padre fugiu com a vizinha!" "É natural, pois..."
Ela se defendia dos sustos da vida com o uso sistemático da naturalização. A naturalização não tem nada a ver com constatar as forças da natureza sobre nós. Ela é o processo da formação do senso comum, talvez o cordel mais forte que a cultura usa para mandar em nós.
Minha mãe quis ter oito filhos (teve sete). Por que tantos? "Porque em 1937 era bonito ter família grande, minhas amigas tinham". Era "natural". Tão natural quanto hoje ter dois. Se você quiser mais, o senso comum vai te patrulhar, "que absurdo, você tá louca?". O feminismo naturalizou a tripla jornada de trabalho para a mulher (ganhar dinheiro; gerenciar a casa, marido e filhos). Nascido em 1948, cresci tendo que cumprir uma linha de montagem: escolaridade, formatura (médico, engenheiro ou advogado), casar, ser provedor e ter filhos. Era natural. Eu me perguntei se queria isto? Claro que não. Tinha medo de ir "contra o natural". É a surda ditadura do senso comum. Hoje ela se estende ao "politicamente correto", um meio de formar rebanhos. A coisa está ficando afrodescendente...
Então este é um aviso: você é manipulado, sua inteligência é posta de lado em favor da obediência ao "que todo mundo faz". Ao mesmo tempo, é sedutora a ideia de que há manipuladores, superiores aos manipulados, e que é bom ser um deles. Mas você já é um manipulador/manipulado, todos o somos.
Um general manda na tropa, mas a mulher manda nele. Manipulação existe. Somos todos seus agentes e pacientes. Se eu for menos ativo e passivo dela, a manipulação diminuirá.
Desconfie do "é natural", que "a vida é assim mesmo". Discuta regras ocultas da ficância, do namoro, do casamento, para ver se você as cumpre por gosto ou por obrigação. Escancare-as!
Atenção com o implícito, com a alusão. As regras do senso comum nunca são faladas abertamente, ou saberíamos discuti-las. A patrulha se dá por punições sutis (suspiros, trombas e gelos). Também valem adjetivos reducionistas, "Isto é fascismo! Você é neoliberal!" (quem os usa já está dominado).
Claro, a patrulha também pode ser explícita, matar e espancar gays, porque eles são excessivamente não "naturais", entende? Mas vir dizer que "a diferença é linda" também é outra tentativa de naturalização que eu não aguento.
fdaudt2@gmail.com
www.franciscodaudt.com.br
Francisco Daudt
Francisco Daudt, psicanalista e médico, é autor de "Onde Foi Que Eu Acertei?", entre outros livros. Escreve às terças, a cada duas semanas, na versão impressa do caderno "Cotidiano".