A mesma pandemia produziu heróis e seríssimos candidatos a vilões. Pessoas e instituições que desconheceram limites para salvar vidas. E outras que, conforme as robustas denúncias em curso, sequer fizeram o que estava ao alcance delas e da ciência para evitar perdas humanas. Uns colocaram o dever ético acima da própria realidade e, por isso, a alteraram; outros subordinaram o dever ético a muitos interesses —nenhum deles do paciente.
Corremos um risco sério nessa análise: supor que as atitudes corretas de uns e indefensáveis de outros decorreram apenas de opções pessoais ou empresariais, como simples expressões de uma vontade que pode circular livremente em uma ou outra direção, para perto ou para longe da ética.
A situação que estamos enfrentando, bom alertar, é muito mais complexa e, digamos, sistêmica. Enquanto a pandemia acontece, o setor de saúde passa pela mais rápida e extraordinária mudança de modelo no Brasil. Aquisições, fusões, IPOs assumiram protagonismo. E, como se fosse de repente, ergueram-se redes com presença em diversas regiões, surgiram verticalizações que colocam na mesma estrutura operadoras de planos de saúde e hospitais de propriedade delas. E ainda os privados, as cooperativas, os filantrópicos, os públicos.
Bom, isso! O desafio da saúde suplementar, inclusive no interesse do sistema público, precisa passar por renovação e experimentação de modelos. Também bom que o setor privado assuma com clareza que visa o lucro, até para seguir investindo.
O sempre inaceitável para o país e para o próprio setor privado será a hipótese, infelizmente concreta, de projetos empresariais —de planos de saúde, hospitais, laboratórios, profissionais isolados— que não se comprometem nem se pautam, em nome dos pacientes, pela ética e pela busca da qualidade.
Quem assume a ideia e o risco de empreender deveria saber: este é um setor diferente, onde mais e acima de qualquer outro a redução de custos, o cumprimento de metas e a alegria dos investidores precisam respeitar protocolos, ciência e qualidade. Cortar custos e oferecer lucros constitui a parte fácil do exercício, como deveria saber a “Faria Lima”. Difícil, mundialmente, é fazer isso respeitando a medicina e os pacientes.
Assim, o sistema brasileiro não deve ser condenado por oferecer diferentes opções de organização empresarial em saúde. Nosso erro está em outra dimensão: nem medimos nem valorizamos qualidade.
Para muitas autoridades e mesmo fontes pagadoras não importam a qualidade e o resultado do que é oferecido. E assim prosperam exemplos de “milagres empresariais” onde ocorrem surpreendentes indicadores em oncologia, distantes das práticas adequadas de todo o mundo. Simplesmente porque ali desistem de oferecer tratamentos, caros ou longos, ainda que pudessem talvez salvar vidas. A ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), que evoluiu bastante, fiscaliza muito em função de reclamações, raras por parte de quem mais deveria protestar —os que compram produtos populares e depois se deparam com suas doenças tratadas no limite do ilusório “o pouco que pagam”.
O Brasil adora fulanizar suas crises. Define o vilão e pensa que condená-lo (ainda que indispensável) resolve o problema. Urgente, porém, incluir na lista do que não aceitamos mais a negação ou a indiferença diante dos que teimam em trabalhar com ética, empatia e eficiência. E a falta de iniciativas para sinalizar o sistema de saúde na direção correta.
Os modelos de organização empresarial, todos, em princípio são bem-vindos. Nenhum deles necessariamente será vilão. Desde que saiba como se escreve uma história respeitável em saúde. Com “e” de ética.
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