segunda-feira, 19 de maio de 2025

GAMA - microplásticos Entrevista com o professor e pesquisador de biologia marinha Richard Thompson

 Quando publicou um artigo sobre a poluição por plásticos no oceano, lá em 2004 — o primeiro que escreveu a respeito do tema —, o professor e pesquisador de biologia marinha Richard Thompson nem imaginava que estava dando nome a um dos maiores problemas de proteção ambiental e saúde pública do nosso tempo. No documento, a palavra aparece até meio tímida, na legenda de uma figura: microplásticos. Foi o suficiente, no entanto, para causar comoção no meio científico e na imprensa cerca de duas décadas atrás.

“Me disseram que atrairia bastante atenção da mídia, mas eu não tinha previsto o quanto”, lembra o britânico, em entrevista a Gama. “No escritório, o telefone tocava sem parar. Meu email tinha três telas cheias de perguntas de jornalistas.” Hoje, a expressão já foi citada em mais de cinco mil artigos, virou o epicentro de uma discussão ambiental global e passou a definir um item central da crescente lista de medos cotidianos de viver na nossa sociedade.

Se você ainda não topou com essa palavrinha por aí, microplásticos são partículas de plástico com menos de cinco milímetros de comprimento, criadas de uma das duas formas: pela degradação de plásticos maiores ou por geração intencional dessas partículas, como as que existem em cosméticos ou até o glitter. O problema, porém, é menos o que são, e mais onde eles estão: basicamente, em todo lugar. No fundo do mar, nas nossas roupas, nas garrafas em que bebemos água e até no ar que respiramos, os microplásticos sempre estão lá. Estudos mais recentes inclusive identificaram sua presença no corpo humano, em órgãos como pulmões e até o cérebro.

No caso do professor Richard Thompson, hoje diretor do Instituto Marinho da Universidade de Plymouth, na Inglaterra, o primeiro lugar em que os microplásticos lhe chamaram a atenção foi em meio ao lixo que recolhia diariamente nas praias da costa inglesa na década de 1990, como pesquisa para seu doutorado. “Me ocorreu que eram os mais abundantes, mas ninguém os estava contando, muito menos removendo. Isso acendeu em mim a pergunta: quais os menores pedaços de plástico no meio ambiente?”

Anos depois, já como docente, publicou o famoso artigo, em que argumentava que o lixo plástico nos oceanos poderia estar se acumulando justamente na forma desses fragmentos milimétricos. O texto foi o primeiro de muitos que escreveu sobre o assunto, que acabou se tornando o centro da pesquisa que ele vem desenvolvendo ao longo dos últimos 20 anos.

Thompson entrou recentemente para a lista das 100 pessoas mais influentes do mundo da revista Time em 2025, por seus “esforços para proteger os oceanos e todos nós”. Um dos principais motivos para a escolha, além das pesquisas, é a forte atuação na busca por políticas efetivas de combate à produção e emissão de plásticos.

 Divulgação

Frequentemente descrito como “padrinho do microplástico”, ele é uma das principais vozes na defesa de um tratado global sobre o tema. O pesquisador tem acompanhado de perto e pressionado pela aprovação do Acordo Global contra a Poluição Plástica, proposto pela ONU para reduzir a disseminação do material em todo o seu ciclo de vida — e que o pesquisador considera uma “oportunidade única” de lidar com o problema. Embora as nações sigam num impasse, a próxima reunião para falar de plásticos já está marcada para agosto, em Genebra. O tema também deve vir à tona durante a COP30, em novembro aqui no Brasil.

No papo com Gama, Thompson aponta que este é o momento de agir, e não de buscar entender todas as consequências dos microplásticos para o meio ambiente e a nossa saúde. Também reforça as ações necessárias para que a sociedade consiga lidar com o problema antes que seja tarde demais.

  • G |Como você desenvolveu o conceito de microplásticos, que se tornou seu campo de estudo?

