domingo, 30 de março de 2014

caderno estadão 1964

1964

Choque entre 2 visões de Brasil

O conflito, que refletia a divisão do mundo entre capitalismo e comunismo, fermentava desde o início da década, ganhou as ruas e teve seu desfecho com a intervenção militar

28 de março de 2014 | 14h 27

Lourival Sant’Anna
É quase sempre arbitrária e discutível a definição do momento desencadeador de um acontecimento histórico. A tentação é grande de retroceder um pouco mais na busca do ponto de inflexão, do fato definidor. Com o golpe de 64 não é diferente. Mas talvez não seja possível entender aquele ambiente sem recuar pelo menos até a ascensão de Getúlio Vargas em 1930 e a implantação de seu Estado Novo (1937-45). Naquele período, o ditador populista e autoritário encarnou a figura paterna com que tanto sonham, do Descobrimento até hoje, gerações sucessivas de brasileiros, que se sentem desamparados sem um provedor, seja um senhor de escravos, imperador, marechal, coronel ou governante, ao mesmo tempo implacável, benevolente, poderoso.
Getúlio saiu e voltou. Retomado o ciclo dos governos democráticos, foi antecedido e sucedido por presidentes mais ou menos liberais e carismáticos. Mas seu suicídio em 1954 e sua carta-testamento selaram de forma quase mágica o papel do pai austero e protetor. Ao eleger Juscelino Kubitschek em 1955, os brasileiros buscaram uma resposta mais racional para os seus anseios. JK governava com "planos de meta", que resultaram na industrialização e na interiorização do País, por meio de rodovias e da construção de Brasília. Mas o apego popular ao getulismo ficou manifesto na eleição do vice, João Goulart, ministro do Trabalho e herdeiro político de Getúlio, que teve mais votos que Juscelino.
Conterrâneo de Getúlio, Jango, como era conhecido, rico fazendeiro de São Borja, no interior do Rio Grande do Sul, tinha convite, em meados dos anos 40, para entrar para o PSD, o mesmo partido do futuro presidente JK. Foi por intervenção direta de Getúlio, amigo de seu pai, recém-saído da Presidência, que Jango entrou para o PTB gaúcho. São dados biográficos importantes, que compõem o seu perfil futuro, de trabalhista híbrido, líder indeciso, que parecia ter de ser empurrado para o seu destino quase tão trágico quanto o de seu mentor - a desistência não pelo suicídio, mas pela renúncia sem resistência, seguida do exílio.
A posse de Juscelino teve de ser assegurada pelo general Henrique Lott, então ministro da Guerra, contra oficiais que tentaram impedi-la, por considerar a composição PSD-PTB à esquerda demais. Aí o golpe de 64 teve o seu primeiro ensaio, e as duas vertentes doutrinárias do oficialato - a legalista e a linha dura - se explicitaram. Os mandatos eram de cinco anos, sem direito à reeleição do presidente, mas os vices podiam voltar a se candidatar, e sua eleição era separada da do presidente. Em 1960, Jango consolidou sua popularidade, voltando a se eleger vice de Jânio Quadros, da coligação liderada pela UDN, principal partido conservador do País. Se no mandato anterior havia certa convergência entre o PSD e o PTB, e se Juscelino em certo sentido representava o ponto médio entre as correntes liberais e trabalhistas, com sua abordagem "social-democrata" de desenvolvimento, a eleição de 60 lançou o País na rota da divergência ideológica.
Jânio. Precursor do populismo de direita que depois se atualizaria em figuras como Paulo Maluf e Fernando Collor de Mello, Jânio foi o primeiro a dominar com maestria a mensagem dos meios de comunicação de massa. Venceu a eleição empunhando uma "vassourinha" para "varrer a corrupção" e lanchando sanduíches de mortadela nos comícios , para se identificar com os trabalhadores das grandes cidades. Excêntrico, imprevisível e intuitivo, Jânio estava longe de ser um líder liberal no sentido clássico. No seu curto mandato de sete meses, não esboçou uma política econômica coerente. No ambiente internacional envenenado pela Guerra Fria - a disputa por influência entre os Estados Unidos e a União Soviética -, explorou o arraigado sentimento anti-imperialista brasileiro ao condecorar o líder guerrilheiro argentino Ernesto Che Guevara, ícone da Revolução Cubana de dois anos antes, que então começava a alinhar-se com o bloco comunista.

No Comício da Central do Brasil, 18 dias antes do golpe, foto de Getúlio Vargas indica influência de sua visão de Estado intervencionista sobre Jango e líderes sindicais
Essas ambivalências acompanhariam o drama que estava por se desenrolar, e continuariam presentes na visão de Estado paternalista, provedor e autoritário que une grande parte dos brasileiros até hoje. Mesmo que a divisão não fosse clara e linear - e talvez poucas coisas o sejam no Brasil -, havia duas visões, dois modelos, dois rumos para o País, que colidiram na composição Jan-Jan (Jânio-Jango) e nos acontecimentos seguintes.
Em aparente manobra para angariar maior apoio no Congresso, o impulsivo Jânio renunciou em agosto de 1961, denunciando "forças ocultas" nunca vistas à luz da História. Jango recebeu a notícia em Cingapura, depois ter passado pela China comunista, em missão acertada com o presidente, como parte de sua política externa desalinhada com o esquema das duas superpotências - EUA e URSS.
O golpe de 64 teve então o seu segundo - e mais robusto - ensaio. Exército, Marinha e Aeronáutica tinham cada uma seu ministro, que, juntamente com o da Guerra, marechal Odílio Denis, tentaram impedir a posse do vice, pelo fato de ser apoiado pelos partidos Comunista e Socialista Brasileiro (PCB e PSB). A posse foi garantida, mais uma vez, pela corrente legalista, liderada, agora da reserva, pelo marechal Lott, que fora candidato a presidente na chapa de Jango. Assim como em 1955, o general Humberto de Castelo Branco fez parte desse grupo. Dessa vez, no entanto, foi necessário um acordo, pelo qual o presidencialismo deu lugar ao parlamentarismo. Tancredo Neves, do PSD, foi eleito primeiro-ministro.
O incidente abriu espaço para o protagonismo de Leonel Brizola, governador do Rio Grande do Sul pelo PTB e cunhado de Jango, que promoveu a "campanha da legalidade". Um plebiscito em janeiro de 1963 traria de volta o presidencialismo. Jango, no entanto, seguiria com apoio insuficiente no Congresso e nas Forças Armadas, e cada vez mais dependente do respaldo das "massas trabalhadoras", organizadas pelos sindicatos vinculados ao PTB e crescentemente hipnotizadas pela retórica febril de Brizola, que, já como deputado federal, disputava influência nacional com seu cunhado. Brizola pressionava Jango para adotar "reformas de base". Sabendo que não havia apoio no Legislativo para elas, falava em Assembleia Constituinte (o que era traduzido por "fechar o Congresso"), e em impô-las "na marra".
Acuado, sem alternativa de apoio, Jango, de índole conciliadora, pareceu vencer a própria relutância e atropelar a própria natureza no Comício da Central do Brasil, no Rio, no dia 13 de março de 1964, quando adotou a beligerância e a impaciência do cunhado - "vou falar em linguagem que pode ser rude", desculpou-se. Anunciou que havia assinado o decreto de reforma agrária e a nacionalização de cinco refinarias, criticou a Constituição e citou o "supremo sacrifício" de Getúlio Vargas. Bandeiras comunistas tingiam de vermelho a multidão de 150 mil a 200 mil pessoas.
Comunismo. Em reação ao que era percebido como o risco de "comunização" do Brasil - apesar de trabalhismo e comunismo competirem entre si -, foram organizadas as "Marchas da Família com Deus pela Liberdade", com apoio da Igreja e de setores liberais. A Marcha começou em São Paulo, no dia 19, onde reuniu entre 300 mil e 500 mil pessoas, e se espalhou por várias outras cidades, totalizando 1 milhão de manifestantes. Eles defendiam a Constituição, a propriedade e a democracia.
Em 25 de março, cerca de 2 mil marinheiros, sob influência do PCB, desafiaram o ministro da Marinha, Silvio Mota, celebrando o aniversário de uma associação que havia sido declarada ilegal. No dia 30, Jango compareceu a uma reunião de cerca de mil cabos e sargentos no Automóvel Club, no Rio, e pronunciou seu discurso mais virulento, em que falou de "represálias do povo" contra seus adversários, financiados pelo Exterior. Era uma referência ao escândalo de ajuda financeira americana à campanha de deputados. Alarmados com a possibilidade de o Brasil converter-se numa Cuba continental, os Estados Unidos patrocinaram também o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes), com sede no Rio, que fazia filmes de propaganda anticomunista.
Os dois episódios foram considerados tão provocativos para o oficialato que se especula se não foram estimulados por agentes da linha dura. Eles demoveram a maioria dos legalistas de suas hesitações - a começar por Castelo Branco, chefe do Estado-Maior. A reação foi imediata - e atropelou a cúpula. De prontidão desde o Comício da Central do Brasil, o 10.º Regimento de Infantaria, de Juiz de Fora, pôs-se em marcha às 12h30 do dia 31, rumo ao Rio. Quando entraram em contato com as tropas sublevadas na estrada, as forças supostamente legalistas se congraçaram com os companheiros e aderiram ao golpe.

