terça-feira, 13 de maio de 2025

Bruno Siniscalchi - O que há de nós, adultos, em atos monstruosos de adolescentes, FSP

 Bruno Siniscalchi

Psicanalista. Coautor de "É de Raça que Estamos Falando: Tornar-se Herdeiro da Psicanálise no Brasil"

[RESUMO] Autor sustenta que internet e redes sociais são perigosas para adolescentes, mas que, para explicar atos monstruosos cometidos por jovens, como no enredo da série da Netflix "Adolescência", é preciso olhar para a barbárie não como fenômeno exterior à nossa cultura, mas parte das famílias e da sociedade, como mostrou Freud.

Lançada em março, a série "Adolescência" ainda vem ocupando as conversas entre pais e educadores, impactados com a violenta história do assassinato de uma garota de 13 anos por Jamie, seu colega de escola.

A brutalidade do assassinato a facadas de uma adolescente por um garoto da mesma idade já seria chocante o suficiente para desassossegar todos nós, mas é a trama que está por trás desse ato bárbaro que parece perturbar ainda mais intensamente os adultos.

A imagem mostra duas pessoas sentadas em uma mesa em um ambiente de interrogatório. À esquerda, um homem com cabelo curto e uma camiseta vermelha parece estar passando a mão pela cabeça, demonstrando preocupação ou estresse. À direita, um jovem com cabelo escuro e uma camiseta cinza observa o homem, com uma expressão neutra. O fundo é composto por paredes cinzas e a mesa é de madeira clara.
Stephen Graham e Owen Cooper em cena da série 'Adolescência' - Netflix/Divulgação

Dois comentários que parecem revelar um mesmo assombro têm sido comuns. O primeiro é o desconcerto profundo que a série provoca quando, desde o primeiro momento em que a polícia invade a casa da família de Jamie para a sua apreensão como suspeito, o que se apresenta é uma família e um lar funcionais e afetuosos. Desde o início, sabemos que Jamie foi cuidado por uma família estruturada e atenta, de pessoas brancas, formada por seu pai, sua mãe e sua irmã poucos anos mais velha.

Na delegacia, o pai de Jamie, diante da situação chocante e, naquele momento, incompreensível para a qual de repente a sua vida é arrastada, revela que nunca antes havia estado em uma delegacia, nomeando o quanto o que estava acontecendo era da ordem do desconhecido e do impensável para as experiências vividas por ele e por aquela família até ali.

A questão que se coloca, então, é como em um contexto de uma família de classe média com pais estáveis, aparentemente sólidos em suas funções de cuidado e que não é afetada por limitações socioeconômicas drásticas, algo e alguém tão monstruoso pode acontecer.

É diante desse desconcerto que um segundo comentário também vem sendo recorrente: precisamos abrir os olhos para o que acontece na vida online dos nossos adolescentes, afinal as redes podem funcionar como uma espécie de território livre para conteúdos de ódio, como os discursos misóginos que aparecem na história de Jamie quando as motivações do crime são descortinadas.

Aos poucos, o que está por trás da fúria de Jamie quando comete o assassinato é desvelado e acaba por nos revelar que esse episódio de feminicídio está diretamente ligado à potencialização que acontece na internet dos discursos de ódio às mulheres por grupos masculinistas e a sua circulação entre adolescentes pelas redes sociais —alimentando, por essa via, o ato monstruoso de Jamie.

A internet e as redes sociais —centrais nos cotidianos e nas formas de subjetivação da maioria dos adolescentes de hoje— se mostram, aos olhos dos pais e cuidadores, mais do que nunca perigosas.

O perigo da internet, atentando a preocupação de pais sobre os conteúdos que seus filhos acessam muitas vezes de forma invisível para eles, é, sem dúvida, uma questão de fundamental importância para famílias e escolas em um momento em que tanto as redes sociais são o campo de expressão e interação principal entre adolescentes quanto essas mesmas redes sociais declaram a redução de moderação de seus conteúdos, cedendo espaço para discursos como os que influenciam a violência de Jamie.