    Richard Thompson |

     

    Durante meu doutorado, que era sobre ecologia marinha, eu fazia experimentos na zona costeira. Todos os dias ia observar, e todos os dias chegava lixo, que eu tinha que remover. Inicialmente, isso me motivou a trabalhar com outros alunos limpando praias, e começamos a coletar dados para a Sociedade de Conservação Marinha do Reino Unido. Categorizei as quantidades e tipos de lixo que recolhíamos, mas os esforços costumavam ser direcionados a itens grandes, quase como troféus: o maior pneu, a maior rede. Não havia nenhuma categoria para os pequenos fragmentos, que eu via a olho nu. Até caminhávamos sobre eles. Me ocorreu que eram os mais abundantes, mas ninguém os estava contando, muito menos removendo. Isso acendeu em mim a pergunta: quais os menores pedaços de plástico no meio ambiente? Foi assim que tudo começou. Quando passei a dar aulas, lancei aos alunos um desafio: vamos encontrar os menores pedaços. Trouxemos amostras de areia, que examinamos no microscópio, e imediatamente vimos pedaços menores que os grãos. Foi uma jornada para confirmar que eram pequenas partículas de plástico.

  • G |Quanto tempo levou esse processo?

    RT |

     

    Desde a primeira observação nas praias até a publicação do primeiro artigo, passou-se quase uma década. Era algo que eu fazia no meu tempo livre, impulsionado principalmente pela curiosidade. Primeiro encontramos em uma ou duas praias, mas e no resto do Reino Unido? Ok, estão lá também. Os animais comem? Sim, e vai parar no intestino. Uma evidência fundamental foi analisar amostras de mais de quatro décadas, que mostraram um aumento significativo ao longo do tempo na abundância desses fragmentos. Reuni tudo isso em um artigo. O que acreditava ter encontrado era um elemento ausente nos dados sobre lixo marinho, que explicava por que não vimos um crescimento ao longo do tempo: ele estava em pequenos pedaços que, no artigo, chamei de microplásticos. As pessoas já encontravam pedaços de plástico antes de mim, mas nós criamos o termo. Os estudos até ali eram um tanto incidentais. Procuravam plâncton e viam esses fragmentos. Nós os buscamos num tamanho menor, mostramos esse aumento a longo prazo e sua biodisponibilidade.

  • G |Você já imaginava na época a importância que o tema ganharia?

    RT |

     

    Não, eu não sabia. Foi o primeiro artigo que publiquei sobre poluição marinha por plástico, e foi uma sorte incrível que a comunidade científica tenha se interessado por essa história. Me disseram que atrairia bastante atenção da mídia, mas eu não tinha previsto o quanto. No escritório, o telefone tocava sem parar. Meu email tinha três telas cheias de perguntas de jornalistas. Fizemos mais de 120 entrevistas baseadas apenas naquele artigo.

  • G |As pesquisas mostram que, além de animais marinhos, microplásticos estão no organismo humano. Isso tem feito as pessoas despertarem para o problema?

    RT |

     

    Sim, acho que há uma conscientização muito maior. Há alguns anos, microplástico foi a palavra do ano na Espanha. Então, certamente ganhou atenção pública e científica. Hoje há mais de cinco mil artigos usando o termo. E vimos o interesse político se desenvolver ao longo do tempo. Acho que a primeira menção política foi na diretiva da União Europeia de estratégia marinha, em 2008. Também vimos legislações de muitos países proibindo o uso de microplástico em cosméticos. E, claro, eles são referenciados várias vezes no rascunho do Acordo Global da ONU de Combate à Poluição Plástica.

  • G |O que se sabe hoje sobre os efeitos dos microplásticos para a saúde e o meio ambiente? Ainda vivemos um processo de aprendizado?

    RT |

     

    A questão é: quando teremos evidências suficientes para parar de tentar definir o problema e buscar soluções? Na minha opinião, já temos. Ainda há incógnitas, sempre haverá. Se adotarmos uma visão mais ambiciosa, podemos gastar milhões e passar décadas estudando, mas ainda precisaríamos resolver o problema. E temos evidências suficientes de que os microplásticos representam um problema. Inúmeros estudos apontam os danos para animais e os impactos de alguns aditivos químicos dos plásticos. Da perspectiva humana, microplásticos estão no ar que respiramos, nos alimentos que comemos e na água que bebemos . Poderíamos investir nosso limitado financiamento em cada vez mais estudos sobre saúde humana, minha curiosidade de cientista me faz querer saber essas respostas. Mas não acho que precisamos gastar mais dinheiro para definir a questão. Estimativas sugerem que, se não agirmos agora, nos próximos 50 a 80 anos haverá um problema em larga escala no meio ambiente, porque as concentrações continuarão a aumentar. A hora de agir é agora. Acredito que as maiores incógnitas são quais ações tomaremos e quais as soluções.