Seis dias depois, a ‘Marcha da Família com Deus pela Liberdade’, que começou em São Paulo e espalhou-se pelo País, denunciou o ‘risco comunista’
EUA. Os Estados Unidos enviaram uma força-tarefa com um porta-aviões, quatro destróieres, duas escoltas e navios-tanque, para apoiar a intervenção militar. Mas deram meia-volta muito antes de se aproximar da costa brasileira. A rápida adesão dos comandantes levou Goulart a renunciar, partindo para o exílio no Uruguai. Castelo Branco venceu uma surda disputa de poder com o general Artur da Costa e Silva, líder da linha dura, e sagrou-se comandante da "revolução redentora da democracia", como foi chamada por seus partidários. O Congresso o elegeu presidente, e ele tomou posse no dia 15 de abril.
A intenção dos setores civis que apoiaram o golpe - e aparentemente da ala dos militares legalistas liderados por Castelo - era evitar um possível "autogolpe" de Jango, no qual se presumia que ele fecharia o Congresso e imporia suas reformas de base, inaugurando uma "ditadura do proletariado" tropical, aqui chamada de "república sindicalista". Entretanto, Costa e Silva liderou o que entrou para a história como o "golpe dentro do golpe". Numa sequência de decretos paradoxalmente denominados "atos institucionais", a ditadura militar foi gradualmente se instalando, com o cancelamento da eleição presidencial de 1965, o banimento de partidos, a abolição dos direitos e liberdades. A cada quatro anos, um Congresso subserviente elegeu um general-presidente, escolhido antes pela cúpula das Forças Armadas.
A ditadura durou 21 anos, deixando marcas na sociedade brasileira com a tortura e o desaparecimento de opositores. Na economia, seu legado foi ambivalente: de um lado, a inflação e o endividamento elevados; de outro, a implantação de uma importante infraestrutura no País. Toda essa história é contada em detalhes, em muitos casos inéditos, nas páginas que seguem.

Depoimentos de pessoas que viveram o momento do golpe

Segundo Almino Affonso, o general Assis Brasil, chefe da Casa Militar, disse a Jango que não havia nada que escapasse à rotina

28 de março de 2014 | 21h 53

Roldão Arruda
Almino Afonso, 84 anos, advogado e político paulista, filiado ao PMDB. Foi ministro do Trabalho no governo do presidente João Goulart, na primeira metade do ano de 1963. No dia 31 de março, ocupava uma cadeira na Câmara dos Deputados, na base de sustentação do governo.
Almino Afonso foi ministro do Trabalho de João Goulart - Werther Santana/Estadão
Werther Santana/Estadão
Almino Afonso foi ministro do Trabalho de João Goulart
Ao chegar à Câmara, no dia 31, tomei conhecimento de que a marcha do general Mourão Filho, de Juiz de Fora para o Rio, já estava acontecendo, com o propósito de derrubar o governo João Goulart. Fiquei surpreso, embora o clima de inquietação já fosse grande. Saí de lá e fui para a casa de Virgílio Filho, líder do governo no Senado. Ele também não tinha noção do movimento militar e por isso tomamos a decisão de ligar para o Goulart, que estava no Rio, no Palácio Laranjeiras.
Arquivo Estadão -19/10/1963
 
Assis Brasil (esq.) toma posse como ministro da Casa Militar, ao lado de Jango

Na conversa, o senador lhe deu a versão que tínhamos ouvido e pediu que dissesse o que ele deveria dizer na tribuna, caso fosse discursar mais tarde. O presidente respondeu que não havia nada que pudesse inquietar, que não havia procedência na versão do movimento militar, que era parte do tumulto que a oposição criava. Na extensão telefônica, no seu gabinete, encontrava-se o general Assis Brasil. Goulart perguntou a ele o que havia de verdade. O chefe da Casa Militar respondeu então que não havia nada que escapasse à rotina.
Eram marchas habituais na prática do Exército.
O presidente interpelou outra vez: 'Não há nada?' E ele respondeu: 'Nada, absolutamente nada, presidente.' O Jango diz para o Artur Virgílio: 'Tu ouviste, Artur. Não há nada. Não passa da toada da oposição.' O senador: 'Posso transmitir em meu discurso no Senado o que acabo de ouvir?' Goulart: 'Pode não, deve.'Terminou assim o nosso diálogo, ao meio do dia 31 de março. Depois cada um foi para sua casa almoçar.

General da reserva Luiz Gonzaga Lessa, ex-comandante da Amazônia, ex-presidente do Clube Militar do Rio.Eu era tenente-paraquedista do antigo Núcleo de Divisão Aero-terrestre e estávamos de prontidão desde as vésperas do discurso de João Goulart na Central do Brasil, no dia 13 de março. Nos dias 31 de março e 1º de abril, fiquei no quartel o dia inteiro. Chegamos a pensar que iríamos subir a serra para dar suporte à tropa do general Olympio Mourão Filho, que vinha descendo de Juiz de Fora para o Rio, porque existiam informações de que uma outra tropa, saindo de Petrópolis, iria barrar a passagem dele. Mas não foi preciso. Não tive nenhum receio, nenhum medo naquele dia. A tropa de paraquedistas estava pronta para qualquer missão.