No entanto, na tentativa de nos explicarmos como algo de tão monstruoso pode acontecer dentro das nossas famílias e escolas, se incorre em uma demonização da internet (como vem chamando atenção a especialista em cultura digital Gabriela Agustini), como se o horror pertencesse a ela e viesse de fora.

Não encontrando respostas sobre como algo tão terrível pode se dar das nossas estruturas de cuidado, tidas como saudáveis por um certo imaginário social, as redes sociais tomam a forma de um meteoro que atinge a formação dos nossos adolescentes e produz a catástrofe.

"Adolescência", no entanto, ao narrar a história de um crime hediondo por um adolescente, também apresenta uma espécie de instantâneo sobre a adolescência enquanto fato subjetivo e cultural na contemporaneidade. Dentro desse instantâneo, podemos encontrar algumas pistas sobre o que, de fato, nos assombra.

Em determinado momento da história, uma policial, durante a investigação na escola de Jamie, diz ao seu parceiro que detesta estar em ali: "As escolas têm esse cheiro. É um misto de vômito, repolho e masturbação. É horrível". A escatologia que ela deflagra naquele ambiente lotado de garotos e garotas por meio do cheiro parece dizer respeito a algo de incômodo que pode se dar quando convivemos de perto com adolescentes.

Em outra cena, o pai e a mãe de Jamie rememoram na frente da filha quando tinham 13 anos, de que forma viam um ao outro adolescente, como flertavam e os detalhes do primeiro beijo. Nesse momento, a situação se inverte e a filha faz cara de nojo. Ao mesmo tempo que se diverte com aquele relato, também encena o quão desagradável é visualizar a adolescência dos pais, fazendo contato com versões deles mais desengonçadas e escatológicas do que a adulta.

A adolescência pode ser desagradável e desconfortável para os adultos que estão à sua volta justamente pelo seu inerente caráter de experimentação e metamorfose. Ao experimentar sobre si próprio, ensaiando diferentes versões de quem se pode e quer ser, a adolescência também realiza experimentações sobre a sexualidade, o corpo e a linguagem que acabam por escancarar algo de íntimo de todos nós e da sociedade.

Afinal, é com as fantasias que também habitam os adultos que os adolescentes vão produzir as suas experimentações e ensaios de quem se vai vir a ser —ou seja, as suas próprias versões sobre ser adulto. Durante os seus ensaios em busca de uma versão própria, fantasias, que também pertencem ao universo dos adultos, são colocadas em ato, incluindo aquelas as quais temos pavor.

Conviver com a adolescência significa conviver com metamorfoses e deformações em diferentes registros —no próprio corpo, na subjetividade, sobre a cultura. Há algo de monstruoso, portanto, intrínseco à própria adolescência e suas expressões. Não à toa, em diferentes momentos, desde que a adolescência foi estabelecida socialmente tal qual a conhecemos agora, as suas expressões causaram desconforto por apresentarem algo de bárbaro e, por isso, serem socialmente nocivas. Aconteceu com a cultura do rock, com a cultura rap e funk, com a cultura digital. O que há de bárbaro nessas expressões, no entanto, costuma ser mais interno à cultura do que imaginamos à primeira vista.

Freud nos mostrou isso quando caracterizou, em 1915, a cultura como algo que procura dar contorno à barbárie. Por essa via, o que nos parece bárbaro e exterior ao que reconhecemos socialmente como nosso advém da interioridade da própria cultura. São os limites desses contornos que os adolescentes costumam barbarizar em suas experimentações.

Nesse sentido, podemos entender as redes sociais como uma espécie de cripta da cultura. Como trabalhado pelos psicanalistas Nicolas Abraham e Maria Torok, a "cripta" é o processo psíquico de enterrar vivas certas perdas que não puderam ser nomeadas como tais. Dessa forma, também estão enterrados nas profundezas da internet, de modo encriptado, traumas sociais que não foram assimilados pela cultura. Mas que, por terem sido enterrados vivos, retornam à superfície da sociedade pelas redes sociais, de maneira violenta e assustadora.

