domingo, 3 de outubro de 2021

Tempestade de terra em Franca me fez ter vergonha de ser do interior paulista, Reinaldo José Lopes, FSP

 Eu realmente gostaria de evitar que esta coluna se transformasse num espaço monotemático de autoflagelação, choro e ranger de dentes, mas o mundo real não deixa.

As imagens aterradoras (e bota “terra” nisso; me desculpem pelo trocadilho infame e amargo) da tempestade de poeira engolindo Franca (SP) na semana passada me fizeram ter vergonha de ter nascido e crescido no interior paulista.

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Tempestade com poeira e ventania encobre Franca, no interior paulista - Reprodução de Vídeo/@ConexaoGeoClima no Twitter

Trata-se de uma emoção inaudita, ao menos no meu caso. Passei uma década e meia na capital, mas fiz questão de voltar para cá assim que pude. Quis criar meus filhos em solo caipira. E sempre estufei o peito, cheio de orgulho, ao dizer que era do interior de São Paulo.

É da natureza humana amar o que os poetastros chamavam de “torrão materno”, mas eu costumava achar que meu amor por este chão era bastante justificável.

Eu amava o fato de termos construído uma semelhança de sociedade do conhecimento nesta terra roxa, com algumas das maiores universidades do Brasil e da América Latina plantadas aqui (e duas delas só na minha cidade natal!): UFSCar, USP, Unicamp, Unesp.

Amava a capacidade de transformar esse conhecimento em crescimento econômico: a força das indústrias, nosso papel na criação de combustíveis renováveis made in Brazil, os avanços agropecuários trazidos pela Embrapa.

Ainda amo o R retroflexo que a gente emite entre vogais e consoantes, o fato de que cidades com 200 mil ou 300 mil habitantes ainda têm a cordialidade e o calor humano de comunidades muito menores.

Mas o vento que despejou em cima de Franca o que restava do solo fértil dos arredores mostrou, sem disfarces, o que eu já andava intuindo há algum tempo. Nós, caipiras, gastamos o nosso cheque especial ecossistêmico como se não houvesse amanhã –e está chegando a hora de pagar os juros. Spoiler: se não criarmos vergonha na cara, e rápido, vamos ter de penhorar até as calças.

Quando os ventos arrancaram as escamas dos nossos olhos, algumas coisas ficaram claras.

Ficou patente que a pujança do nosso agronegócio não passa de ganância e insensatez; que a água farta que rega nossos jardins e enche nossas piscinas é puro esbanjamento. A imprevidência com que tratamos as bases mesmas daquilo que nos garante o que beber e o que comer deveria ser capaz de fazer corar até uma nação de selvagens, mas isso nem nos passa pela cabeça.

“Crianças, vocês vivem em um deserto. Vou lhes contar como foram deserdadas”, diz a voz profética do historiador Warren Dean (1932-1994) em seu clássico “A Ferro e Fogo”, em que documenta a saga da destruição da mata atlântica. O interior de São Paulo teve e continua tentando um papel inglório nesse processo, e essa frase, como propõe Dean, deveria ser a primeira a sair da boca dos professores na primeira aula de história das escolas deste estado.

“Deserto”, aliás, é tecnicamente o termo exato. Na precisa reportagem do colega Phillippe Watanabe sobre a nuvem, descobrimos que se trata de um haboob (em árabe, algo como “rajada”). É algo comum... no Saara e no Sudão. Ou seja, só uma degradação ambiental indescritível seria capaz de produzir isso nesta terra antes verdejante e aprazível.

Seria engraçado, se não fosse enfurecedor, ler algumas justificativas para esse absurdo. Um representante dos produtores de cana disse à BBC Brasil que “o setor tem os melhores especialistas, os melhores consultores em solo” e que “foi uma coisa acima do normal”.

Outro spoiler: os anos “acima do normal” estão se tornando a regra. Chama-se crise do clima. Precisamos das florestas de volta. ​

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