Nathalia Timberg, 84 anos, atriz.Não esqueço que, logo após tomar consciência do golpe, recebi um convite para fazer Antígona de Jean Anouilh, uma peça inspirada na tragédia grega, que foi encenada na França justamente na época da ocupação alemã. Era uma peça de contestação e, ao final das apresentações, a plateia erguia a voz e gritava comigo: 'Não'. Era muito bonito. Não posso me esquecer.

Fernando Gabeira, 73 anos, jornalista, escritor e político, filiado ao PV.Eu trabalhava no jornal Panfleto, em Copacabana. No dia do golpe, fui participar de uma manifestação no centro, acompanhando as notícias do dia pela rádio Mayrink Veiga. Durante a manifestação, andaram dando alguns tiros no interior do Clube Naval, que ficava perto dali. Percebemos que a coisa estava acabada para o governo no momento em que a rádio, que havia sido importante na Cadeia da Legalidade (formada por Leonel Brizola, em 1961, para garantir a posse de Goulart) caiu nas mãos dos golpistas.
Plínio de Arruda Sampaio, 83 anos, político filiado ao PSOL.
Em 1964, era deputado federal pelo Partido Democrata Cristão (PDC) e relator do projeto de reforma agrária apresentado ao Congresso pelo presidente João Goulart. Na tarde do dia 31 vou falar num comício no meio do canteiro de obras do Teatro Nacional. Faço um bruta discurso para os candangos. Quando volto para casa, assim que paro o carro, aparece um menino, de cinco ou seis anos, e me diz que foi sem querer, que não queria acertar a pedra. Entro e encontro o meu filho, o Plininho, com o olho sangrando. Apavorado, saio correndo com ele para o serviço de pronto-socorro que funcionava na Câmara. Graças a Deus não pegou o olho, não atrapalhou nada da visão. Foi só o supercílio. Mais tarde, esse episódio me ajudou muito. Quando fui acusado de, naquele dia e naquela hora, estar comandando um grupo de candangos armados para matar deputados e senadores, eu tinha um álibi perfeito. Mesmo assim, fui indiciado em vários inquéritos policiais militares, o que me levou a deixar o País.

Eduardo Suplicy, 72 anos, economista, político filiado ao PT e senadorFiquei surpreso com o golpe. Eu fazia parte do centro acadêmico da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo e um dia antes, a 30 de março de 1964, havia participado da organização de um grande debate na escola, com a presença de vários professores, sobre a situação política do País. Ao final, como já se falava muito em golpe, realizamos uma votação entre os estudantes para saber se eram favoráveis ou não. Venceu, por grande margem de votos, a proposta que eu defendia, de respeito às normas constitucionais. No dia 31, acompanhei com muita atenção todo o noticiário e conversei muito com meus pais, que defendiam o golpe e haviam participado, dias antes, da Marcha com Deus pela Família.

Marcello Lavenère Machado, 75 anos, advogado, ex-presidente da OABEu morava em Maceió e participava de um grupo de jovens advogados, ligado à Igreja Católica, que ajudavam a promover a sindicalização de trabalhadores rurais no Estado. Lembro que, na hora em que chegou a notícia do golpe, com a saída de Goulart, eu participava de uma reunião no seminário metropolitano com um grupo de quase 40 líderes rurais. Eles estavam recebendo informações sobre maneiras de sindicalizar os trabalhadores. Interrompemos o curso, passamos as informações sobre o que estava acontecendo e dissemos que não convinha ficar reunido naquele momento, porque a repressão iria ficar forte. Depois, nos organizamos e acompanhamos os líderes rurais, de dois em dois, até a rodoviária, para que voltassem aos seus locais de origem.

Brasil definiu em 64 seu alinhamento na Guerra Fria

Jânio, com uma política externa errática, não teve tempo de juntar-se aos não alinhados; Jango exacerbou, no Brasil, a polarização internacional

28 de março de 2014 | 14h 52

Christian Lohbauer
O golpe militar que desalojou o presidente João Goulart em março de 1964 não foi um evento isolado na história política brasileira e mundial. Foi resultado de um processo de polarização interna, associado à polarização do sistema internacional. O antagonismo entre norte-americanos e soviéticos começou com a corrida nuclear no imediato pós- 2ª Guerra Mundial, aumentou com o bloqueio de Berlim por Josef Stalin em 1948, e ficou explícito na Guerra da Coreia no início dos anos 50. Todas as nações se viram obrigadas a um alinhamento que garantisse a defesa de seus interesses vitais. O Brasil enfrentou o mesmo desafio para definir o seu destino e concluiu seu alinhamento em 1964.
Jânio condecora Che Guevara com a Grã-Cruz da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul  - Arquivo Estadão - 19/8/1961
Arquivo Estadão - 19/8/1961
Jânio condecora Che Guevara com a Grã-Cruz da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul
Entre 1955 e 1968, período da Guerra Fria marcado pela "coexistência pacífica" entre as duas superpotências, flexibilizou-se a ordem bipolar diante das evidências da capacidade destrutiva que carregavam as armas atômicas. As intensas transformações causadas pelo processo de descolonização, principalmente na África e Sudeste Asiático, multiplicaram o número de Estados soberanos, todos em busca de desenvolvimento e protagonismo nos organismos internacionais. Se as tensões da Guerra Fria se estabilizaram no período de coexistência pacífica, a guerra ideológica se aprofundou e marcou conflitos por todos os continentes. No Brasil não foi diferente.
A polarização ganhou destaque com a eleição da chapa Jan-Jan em outubro de 1960. Na época havia a possibilidade de se eleger candidatos a presidente e vice de chapas diferentes. Jânio Quadros foi eleito presidente com apoio da UDN e de alas conservadoras da sociedade. João Goulart, o Jango, foi eleito vice com apoio do PTB e dos meios operários, apesar da derrota desastrosa do general Henrique Lott. Em pouco tempo a combinação mostrou-se explosiva. Jânio governava de forma errática. Combinava medidas populistas e alinhadas à esquerda com ações conservadoras. Conseguia desagradar aos dois lados e aprofundar a polarização interna da sociedade.
Ainda em 1959, a Revolução Cubana derrubara o ditador Fulgencio Batista. Fidel Castro rapidamente mostrou inclinação ao socialismo. A ameaça comunista se instalava na América, nas barbas da superpotência capitalista, e tinha simpatizantes por toda a América Latina. Jânio presidente condecorou Che Guevara com a Ordem do Cruzeiro do Sul e gerou inconformismo nos conservadores. Talvez a intenção fosse exercitar a política externa independente e colocar o Brasil mais próximo dos países não alinhados.
Afinal de contas, a Conferência de Bandung de 1955 tinha lançado Kusno Sukarno da Indonésia, Gamal Abdel Nasser do Egito e Jawaharlal Nehru, da Índia, além de Chu En Lai da China, como estrelas ascendentes de uma terceira via da política internacional. Esses quatro visavam promover a cooperação econômica e cultural afro-asiática, opondo-se ao que consideravam o neocolonialismo norte-americano e soviético. Passaram a exercitar o pragmatismo político para extrair vantagens de ambas as partes.
O fato é que, com a sua surpreendente renúncia em agosto de 1961, Jânio não teve tempo de fazer o mesmo. Jango estava em Cingapura, depois de passar pela China, e teve de voltar às pressas sob o risco de não assumir. Curioso notar que no mesmo mês a Alemanha Oriental de Walter Ulbricht e Erich Honecker concluía a construção do Muro de Berlim, símbolo de um sistema internacional que entraria em colapso só em 1989.
Com a renúncia, a disputa pelo poder no Brasil entrou em processo de instabilidade permanente até o golpe de 1964. A posse de Jango, nacionalista moderado, não encontrou boa recepção nas alas conservadoras das Forças Armadas, mas encontrou simpatia das ligas camponesas de Francisco Julião, apoiadas pelos cubanos, e nas lideranças estudantis da UNE e da juventude católica de esquerda. Também apoiavam Jango uma parte da burguesia nacional "anti-imperialista" e, principalmente, os movimentos operários.
O Partido Comunista Brasileiro colaborava com Jango embora um grupo ainda mais radical tenha decidido alinhar-se ao modelo chinês (e depois albanês), constituindo o Partido Comunista do Brasil. A tentativa de se modernizar uma sociedade muito desigual, ainda dependente da exportação de café, mas com industrialização crescente, era vista por muitos como um caminho para o socialismo. E o apoio a representações com orientação socialista atormentava militares e conservadores.
Entre setembro de 1961 e janeiro de 1963, Jango governou em regime parlamentarista tendo como primeiro-ministro Tancredo Neves. San Tiago Dantas, ministro das Relações Exteriores do gabinete de Tancredo, reatou relações diplomáticas com a União Soviética e defendeu a neutralidade do Brasil na crise dos mísseis cubanos.
Enquanto isso, o presidente John Kennedy questionava seus secretários sobre como agir em relação ao Brasil. Instruiu Lincoln Gordon, seu embaixador em Brasília, a interferir mais ativamente na política brasileira. Foi o tempo em que Kennedy decidiu envolver os Estados Unidos na defesa dos interesses do Vietnã do Sul enviando milhares de militares para bombardear o avanço comunista de Ho Chi Minh. Kennedy não teve tempo de ver o resultado da decisão de se envolver no Sudeste Asiático. Foi assassinado em novembro de 1963, momento em que no Brasil Jango tinha fracassado em decretar estado de sítio para conter agitações no campo e greves operárias em São Paulo.
No início de 1964, a intenção de iniciar reformas de base por decreto ficou explícita no comício da Central do Brasil, no Rio de Janeiro. Bandeiras vermelhas e pedidos de reforma agrária em uma época em que o livro vermelho com os pensamentos de Mao Tsé-tung começava a ser distribuído internacionalmente dão uma ideia do temor que o comunismo despertava nos meios conservadores. A polarização internacional também estava presente no Brasil. E em 1964 veio a ruptura.
* Doutor em Ciência Política pela USP, é membro do grupo de análise da conjuntura internacional (Gacint) da USP.