  • G |Quais as ações essenciais, na sua visão?

    RT |

     

    Parte tem a ver com reduzir, reutilizar e reciclar, mas conhecemos esse mantra há mais de 50 anos. De que tipo de plástico não precisamos? Como trabalhamos para tornar os plásticos recicláveis mais seguros e sustentáveis, capturando-os numa economia circular que impeça parte de sua liberação no meio ambiente? Porque uma das principais fontes de microplástico é a fragmentação de itens maiores. Além disso, precisamos projetar produtos para durar mais e gerar menos microplásticos. Pesquisas mostram que pode haver uma diferença de 80% na emissão de microplásticos entre duas peças de roupa semelhantes da mesma loja. Nenhuma delas foi projetada assim, é pura coincidência. Então, pense no que podemos alcançar se fizermos as roupas durarem mais e reduzirmos a taxa de descarte. Não vamos eliminar os microplásticos, mas há muito que pode ser feito. Além de regulamentá-los em cosméticos e outros produtos, podemos ter leis para reduzir suas quantidades. Precisamos agir, e essas ações devem ser embasadas pela ciência. É aí que precisamos de investimento. E, lamentavelmente, o que vejo na ausência da ciência são suposições. Coisas rotuladas como soluções que não foram devidamente testadas e comprovadas. Algumas causam mais mal do que bem, e isso me preocupa muito.

  • G |Como você falou, hoje os microplásticos estão até no ar que a gente respira. Tem como evitá-los no nosso dia a dia?

    RT |

     

    A maior parte dos microplásticos que chegam ao meio ambiente já está em pequenos pedaços, mas sua principal fonte ao longo do tempo é a fragmentação de itens maiores, mais fáceis para o público lidar. Então, reduzir o uso de garrafas e copos descartáveis, usar sacolas reutilizáveis… Pode parecer uma gota no oceano, mas, somado aos milhões de consumidores que tomam essas decisões todos os dias, faz uma grande diferença. E certifique-se de descartar seus resíduos corretamente, não permita que se tornem lixo. Não compre plásticos não essenciais, coisas de que você não precisa. Não podemos resolver todo o problema com a reciclagem, mas é um ponto de partida. Ainda há coisas a serem corrigidas. Da mesma forma que não projetamos produtos para não liberarem microplásticos, não os projetamos para serem circulares ou recicláveis. Precisamos garantir que os plásticos que usamos sejam essenciais e tornar os essenciais muito mais seguros e sustentáveis .

  • G |Ao que está relacionada essa segurança que você cita?

    RT |

     

    A segurança está ligada aos produtos químicos. Existem 16 mil químicos associados aos plásticos, dos quais mais de quatro mil são potencialmente nocivos. Muito poucos são regulamentados. É importante que o tratado sobre plásticos aborde esses produtos, porque eles não aparecem em nenhum outro lugar. Acho difícil se livrar da exposição aos microplásticos, há muito pouco que você possa fazer. Nos pneus, por exemplo, dá para reduzir as partículas de desgaste, acelerar devagar, não frear bruscamente, garantir que o carro esteja com a manutenção adequada. Isso não elimina os microplásticos, mas faz com que a taxa de liberação seja mais lenta. Você pode fazer o mesmo com as roupas, se conseguir lavá-las com menos frequência. Mas eles ainda serão liberados. O consumidor é prejudicado pela falta de um design adequado para segurança e sustentabilidade.

  • G |Sua pesquisa foi sempre focada na biologia marinha, mas hoje você lida também com questões das cadeias de produção e consumo. Como essa lógica precisa mudar?

