quinta-feira, 15 de maio de 2025

O desmanche daCracoIândia contado por quem o iniciou - MARIA CRISTINA FERNANDES, Valor

 O centro de São Paulo está a caminho de virar uma vitrine eleitoral em 2026 seja para a reeleição do governador Tarcísio de Freitas seja para sua postulação presidencial. O primeiro resultado mais concreto nesse sentido apareceu nesta terça-feira quando a rua dos Protestantes, reduto da Cracolândia, amanheceu vazia. 


Na véspera, Tarcísio, em entrevista a uma rádio, tinha cravado: "A Cracolândia vai acabar. Contamos todos os dias. Quando iniciamos o governo eram 2 mil. Hoje pela manhã havia 53". Explicou as etapas da revitalização que se seguirão até que a sede do governo volte a se instalar no Centro: "Ê o nosso grande legado". 

No dia em que a aia dos Protestantes amanheceu vazia, a Secretaria de Segurança Pública soltou uma longa nota sobre as ações do governo na região. Nem ao longo dos cinco minutos em que Tarcísio discorreu sobre o tema nem entre as mais de mil palavras da nota da SSP-SP, houve qualquer menção à origem da operação que pôs em pé o desmanche da Cracolândia. 

Foi em julho de 2023 que o Ministério Público do Estado de São Paulo deu início às investigações que resultariam na operação "Salut e Dignitas" (saúde e dignidade) um ano depois. Prestava-se a desmontara rede de atividades ilícitas gerida pelo PCC em torno da Cracolândia no centro da capital. 

O MPSP mapeou o comércio ilegal de celulares, motocicletas e peças de veículos roubados, ferros velhos e casas de prostituição que lavavam dinheiro do tráfico e se valiam do fornecimento, barateado pelo vício, dos frequentadores da Cracolânclia. 

Esta rede, ou "ecossistema de atividades ilícitas", como prefere o MPSP, contava com a proteção de agentes públicos tanto da Polícia Militar quanto da Guarda Civil Metropolitana, cuja sede é vizinha ao fluxo. Foi a atuação dessas milícias que garantiram o domínio daquele território e, por décadas, deu sobrevida à ferida aberta no centro da maior e mais rica cidade do continente. 

Quando a operação foi deflagrada, chefiava o MPSP o ex-procurador geral de Justiça, Mario Sarrubbo. Hoje secretário de Segurança Nacional do Ministério da Justiça, Sarrubbo é um dos idealizadores da PEC da Segurança, que chegou ao Congresso no mesmo dia em que a Polícia Federal eclodiu a operação do INSS e lá parou.

O prefeito da capital, Ricardo Nunes, se disse surpreendido pela rua dos Protestantes vazia, mas não Lincoln Gakiya. Na cola do PCC há mais de duas décadas, o promotor do MPSP liderou as investigações que resultariam na operação de 2024 e acompanha seus desdobramentos até hoje. 

Gakiya tampouco se surpreende com a perspectiva de politização do tema, mas começa por apontar as instâncias acionadas pelo MPSP. Cita pelo menos nove: PM, Guarda Civil Metropolitana, Corpo de Bombeiros, Cetesb, PF, Polícia Rodoviária Federal, Receita Federal, COAF, Ministério Público do Trabalho.

Na medida em que os mandados de prisão, busca e apreensão, arresto, bloqueio e sequestro de bens, além da interdição de imóveis foram cumpridos, esperava que a rede que abastecia o fluxo começasse a secar. Presente à deflagração da operação, seu testemunho é de que nenhum tiro de bala de borracha foi disparado numa situação que define como "complexa e sensível". 

Tampouco vê como a desidratação da Cracolândia seria possível sem a remoção da favela do Moinho. A última favela do centro de São Paulo é alvo de grande embate da oposição com os governos estadual e municipal pelas condições dramáticas-e violentas - nas quais 1,2 mil famílias estão sendo obrigadas a deixar suas casas, o que levou a União a suspender a cessão da área ao governo do Estado. 

O desmanche da favela começou com a identificação, pelo MPSP, de duas lideranças do PCC que comandavam, do Moinho, o abastecimento de drogas da Cracolândia. Quando os usuários desobedeciam regras que impediam roubos, agressões e estupros, eram levados à favela para justiçamento. Era lá também que funcionava o aparato de vigilância e monitoramento, pela captação de sinais de rádios transmissores, das forças policiais. 

Gakiya não ignora o drama de saúde pública de usuários transformados em escravos-zumbis do crime. 

Espera que as denúncias de maus tratos sejam apuradas e que a prefeitura e o governo acolham tanto os usuários quanto as famílias removidas. 

Não vê, porém, no espraiamento de usuários, um sinal de que o problema apenas foi exportado para os bairros porque é a concentração que garante sua sobrevida. Para que uma cracolândia se enraize, é preciso escala para sustentar a rede de negócios que vive em torno dela. Na medida em que a operação seja capaz de evitar novas concentrações, os usuários, sem meios de garantir o acesso à droga, ficariam menos resistentes ao tratamento. 

Gakiya não se queixa da colaboração da prefeitura e do governo do Estado na adoção das medidas preconizadas. Até porque não vê solução para o país, como preconiza a PEC da Segurança Pública, que não passe pela colaboração federativa e a cooperação entre dezenas de órgãos de segurança e controle em todo o território nacional. 

Pelo andar da carruagem, porém, há uma crescente intersecção entre as forças que colaboram em São Paulo e aquelas que, no Congresso, criam obstáculos ao enfrentamento nacional ao crime organizado. Nesse ritmo, se vitrine houver, será apenas bandeirante.

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