Propaganda igualava a esquerda a Hitler

Sem menção direta ao governo João Goulart, filmes que incentivaram o golpe também atacavam ‘desordem’ e associavam reformas a suposta ação do ‘totalitarismo’ da URSS

28 de março de 2014 | 14h 58
Wilson Tosta / RIO
Imagens de Hitler, Stalin, Lênin e Mussolini misturam-se a fotos de Che Guevara, Fidel Castro e Kruchev e de greves no Brasil do início dos anos 60. Aparecem ainda prisioneiros famélicos em campos de extermínio da 2ª Guerra Mundial e demonstrações de massa nazistas, com pronunciamentos em alemão do Führer de braço estendido, e divagações sobre problemas brasileiros, como o sistema portuário e a miséria no Nordeste. O toque mais forte de Guerra Fria vem de cenas da revolta da Hungria de 1956, com cidadãos disparando inúteis tiros de fuzil contra blindados da União Soviética e mortos espalhados nas ruas. Tudo marcado pela voz empostada do locutor Luiz Jatobá, com frases dramáticas como a definição do destino dos húngaros: "Eles preferiram a morte à tirania".
Produzidos pelo fotógrafo Jean Manzon, que formou uma polêmica dupla com David Nasser na revista O Cruzeiro nos anos 50 - há ainda um episódio com a assinatura de Carlinhos Niemeyer do Canal 100-, 14 filmetes de propaganda do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes) ajudaram na doutrinação da população para o golpe militar de 1964.
Com duração variável, em torno de 10 minutos, foram exibidos em cinemas, empresas e praças e estavam entre as iniciativas de propaganda da instituição surgida oficialmente em 29 de novembro de 1961, pela articulação de empresários e militares que discutiram política desde o governo Jânio Quadros e, agora, queriam o poder sem intermediários.

O Ipes foi financiado por companhias brasileiras e norte-americanas e tinha entre seus dirigentes o general Golbery do Couto e Silva. Coordenou ações com outras organizações, como a Campanha da Mulher pela Democracia (Camde) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), objeto em 1963 de uma CPI no Congresso por ser acusado de financiar campanhas eleitorais no ano anterior com dinheiro dos EUA. Sediado no Edifício Avenida Central, no Rio, o Ipes desenvolveu atividades conspiratórias e de inteligência, como o grampeamento de 3 mil linhas telefônicas, além da propaganda como a dos filmes.
Não há neles nenhum ataque direto ao governo João Goulart, nem às reformas de base. Há críticas ao atraso brasileiro, à má situação dos portos, à pobreza, à ação dos "demagogos", à péssima condição das ferrovias, "às greves, algumas políticas" que acabavam "por provocar prejuízos a toda a coletividade". São feitos elogios à Igreja Católica, presente na maioria dos filmetes com imagens da encíclica papal Mater et Magistra e algumas vezes com elogios à ação de sacerdotes supostamente moderadora de conflitos sociais. Os espectros do comunismo e da guerra, porém, rondam boa parte do material do Ipes.
"Na Hungria em 1956, o povo pegou em armas para lutar contra a opressão totalitária. E nós? Que preço pagaremos nós pela liberdade?", declarava o locutor no filmete Depende de Mim. Todos os episódios, filmados em preto e branco, estão disponíveis para pesquisa no Arquivo Nacional. Os filmes foram parte do esquema de comunicação do Ipes, do qual participavam escritores como Rachel de Queiroz (1910-2003) e Rubem Fonseca, e que tinha ramificações na grande imprensa da época.
Em aparente esforço para equiparar os comunistas aos nazistas, o Ipes fez de Hitler um "ator" frequente dos seus filmetes. Sua figura de bigodinho, roupas militares e braço em saudação povoou episódios como "O que é o Ipês" (com circunflexo), no qual afirma-se que o ditador "não teria dominado a Alemanha (...) se as elites dirigentes alemãs tivessem compreendido a necessidade de tudo fazer para impedir o choque aberto e violento entre a direita e a esquerda antes que fossem colocados diante da terrível opção: nazismo ou comunismo".
"E nós?" diz o locutor. "Para onde estamos sendo conduzidos? O Brasil vive momentos difíceis. As manifestações populares tornaram-se cada vez mais opressivas. A inquietação atinge os lares. Os demagogos agitam a opinião pública (...)."Em alusão a Goulart, afirma que "não há Fidel Castro sem um (Fulgencio) Batista (ex-ditador cubano) que o preceda".
O filmete Nordeste, Problema Nº1 demonstra escândalo com as altas taxas de mortalidade infantil na região e as atribui à "subnutrição", à "ignorância". "Muitas mães nordestinas curam ainda hoje o umbigo dos recém-nascidos com uma mistura de teia de aranha e estrume de vaca", enoja-se. Aos empresários , o Ipes deu um recado no filme Conceito de Empresa. "Mesmo que os demagogos o poupem, não se iluda, pois o seu dia chegará. (...) Pouco a pouco, o polvo demagógico há de querer abraçar mortalmente todas as indústrias".