    RT |

     

    Comecei meu trabalho nos oceanos porque ali o problema se apresenta de forma muito visível, mas é claro que ele não surgiu lá. Como biólogo marinho, vim à terra ajudar a resolver alguns dos problemas do oceano, que também se acumulam em terras agrícolas, no Everest, em lagos de água doce. A produção está se tornando exponencial. A lacuna entre ela e nossa capacidade de gerenciar resíduos é cada vez maior. A única maneira de resolver isso é considerar todo o ciclo de vida, não só a gestão de resíduos. Estamos produzindo mais plásticos do que podemos gerenciar, e quem arca com os efeitos negativos é toda a sociedade e o meio ambiente. Esses efeitos são tão enormes que não podemos nos dar ao luxo de continuar produzindo no ritmo atual. As fontes de carbono são predominantemente não renováveis: petróleo e gases fósseis. Então, fica claro que precisamos reduzir a produção de plásticos.

  • G |Como fazer isso?

    RT |

     

    Só podemos produzir plásticos que sejam absolutamente essenciais para a sociedade e o meio ambiente. Há muitas coisas das quais não precisamos, mas outras em que ele é o melhor material. Em hospitais, escolas… Você pode usar peças leves em carros e aviões para reduzir as emissões de carbono. Nesses casos, trata-se de torná-las mais seguras e sustentáveis, reduzindo a complexidade química, garantindo que os químicos sejam usados ​​da forma mais segura e buscando projetá-las para um uso circular. É uma combinação de medidas. Hoje, entendemos que a poluição dos plásticos ocorre ao longo de toda a cadeia de suprimentos, da extração do material à produção. Trata-se do ciclo de vida da maneira como atualmente projetamos, produzimos, usamos e descartamos. Por isso é importante que o tratado da ONU considere isso e não cometa o erro de alguns países, que pensam que se trata apenas de gerenciamento de resíduos.

  • G |A substituição por outros materiais, como plásticos biodegradáveis, faz sentido?

    RT |

     

    Não tenho certeza. Eles ​​podem ser parte da solução, mas não a solução. Há quatro benefícios que tornaram os plásticos bem-sucedidos: são leves, baratos, versáteis e duráveis. Como conseguir essa durabilidade enquanto o produto está em uso e, assim que não o quiser mais, ele desaparecer magicamente? As duas coisas são quase incompatíveis. Além disso, muitos dos químicos perigosos também são usados ​​na produção de biodegradáveis. Talvez haja um lugar para eles em aplicações onde é inevitável que o plástico escape para o meio ambiente. Na agricultura, você não precisa que ele dure muito para proteger as plantações da geada. Mas um plástico biodegradável não terá desempenho adequado em todas as circunstâncias. E não podemos achar que é uma resposta para o problema da poluição plástica ou do lixo marinho. A última coisa que os trabalhadores da reciclagem querem no plástico que tentam reprocessar é material biodegradável, porque isso compromete a durabilidade dos plásticos que esperam fabricar.

  • G |Este ano, teremos mais uma reunião da ONU sobre o tema, que também deve ser discutindo na COP30, no Brasil. Olhando para trás, como você vê o impacto do seu trabalho e ativismo a favor da ciência para o diálogo e as políticas criadas hoje?

    RT |

     

    Eu certamente não me vejo como ativista. Meu papel é fornecer informações precisas, não estou em conflito com o ganho comercial da indústria. A poluição por plástico é um problema ambiental global que podemos resolver. Provavelmente é mais fácil do que outros desafios ambientais. Não se trata de deixar de usar plástico, mas de passar a utilizá-lo de forma mais responsável. O Acordo Global da ONU contra a Poluição Plástica é uma oportunidade única, que mais de 180 nações assinaram. O problema é que muitas delas têm uma ambição muito baixa, insuficiente para resolver a questão. Mas vimos nas negociações em Busan, em 2024, 120 países que queriam enfrentar o desafio. Se não conseguirmos que todas essas nações concordem, parte delas por interesse financeiro, então talvez algumas precisem se afastar e aquelas com maiores aspirações devem prosseguir com o tratado, na esperança de que as outras retornem no futuro. O melhor cenário é que todos concordem. O pior é se muitos países concordarem com um tratado sem sentido nem impacto. Aí seria uma perda de tempo.

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