segunda-feira, 26 de maio de 2025

Mitos que matam pela certeza, fatos que salvam pela dúvida, Veny Santos, FSP

 Era acordar cedo para ouvir que, se não estudasse, ia puxar carroça e viver na rua. A aurora da ideologia imposta, às 7h da manhã, não fazia curva nem disfarçava. Era boreal em essência. Fria e calculista: estudar apenas para ter, não para ser.

Quando se fala isso diante de uma sala lotada de bocas famintas de comida, afeto e oportunidades, oras, o que almejar senão o aliciamento de almas recém-paridas em formação? O mundo mordeu a vida e não a assoprou. A escola fez do mito da prosperidade um curativo. Os anos letivos arderam feito mertiolate e, assim, no doer dos joelhos que esticam sob o olhar "hebiátrico" dos outros; no desafinar da voz que tenta se explicar para ouvidos que —entrópicos demais— têm mais o que dizer do que escutar; o brilho de um futuro além não passou de faísca tal qual estrela distante que já não existe mais. Com certeza, apagável.

A imagem mostra uma sala de aula com mesas e cadeiras azuis dispostas em linha. Na parede, há um cartaz laranja com letras do alfabeto em letras maiúsculas, decorado com rostos sorridentes. Ao lado, estão colados papéis coloridos com desenhos e letras. O ambiente parece simples e voltado para a educação infantil.
Sala de aula da escola Gedeão Ribeiro, na zona rural de Buriti (MA) - Avener Prado - 12.ago.2018/Folhapress

Hoje, agora, no desesperado logo cedo, não existe mais o cintilar. Tão jovem aos olhos, mas, nas costas destes, tão velhos para sonhar adiante. Se soubéssemos que anos-luz representavam justamente a ausência de porvir claridade, talvez tivéssemos aprendido mais com a penumbra.

Quanto à família, dói pensar. Tradicional, sólida, firme, coesa, imperfeita, sim, mas resistente. A união como pacto, o amor como contrato, o afeto como condição e a partilha como bens. O mito —ou a tentativa de organizar linguística e estruturalmente o surreal até que parece (se faça valer tanto quanto) real— preenche. O mito preenche o que a promessa ainda não cumpriu.

Familiares têm insaciabilidades diversas: querem o buxo cheio, também o bolso, o peito, as mãos, a atenção, as perversões. Tudo preenchido a saciar febres. A parentada se faz como dá, não como revelam os oráculos solitários —ainda que rodeados de adoradores. Morre quem não figura no comercial de margarina? Não. O mito prega, mas a gente toda, faltada de um pai, de uma mãe, abençoada com avós e avôs, educada por tias e tios, criadas pelos parceiros de rua, essa gente para o caramba, afilia-se como pode. Quanto à família? Pois é, dói pensar. Nem sempre dá para escolher, mas há como construir sem lendas nos olhos. Sem Édipos inevitáveis.

Mito da beleza que prega a mutilação dos corpos. Mito dos corpos que penetra na fluidez da sujeita pessoa e suas cambiantes —pois livres no íntimo o são— identidades. A pensar, também, sobre a quimera da sorte que aposta na vitória, mas ganha com a perda. Há aquele outro conto do amor ao próximo que mata os distantes. Rituais à base de bombas e tudo mais que resulta em menos.

A dor, quando dói demais, formiga. Parece cócega. Incomoda, mas faz rir. Escancara os caninos. De repente, mais um mito: o da meritocracia sempre entusiasmada, eufemista, que evita usar o termo "dificuldade" e adota "desafio". Aquela no qual uns pagam pelo que nunca tiveram oportunidade de ter, e outros ganham por nunca precisarem ter tido. Com verbos inevitáveis. Como hienas risonhas.

Quais mitos regem quem lê, quem pensa, quem não lê, mas escreve enquanto pensa, e quem escreve sem ler e pensar, apenas pela fuga do destino inevitável e esquiva da realidade neurotizante?

Somos nós os oráculos. Sem certezas que matam. Com perguntas que fazem viver.


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