Embaixador dos EUA pediu dinheiro, adido militar e armas para apoiar o golpe

Diálogo entre o embaixador em Brasília Lincoln Gordon e John Kennedy ocorreu no primeiro dia de gravação de conversas com o presidente na Casa Branca, e graças a isso ficou registrado

28 de março de 2014 | 15h 05

Flávio Tavares
A década de 1960 foi um tempo de aberta conspiração político-militar na América Latina. Os Exércitos pareciam destinar-se a preparar golpes de Estado, não a defender a integridade territorial. O Brasil estava nesse cenário. Além disso, a inflação galopante gerada pela construção de Brasília agravara a miséria rural do Nordeste e, desde a posse de João Goulart, em 1961, a reforma agrária ocupava o debate político.
Goulart visita o presidente Kennedy em Washington  - AP - 3/4/1962
AP - 3/4/1962
Goulart visita o presidente Kennedy em Washington
A reforma era uma bandeira da Aliança para o Progresso (o programa dos Estados Unidos para barrar a influência da Revolução Cubana), mas os conservadores brasileiros a repeliam, vendo nela "a alavanca do comunismo". A Guerra Fria, com o mundo dividido em áreas de domínio dos EUA e da União Soviética, exacerbava as paixões políticas e assustava todos. Entre civis e militares, esquerda e direita se enfrentavam numa disputa cega.
Nesse contexto se desenvolve a conspiração que desemboca no golpe de Estado.
Fui o último jornalista a estar com João Goulart no Palácio do Planalto, na tarde de 1.º de abril de 1964. Testemunhei seus derradeiros momentos, já em fuga da Capital. Acompanhei seus acertos e desacertos como governante, tal qual (desde a posse em 1961) tinha convivido com civis e militares envolvidos nas tramas da conspiração. Presenciei a sessão do Congresso, de apenas 3 minutos, na madrugada de 2 de abril, em que o senador Auro Moura Andrade declarou "vaga a Presidência da República", sem qualquer debate ou votação.
Depois, como colunista político em Brasília, tentei penetrar nos desvãos do movimento que levou ao golpe e me fiz perguntas. Seria a revanche de 1961, quando os ministros militares não permitiram a posse do vice-presidente Goulart (por considerá-lo "pró-comunista") e foram derrotados pela mobilização iniciada pelo governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola? A conspiração se nutriu das provocações da extrema esquerda, em que o deputado Francisco Julião (com dinheiro de Cuba) armava guerrilhas contra o próprio Jango, assustando ainda mais a direita? Ou tudo ardeu pela propaganda subliminal que o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes) do coronel Golbery do Couto e Silva incutiu na população e nos quartéis sobre o "perigo comunista", através dos textos e filmes de Rubem Fonseca?
Afinal, por que um golpe, se a inflação debilitava o governo e já havia três candidatos à eleição presidencial de 1965?
Em 1976, a historiadora norte-americana Phyllis Parker descobriu nos arquivos dos EUA os primeiros documentos "secretos" sobre a Operação Brother Sam - o deslocamento da frota naval dos EUA a 31 de março de 1964, rumo a Santos, em apoio ao general Olímpio Mourão Filho. Surgem, aí, as entranhas da conspiração. A cada 10 anos, os EUA liberam novos documentos e, assim, pôde-se reconstruir a participação de Washington nos preparativos e na execução de tudo, como revelo, agora, no livro 1964 - O Golpe.
Na paranoia da Guerra Fria, ambos os lados se enfrentavam com fantasias, mentiras e (até) verdades. E tudo assustava. O embaixador dos EUA, Lincoln Gordon, assustou-se não só com a nacionalização das empresas americanas de eletricidade e telefones por Brizola no Sul ou com sua dura pregação "anti-imperialista" pelo rádio, mas também com a lei sobre a remessa de lucros das companhias estrangeiras. E, até, com o Plano Paulo Freire, que alfabetizava em 40 horas/aula. Na época, analfabeto não votava e o governo teria 20 milhões de novos eleitores na eleição de 1965.
A 30 de julho de 1962, Gordon leva pessoalmente ao presidente John Kennedy um terrorífico relato sobre "o avanço comunista" no Brasil. Nesse dia, a Casa Branca havia inaugurado a gravação das audiências e telefonemas presidenciais e tudo ficou registrado: o embaixador pede US$ 8 milhões para financiar candidatos nas eleições de governador ou parlamentares, e para o Ipes, "uma organização que temos lá".
Após dizer que Jango pensa "num golpe branco" para manter-se no poder, pede um novo adido militar à embaixada, para "fortalecer os militares democratas simpáticos aos EUA" numa eventual ação militar contra Goulart. "O atual adido militar é muito burro", exclama o embaixador, e sugere a nomeação do coronel Vernon Walters.
Em seguida, Walters chega ao Rio, recebido no aeroporto do Galeão por 13 generais brasileiros que serviram com ele na 2ª Guerra Mundial, na Itália. Seu mais íntimo amigo, porém, está ausente: o general Castelo Branco comanda o 4.º Exército no Recife e lhe manda um abraço através do general Ulhoa Cintra. O próprio Walters assim conta no livro de memórias Silent Missions. Daí em diante, Cintra será "o contato" dos conspiradores com a embaixada, como referem as mensagens de Gordon à Casa Branca e à CIA.
Conspiração. O assassinato de Kennedy (novembro de 1963) leva à Casa Branca a "linha dura" do vice Johnson e "tudo se facilita", conta o próprio Walters. A 21 de março de 1964, o embaixador volta de Washington, após acertar detalhes do Contingency Plan, o plano militar a aplicar no Brasil, e informa que Castelo Branco "aceitou a chefia da conspiração". "De todos os militares que nos procuram há dois anos e meio, ele é o mais idôneo", enfatiza.
Dias 27 e 29, sob o impacto da crise na Marinha, provocada pela revoltosa assembleia dos marinheiros, Gordon informa que "comunistas ocupam postos vitais nas Forças Armadas". Pede provisões urgentes de gasolina e armas para "grupos civis" em São Paulo e que os EUA "se comprometam diretamente" e enviem a frota naval, com porta-aviões, "em demonstração aberta de força, não secreta".
"Sei o quão grave é a decisão de intervenção militar, mas devemos considerar que a derrota levará à comunização do Brasil", escreveu. Sugere que as armas cheguem em submarino e sejam descarregadas à noite, ao sul de Santos, em Iguape ou Cananéia. Os conspiradores "
castelistas" haviam planejado o golpe para fins de abril e o embaixador se surpreende com a rebelião de Minas. Mas logo após, em 31 de março, Washington confirma que a frota já ruma para Santos, com um porta-aviões, quatro destróieres com mísseis, duas escoltas e navios-tanque. Cerca de 110 toneladas de munição, mais gás lacrimogêneo, irão em dez aviões cargueiros diretamente a Campinas. Cinco petroleiros levarão gasolina e diesel de Aruba a Santos.
Nada disso foi preciso. Jango desistiu de qualquer resistência e, a 4 de abril, a frota naval voltou a Norfolk, de onde partira.
* Jornalista e escritor, é autor de "1964 - O golpe".

