Conta a lenda que o tirano Dionísio 1º, governante de Siracusa no século 4 a.C., permitiu que Dâmocles, um cortesão bajulador, ocupasse o seu lugar por um dia. Foi homenageado com um lauto banquete, do qual participaram belas mulheres. A certa altura, olhando para o alto, assustado, deu-se conta de que sobre sua cabeça pendia uma afiadíssima espada presa por um fio da cauda de um cavalo.
Essa conhecida alegoria alerta para os constantes perigos que assolam os poderosos, podendo ser aplicada, por uma licença poética, aos riscos representados pelo impeachment —ao menos como concebido entre nós, por meio do qual uma maioria parlamentar ocasional pode destituir um presidente da República eleito pelo povo. Inspirado no direito anglo-saxão, esse instituto mereceu acolhida em todas as nossas Constituições republicanas. É regulamentado pela já antiga lei 1.079, de 1950, que define os crimes de responsabilidade e disciplina o respectivo processo de julgamento, cujas brechas e imprecisões acabam tornando o chefe de Estado presa fácil da volatilidade dos humores congressuais.
Uma de suas principais fragilidades consiste na faculdade conferida a qualquer cidadão de protocolar uma denúncia na Câmara dos Deputados, acompanhada dos documentos que a comprovem ou da declaração de impossibilidade de apresentá-los, com a indicação do local onde possam ser encontrados.
Não fosse apenas a facilidade em articular uma acusação dessa natureza, o seu arquivamento —seja porque liminarmente indeferida à falta de alguma formalidade, seja porque ulteriormente julgada improcedente pelo Senado Federal— não gera nenhuma consequência para aquele que a subscreve.
Ademais, muitos desses crimes são tipificados de forma excessivamente ampla, dando azo à admissão de acusações genéricas, não raro abusivas, de difícil contestação. É o caso daquele assim descrito: “Infringir, patentemente, e de qualquer modo, dispositivo da lei orçamentária”. A vagueza da definição permite que mesmo uma simples irregularidade fiscal sanável seja motivo para um impeachment.
Mas possivelmente o defeito mais grave dessa lei consiste em não garantir aos denunciados o direito ao contraditório e à ampla defesa, com a abrangência assegurada pela Constituição de 1988, promulgada posteriormente.
Além disso, embora o referido diploma normativo estabeleça que “recebida a denúncia”, ela “será lida no expediente da sessão seguinte e despachada a uma comissão especial eleita (...) para opinar sobre a mesma”, o texto não deixou claro se essa tramitação é automática ou se depende de algum ato formal.
Tal lacuna enseja a interpretação segundo a qual cabe ao presidente da Câmara decidir sozinho se autoriza ou não a instauração do procedimento, com o que o destino político do supremo mandatário da nação fica submetido à vontade de uma única autoridade, aliada ou adversária.
Contudo, há os que entendem que se está diante de uma prerrogativa constitucional da cidadania, espécie do gênero “direito de petição aos poderes públicos”, cuja eficácia não pode ser arbitrariamente tolhida.
O professor José Afonso da Silva, a propósito, ensina que não é dado à autoridade a quem é dirigida “escusar-se de se pronunciar sobre a petição, quer para acolhê-la, quer para desacolhê-la, com a devida motivação”; aliás, dentro de um prazo minimamente razoável.
Por isso urge atar a metafórica espada do impeachment com laços jurídicos mais consistentes, de modo a impedir que continue dependurada em preceitos legais da espessura do pelo de um equídeo.
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