Do mesmo jeito que a psicanálise nos permite perceber que a violência e a barbárie que circulam nas profundezas da internet guardam estreita relação com o que é feito na superfície da cultura, podemos também extrair dela respostas sobre como algo de tão monstruoso pode ser fruto de uma família com boas intenções.

Freud, desde o início da sua obra, quando se volta para a versão psicanalítica da formação do eu, nos mostra como não é exatamente quem são ou o que é dito e feito pelos pais em relação ao seu filho que terá influência determinante na constituição psíquica dele, mas algo de inconsciente dos pais (ou de quem exerce essa função) que se transmite para seu filho. São os sonhos e anseios que os pais não puderam realizar de que o bebê torna-se herdeiro. É central para Freud também que caberá ao sujeito decidir, na história que escreverá para si próprio, que destinos dará à essa herança adquirida.

"Você acha que ele herdou isso de mim?" é a pergunta que o pai faz à mãe de Jamie e a si próprio. São os começos de Jamie que seus pais vão revisitar na tentativa de fazer um escrutínio do que foi dado a Jamie por eles e do que foi sendo adquirido por ele na sua história. O que o pai nos conta é como uma inadequação de Jamie ao futebol e depois ao boxe fizeram tanto ele quanto Jamie se sentirem falhando.

Na verdade, são as possibilidades de inserção nos modelos de masculinidade que lhe foram apresentados que falham. Algo que, como vemos no episódio da sua avaliação psicológica, é por meio da internet que ele vai poder buscar e encontrar outros modelos do que é ser homem e versões disso que prometam dar outros sentidos à condição rejeitada e inadequada em que se encontra.

Judith Butler nos chama atenção justamente para o quanto as normas de gênero que moldam as identidades na nossa sociedade produzem sofrimento não somente para as pessoas LGBTQIA+, mas também para quem se encontra inserido na heterossexualidade. Uma vez que as normas de gênero operam pela exclusão, punição e regulação, elas visam definir não só como devemos ser, mas também aqueles que não podem ser porque frustram as expectativas do que é masculino ou feminino, por exemplo.

Diante das identidades fixas que as normas de gênero impõem, qualquer um pode falhar diante do que é esperado ou aceito na performance de um "homem de verdade" e assim ser alvo de violência dos seus pares e das suas próprias referências.

No fim das contas, por trás tanto do desconcerto de como uma história terrível como a que se apresenta na minissérie pode ser enredada em uma família com a qual muitos de nós identificamos com as nossas referências de cuidado quanto da demonização das redes sociais como a responsável por trazer o horror para perto de nós sem que percebamos está a idealização que mantemos das nossas estruturas familiaristas. Familiarismo que é arraigado e articulado com valores classistas (e, então, racistas) e heterocisnormativos —calcando um imaginário social em que as famílias se autoidealizam como intactas e, por isso, impecáveis.

Algo disso explica também o processo crescente de patologização e medicalização da infância e da adolescência com uma certa "epidemia de diagnósticos", em que diferentes transtornos (como TDAH) funcionam como uma forma de manter a fábula da impecabilidade familiarista ao situar desvios e sofrimentos de seus filhos na esfera unicamente intrapsíquica.

Dessa forma, a autoidealização familiarista cumpre o seu objetivo de não querer ver como seu o que de si próprio está escancarado na sua frente.

Emblemático disso é quando, no último episódio, a van do pai de Jamie é pichada por adolescentes do bairro com a palavra pervertido. Não fica claro para a família e para nós se o escracho diz respeito à perversão de Jamie, do seu pai ou da própria família. No fundo, a perversão é de todos nós —ou como diz sua irmã ao final: "Jamie é nosso".

"Adolescência" parece nos mostrar que há mais de nós mesmos do que gostaríamos nos nossos adolescentes, nas profundezas da internet, nas coisas monstruosas que acontecem nas nossas famílias e escolas.

Adolescência

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