A vitória do civilismo oligárquico

28 de março de 2014 | 15h 50

Oliveiros S. Ferreira
A Constituição de 1891 foi abolida por Getúlio Vargas em 1930 mediante simples decreto. Em 29 de outubro de 1945, os generais que o depõem entregam o poder ao presidente do Supremo Tribunal Federal, respeitando a Constituição de 1937. Em 24 de agosto de 1954, generais das três Armas fazem pressão para que Vargas se licencie até o esclarecimento do atentado que matou Rubens Vaz, e para que o vice-presidente assuma.
O presidente Castelo Branco, durante visita a São Paulo, dois anos depois de assumir o poder - Arquivo/Estadão - 11/4/1966
Arquivo/Estadão - 11/4/1966
O presidente Castelo Branco, durante visita a São Paulo, dois anos depois de assumir o poder
O suicídio de Vargas caracterizou uma interferência do "acaso". Nos dias 11 e 21 de novembro de 1955, a tropa rebelada espera que o Congresso declare vaga a Presidência. O Congresso declara impedidos o vice-presidente Café Filho e o presidente da Câmara, Carlos Luz. O presidente do Senado assume o poder até a posse de Juscelino Kubitschek.
Essa sequência de intervenções militares seguidas da entrega imediata do poder ao setor civil fez que a academia visse nas Forças Armadas o poder moderador da república - ainda que pouco tivessem elas a ver com a natureza e as funções do moderador no império. Agiam inspiradas pelo civilismo oligárquico (quando não se rompem os padrões civis de governo e não se alteram as relações oligárquicas de poder). Esse padrão de comportamento persistirá até 9 de abril de 1964, quando é editado o Ato Institucional nº 1 e o Comando Revolucionário assume poderes constituintes. A decisão dos ministros militares em 1961, negando posse a Goulart, afastou-se desse padrão, sendo por isso rejeitada pelo 3.º Exército. O recurso a ato institucional indica que a mentalidade civilista persiste e influenciará o presidente-marechal Castelo Branco, eleito pelo Congresso. Ele pretende que seu sucessor seja civil.
O que Oliveira Viana chamou de "mole militar" moveu-se até 1964 inspirada por seus "totens" - o ministro ou generais de quatro estrelas. As diferentes correntes políticas no mundo civil, sabendo disso, aproximam-se dos totens, liberais ou comunistas, que detêm postos de comando. Na "Novembrada" de 1955, a política estava presente nos quartéis. A divisão no mundo civil e nas Armas acentua-se após a posse de Goulart em 1961 e a volta ao presidencialismo em 1963, ainda que a visita do presidente aos EUA permita um respiro aos que temem que sua gestão subverta a ordem.
Radicalismos. No mundo civil, o governador da Guanabara, Carlos Lacerda, é o porta-voz radical do "partido da ordem" - conjunto não organizado dos que, votando neste ou naquele candidato, "formam" sob o lema Família-Propriedade-Religião-Ordem. Sua pregação contrapõe-se à do governador gaúcho Leonel Brizola. Radicais, ambas não respeitarão as normas não escritas do civilismo oligárquico: Lacerda quer uma "ditadura romana"; Brizola, as grandes reformas, "na lei ou na marra".
Nas eleições no Clube Militar, os "partidos civis" ganham forma: a Cruzada Democrática e os Nacionalistas.
As eleições de 1962, para o Congresso e governos de diferentes Estados, encontram o partido da ordem cuidando de defender suas posições. É quando se organiza o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad) para financiar candidaturas, especialmente preocupado em derrotar o candidato a governador Miguel Arraes em Pernambuco. Sinal claro da radicalização é o discurso com que o candidato Ademar de Barros, em São Paulo, apresenta-se aos eleitores na TV: "O poder sindical não passará". Ele vencerá o pleito; Arraes também.
Enquanto Brizola aumentava a pressão pelas reformas de base e Francisco Julião liderava em Pernambuco as Ligas Camponesas, grupos civis organizaram o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (Ipes), cujo objetivo final não foi ainda esclarecido: um golpe militar fora dos padrões do civilismo oligárquico ou defesa da Constituição na hipótese de Goulart dar um golpe (havia um "dispositivo militar" da Presidência)? Sem dúvida o Ipes tem contatos militares, diríamos não os decisivos, porque lhe falta um general disposto a liderar. Pery Bevilacqua, que se ergue contra a ação sindical no porto de Santos, é defensor da Constituição.
Depois do comício de 13 de março, quando Goulart, sob proteção de tanques e tropa do Exército, anuncia reformas de base, Castelo Branco redige ao Estado-Maior um documento reservado, reafirmando que o Exército não serve a partidos, mas à Constituição. O general Olympio Mourão Filho, em Juiz de Fora, está longe do círculo maior de conspiradores, mas firme na ideia de defender a Constituição contra os comunistas. Subleva a 4ª Região Militar na madrugada de 31 de março - depois da revolta dos marinheiros e do discurso de Goulart, na véspera, aos sargentos - para surpresa dos que, no Rio, buscam se organizar.
O AI-1 e as cassações frustraram os que militavam sob a bandeira do civilismo oligárquico. Mas são dele os louros, com Arena e MDB. Os presidentes militares fizeram questão de governar com a antiga classe política, ainda que sem alguns de seus expoentes. A rigor, o processo iniciado a 31 de março concluiu-se com o triunfo do partido da ordem, suporte do civilismo oligárquico, que ainda nos governa.
* Professor da USP e da PUC/SP. membro do gabinete e oficina de livre pensamento estratégico. Autor de ‘Elos Partidos: uma nova visão do poder militar no Brasil’ (2007). www.oliveiros.com.br

