segunda-feira, 19 de maio de 2025

Para Zuckerberg, amizade é mistura de utilidade e prazer, como ir ao self-service, João Pereira Coutinho - FSP

 A tecnologia serve para resolver problemas práticos. Não serve para resolver problemas existenciais. E, no entanto...

E, no entanto, basta escutar os mandarins da tecnologia, com suas togas imaginárias, dissertando sobre o assunto com verdadeiro fervor religioso. Eles não querem apenas melhorar as condições materiais da espécie. Querem melhorar a própria espécie e, se possível, encaminhar a humanidade para a terra de leite e mel que era coutada exclusiva das religiões do passado.

O exemplo mais recente, e mais deprimente, é Mark Zuckerberg. A solidão é um problema feio, disse ele, como se tivesse descoberto uma praga única nunca vista na história da humanidade. Os norte-americanos, acrescenta Mark, têm em média três amigos apenas. É um ultraje.

Mas existe uma cura para isso: a inteligência artificial, claro. Em breve, será possível ter um amigo virtual que nos conhece e nos aceita, preenchendo o buraco que existe em nossas vidas.

Tem piada: Zuckerberg contribuiu para o buraco com a rede social que criou. Um mundo de mil amigos onde não existe um só de verdade.

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Acreditar que será ele agora a tapar o buraco com uma nova utopia tecnológica é uma forma de fé que ainda não está descrita nos manuais de teologia.

Mas o problema nem é esse. O problema é a ignorância do homem sobre a natureza da amizade. É a forma artificial e autocentrada como ele entende o conceito, revelando ao mundo a sua inadequação para lidar com o problema.

Para Zuckerberg, a amizade é uma mistura de utilidade e prazer, que vamos usando consoante as nossas necessidades. Um amigo, real ou virtual, existe para nos beneficiar ou divertir, consoante as circunstâncias. É como ir ao self-service: cada um pega o que quer.

Haverá forma mais pobre de olhar para o assunto?

Não há, diria Aristóteles, o mais importante pensador sobre estas matérias. Na sua "Ética", o filósofo apresenta três tipos de amizade que não devem ser confundidos.

O primeiro tipo apresenta o amigo como alguém que é útil para nós. Mantemos a amizade porque o seu fim seria um prejuízo, muitas vezes no sentido mais básico do termo.

No mundo profissional, é um tipo de amizade comum: os amigos do trabalho são, na realidade, elementos que nos convêm para cumprir tarefas ou obter ganhos pessoais.

A instabilidade dessa relação é óbvia: finda a utilidade da relação, a amizade desaparece tão rapidamente como apareceu.

O segundo tipo de amizade, segundo Aristóteles, acredita que o amigo é uma fonte de prazer, como acontece com certas drogas ou certos líquidos. Como escreve o filósofo, os jovens são especialmente propensos a esse hedonismo calculado.

A imagem apresenta uma série de figuras humanas estilizadas, todas na cor preta, organizadas em linhas. No meio dessas figuras, uma delas se destaca, sendo representada na cor laranja. Essa figura laranja está posicionada na linha do meio, entre as figuras pretas, criando um contraste visual.
Angelo Abu

Mas também aqui a precariedade é notória: quando o amigo deixa de ter valor lúdico, é hora de encontrar um novo "entertainer". Essa é uma das razões pelas quais as amizades de juventude são tão intensas e, paradoxalmente, tão facilmente descartáveis e substituídas.

Qual é, então, o conceito mais elevado de amizade?

É a amizade por virtude: dois seres humanos reconhecem-se como humanos, valorizam mutuamente a excelência do outro e, pormenor fundamental, desejam o bem do outro sem pensar em benefício próprio.

É uma forma de amor, feita de admiração e confiança, onde as sujidades do ego ocupam um plano secundário.

Eis o teste da verdadeira amizade: olharmos para o amigo como um fim, não como um meio. Desejarmos o seu bem, não para o nosso bem —mas porque ele é quem é e nós somos quem somos, na belíssima definição de Montaigne sobre o amigo Étienne de La Boétie.

Sem surpresas, amigos desses são raros. Raríssimos. Exigem tempo, dedicação, às vezes sacrifício. De mim falo: conto pelos dedos de uma mão os amigos que correspondem à descrição do filósofo. Não sei se é um amor correspondido, mas acredito que sim.

A amizade virtual falha o teste aristotélico. Para começar, só por piada um algoritmo deseja o nosso bem. Ele pode ter sido programado para isso, mas a autenticidade que procuramos no amigo não existe. Existe apenas um simulacro de autenticidade que só amplifica a nossa solidão primordial.

Por outro lado, seria absurdo desejar o bem de uma máquina. A reciprocidade nem sequer existe nesse contexto, porque uma máquina não tem virtudes ou necessidades. Uma vez mais, existimos apenas nós com uma ilusão de amizade.

Hoje, o inefável Zuckerberg lamenta que os americanos tenham apenas três amigos em suas vidas. Pobre Mark. Soubesse ele o que é a amizade e esses três amigos, se fossem verdadeiros, já seriam um tesouro e uma multidão.

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