A doutrina francesa e a tortura no Brasil

28 de março de 2014 | 16h 01
Marcelo Godoy
Em 15 de novembro de 1956, dois militantes da Frente de Libertação Nacional (FLN) entraram em um café frequentado por militares franceses em Argel e jogaram uma granada, que explodiu, mas não feriu ninguém. Um suboficial correu atrás de um deles e matou o árabe a punhaladas. Ódio, revolta e vingança foram combustíveis de uma guerra que deixou 500 mil mortos e levou à independência da Argélia, em 1962.
Militar francês segura o punhal usado para matar guerrilheiro que jogou granada - Intercontinental
Intercontinental
Militar francês segura o punhal usado para matar guerrilheiro que jogou granada
Distante daqui, o conflito travado pelos franceses no Magreb ia influenciar profundamente as Forças Armadas brasileiras por causa de um livro. Escrito em 1958 pelo coronel francês Gabriel Bonnet, Guerras Insurrecionais e Revolucionárias se tornaria uma das obras mais difundidas nas academias e escolas militares do País nos anos 1960 e 1970.
A Biblioteca do Exército o publicou em 1963, com apresentação do general e pensador militar Carlos de Meira Mattos. Às vésperas do golpe, o livro de Bonnet difundia uma nova doutrina, a da guerra revolucionária. Ela virou, nas palavras do general Octavio Pereira da Costa, uma obsessão. "Via-se a guerra revolucionária em todo canto."
A definição de Bonnet para esse conflito foi adotada aqui pelo Estado-Maior das Forças Armadas. Era "uma guerra interna, de concepção marxista-leninista, adotada por movimentos revolucionários apoiados ou estimulados pelo exterior". Ela visava "a conquista do poder por meio do controle progressivo, físico e espiritual da população sobre a qual é desencadeada". A política se transformava em guerra, e o inimigo vivia dentro das fronteiras nacionais.
A doutrina era resultado do revés francês na Indochina, em 1954. Para enfrentar o desafio da insurgência, o general Marcel Bigeard, o mais condecorado oficial francês do pós-Guerra, pregava ser necessário "espírito de cruzados". Só "um exército revolucionário" - ele escreveu - podia enfrentar a ameaça da revolução.
Em 7 de janeiro de 1957 o governo da França deu ao Exército plenos poderes sobre Argel. Seguiu-se a divisão da cidade entre regimentos paraquedistas. O objetivo era neutralizar a FLN. Em um ano, a guerrilha foi esmagada. Os franceses produziram 3 mil desaparecidos.
Teórico da guerra revolucionária e veterano da Batalha de Argel, o coronel Roger Trinquier escreveu: "Se é necessário praticar brutalidades inevitáveis, uma disciplina rigorosa deverá sempre estar pronta para proibir aquelas que são inúteis, pois o Exército tem os meios de exigir e de manter uma firme disciplina". A tortura não devia ser um instrumento de sádicos e sim uma arma de guerra. Devia ser julgada só por sua eficácia e não pela moral. Comiseração pelo inimigo era um sentimento a ser evitado. A brutalidade não era mais um excesso. Era o resultado de uma doutrina.
O pensamento francês apareceu no Brasil em um momento de perplexidade entre os militares. Depois da 2.ª Guerra Mundial, o Exército procurava definir qual seria a doutrina a ser empregada em um conflito próximo. Pensava-se que a guerra convencional estava superada. Surgiu então entre os americanos a doutrina da guerra nuclear, que incluía até o uso tático de armas atômicas.
Para os brasileiros, a guerra nuclear era delirante. Foi nesse vazio que surgiu a doutrina da guerra revolucionária. Ela foi trazida ao País pelos oficiais que cursaram a Escola Superior de Guerra (ESG) em Paris. Não foram apenas militares que se interessaram pela doutrina. Políticos, como o deputado federal Bilac Pinto (UDN), também difundiram seus conceitos.
Usada nos órgãos de segurança, essa teoria da guerra não foi adotada em sua plenitude no Brasil como na vizinha Argentina, em 1976. Aqui o pensamento militar clássico, que subordina o poder militar ao civil, ajudou a limitar a obsessão que enxergava subversão "em toda propaganda contra o regime".
Contra a revolução, Bonnet pregava reformas. Trinquier ia mais longe: "Todo indivíduo que de uma forma qualquer favoreça os desígnios de nossos adversários será considerado como um traidor e tratado como tal". Uma política que, posta em prática, só podia levar ao extermínio, a fórmula totalitária para tentar acabar com o dissenso entre os homens.
*JORNALISTA

Eu assumi para ser deposto’

Revela o apoiador do golpe, que depois garantiria a volta dos milicos para casa

28 de março de 2014 | 17h 09
Laura Greenhalgh
Trigésimo primeiro mandatário brasileiro, ele hoje se define num rasgo de sinceridade: "Fui um presidente improvisado, que assumiu para ser deposto". Mas a morte prematura de Tancredo Neves, de quem era vice, não só lhe abriu o caminho para chegar ao Planalto, como jogou em suas mãos a tarefa (histórica, diga-se) de conduzir os destinos do País num tempo de total incerteza política, fragilidade institucional e caos econômico. Nesta entrevista exclusiva, José Sarney, aos 83 anos de idade, repassa o percurso desde o momento em que se posicionou contra João Goulart - "como ele era apoiador de Vitorino Freire, meu tradicional inimigo político no Maranhão, então eu era anti-Jango" - até o momento em que se viu frente a frente com os militares em 1985, garantindo-lhes, já como presidente, que poderiam retornar aos quartéis, seguros de que a transição democrática seria feita com eles, e não contra eles.
 - Andre Dusek/Estadão
Andre Dusek/Estadão
"Cumpri esse acordo, sem deixar hipoteca para trás", pondera. Aliado de primeira hora do regime, conta que teve momentos difíceis com Costa e Silva e Médici, em contraste com o bom trânsito com Castelo. E reconhece que sua proximidade com o generalato ajudou bastante a montagem da candidatura de Tancredo Neves à Presidência: "Eu ainda pude lhe dizer ‘Tancredo, você não governa sem base militar’". Ao fim de três horas de conversa, o senador longevo faz uma confissão à repórter: admite que deveria ter se despedido da vida pública e ido para casa ao passar a presidência para Collor de Mello, em 1990. "Ali eu já havia cumprido a minha missão. Me arrependo de ter continuado na política".
Onde o senhor estava quando aconteceu o golpe militar, há 50 anos? Em Brasília. Não se sabia ao certo o que estava acontecendo. Atravessávamos um momento de dificuldades, grande insatisfação e agitação pelo País. Eu estava no segundo mandato como deputado federal, era membro do diretório nacional da UDN e não tinha contato com setores que pudessem estar articulando uma revolução contra o poder constituído. Dias antes, em 19 de março, fiz um discurso na Câmara pregando a conciliação, alertando que não poderíamos deixar o País marchar para uma ruptura institucional. Que deveríamos nos esforçar para que jamais isso ocorresse.
Qual era a sua posição em relação ao presidente João Goulart?Eu era entrosado dentro do meu partido, a UDN. Fora isso, no meu Estado, o Maranhão, Jango prestigiava o Vitorino Freire, que era meu tradicional inimigo político. Então, eu tinha uma posição clara: era contra o Jango.
Sendo assim, o senhor de alguma forma teve sinais do que viria a acontecer ao presidente?Quando recebemos as primeiras notícias do deslocamento de tropas de Minas para o Rio, o único contato estreito de que eu dispunha naquele momento era o (então governador mineiro) Magalhães Pinto. Liguei e consegui falar com ele. Perguntei se era verdade que havia tal movimentação. Ele confirmou que os generais Carlos Luiz Guedes e Olympio Mourão Filho estavam se dirigindo para o Rio. Diante disso, vi que já não era possível impedir as Forças Armadas de agir, especialmente depois que o presidente participou daquele ato de insubordinação dos sargentos.
Como chegou a essa percepção?1964 foi a última das intervenções salvacionistas implantadas pelos militares no Brasil, na perspectiva daquilo que o almirante Custódio de Melo (foi ministro da Marinha e das Relações Exteriores no governo Floriano Peixoto) chamava de "a destinação histórica das Forças Armadas". Ou seja, intervir sempre que as instituições estivessem em crise. A primeira dessas intervenções foi a própria República, que já nasceu como uma questão militar, fruto de fermentação que vinha desde o Império. Depois, em 22, 24, 30, 32, 50, 54, 60, tem-se uma série dessas intervenções. A de 64, inclusive, foi capitaneada por aqueles mesmos tenentes do passado, já mais velhos - é o Cordeiro de Farias, o Brigadeiro Eduardo Gomes, o Costa e Silva, os irmãos Geisel.
Em que momento os militares sentiram que poderiam ser vitoriosos em 1964?Eles tentaram ter o controle da situação na renúncia do Jânio. Não deu certo. Mas quando conseguiram atrair o Castelo Branco para o seu movimento, deu-se aquele ponto de inflexão que abre a possibilidade da vitória. E por que foi decisivo atrair o Castelo Branco? Porque ele era um legalista de vida inteira, tanto que o Juscelino o convidou para a presidência da Petrobrás e ele recusou dizendo que, como soldado, não poderia nunca ocupar um cargo civil. A adesão do Castelo foi chave. Ele tinha o respeito das tropas, não fazia parte de grupos, era tido como herói da FEB, grande estrategista, professor respeitado, senhor de posições sempre coerentes. A única vez assinou um manifesto foi para pedir a renúncia do Getúlio em 1954. Cobrado por isso, disse que não fora uma atitude pessoal, mas coletiva, em consonância com o generalato.
O que pesou mais no desenrolar dos fatos, na sua opinião: o contexto mundial ou a atuação do presidente João Goulart?Temos a obrigação de contextualizar a paisagem de 1964. Sem isso não se compreende o que aconteceu. Os americanos tinham interesses aqui na região? Claro que tinham, tanto que governos foram sendo derrubados um após o outro - Argentina, Peru, Equador.... Além disso, vivíamos a Guerra Fria e estivemos perto de um conflito nuclear com a descoberta dos mísseis em Cuba. O clima já era tenso e havia quem jogasse mais fogo. Eu me lembro de uma declaração do Fidel Castro dizendo que, se fosse brasileiro, em dez dias derrubaria o Castelo Branco. Aquilo caiu muito mal aqui. Também acredito que Jango tenha feito de tudo para criar uma situação insustentável, porque não é possível entender, com a distância do tempo, como ele cometeu tantos erros naquele momento.
A que erros o senhor se refere?Comparecer a um ato de rebeldia militar e ainda fazer discurso a favor da sublevação de cabos e sargentos contra os seus superiores. Justo ele, o comandante-em-chefe das Forças Armadas! Foi um erro incontornável. Tanto que o general Amaury Kruel (ex- ministro da Guerra de Jango), que era muito amigo dele, disse que não fizesse aquilo. Jango colocou em todos os comandos do Exército homens da sua extrema confiança. E depois colocou em xeque o papel institucional das Forças Armadas. Não dá para entender. Com habilidade maior, teria completado o mandato, pois as eleições não tardariam. E Juscelino seria eleito presidente.
Houve também um movimento para a permanência de Jango no poder. Sim, o que também foi visto como meio de subverter as instituições. Não era um movimento forte, mas causou certo efeito. A meu ver, só fez aumentar a impopularidade do presidente, uniu contra o seu governo todos os jornais, depois setores produtivos e finalmente as Forças Armadas. Jango criou seu próprio isolamento - e historiadores hoje conseguem demonstrar bem isso. O que nos leva a pensar que ele talvez quisesse alcançar esse paroxismo, para depois ir embora. Ao participar do ato dos sargentos, talvez já soubesse que iria sair. Mas pode ter pensado "vou sair por cima".
Por que 1964 terá sido a última intervenção militar salvacionista no Brasil? Porque houve um esgotamento fechando um longo ciclo. Antes de 1964, os generais não tinham regras claras de permanência no Exército. Eles atuavam como generais chineses, donos de exércitos. O Cordeiro (de Farias) tinha o seu grupo, o (Henrique Teixeira) Lott tinha o dele, os Geisel, também. O Castelo então limitou a permanência dos oficiais a quatro anos em cada posto. E a 16 anos na patente. Isso quebrou a espinha dorsal de uma estrutura que produzia facções que eram verdadeiros partidos políticos dentro do Exército. Só Castelo poderia fazer isso, porque era um militar de visão grande.
Em que medida o regime implantado em 1964 rompeu com o legado varguista?Getúlio era um homem formado no positivismo castilhista e borgista do Rio Grande do Sul, o que explica seu perfil autoritário. Mas, ao deixar o Rio Grande, ele mudou de personalidade. Tornou-se o Getúlio esperto, ardiloso, passador de rasteiras, e assim atraiu o militares. Finda a Segunda Guerra, no entanto, os militares voltaram imbuídos de que o mundo deveria ser outro, a humanidade deveria atravessar um longo período de paz e deveria se buscar a vertente democrática. Getúlio ficou antiquado nesse contexto. Retornou ao poder em 1950, mas já não sabia lidar com os militares. Conseguiu perder a confiança até na guarda que fazia sua segurança no Catete, o que o levou a buscar proteção em capangas como o Gregório, bem ao estilo do Sul. Hoje podemos ver com clareza os efeitos negativos da figura do "pai dos pobres". Ver como o peleguismo sindical atrasou o Brasil. Isso só desaparece com a eclosão do sindicalismo de Lula, no ABC. Ali houve uma ruptura com o legado de Vargas.
Como os militares viram a emergência daquele novo sindicalismo?Foi o Paulo Egydio quem levou ao general Golbery do Couto e Silva a notícia de um sindicalismo moderno no ABC, e o general achou aquilo muito bom, tinha até simpatia pelo movimento. Era o início de um Brasil diferente, com certo equilíbrio nas relações capital/trabalho. Getúlio não estava preparado para governar no regime democrático e saiu por uma porta genial, que foi o suicídio. Aquela bala matou a UDN e colocou-o na história. Como ele mesmo postulou.
O senhor presenciou o aprofundamento das diferenças entre o general Castelo Branco e seu sucessor, Costa e Silva. Que lembranças guarda disso? Não há dúvida de que o plano do Castelo era terminar o mandato do Jango com eleições. Costa e Silva, por sua vez, formou o Alto Comando Revolucionário e, como oficial mais antigo, quis deixar claro que não queria o Castelo. Foi obrigado a aceitar. Uma vez ouvi do próprio Castelo que ele era muito cobrado por não enfrentar o Costa e Silva. E Castelo respondia dizendo não querer repetir o que acontecera entre os marechais Deodoro e o Floriano, aquele embate feroz que acabou dividindo as Forças Armadas. Só que o Castelo foi para o governo e logo começou a dar trombadas. A mais danosa para a sua imagem deu-se justamente quando Costa e Silva encaminhou o pedido de cassação do JK, à sua revelia. Castelo terminou sucumbindo à pressão do Costa e Silva, cassou o JK, no entanto chamou o Luís Vianna Filho, seu chefe do gabinete civil, ordenando que ele informasse à imprensa que Juscelino fora cassado por motivos políticos, não por corrupção.

A convocação de eleições para o governo dos Estados também opôs os dois generais. Sim. Querendo cumprir o calendário que havia se proposto e fiel à ideia de fazer uma intervenção restauradora, Castelo fez as eleições de 1965, contra a vontade de Costa e Silva. Foram eleitos políticos como Negrão de Lima, pelo Estado da Guanabara, Israel Pinheiro , por Minas Gerais, e os militares da linha-dura diziam que não se daria posse a eles. Ali o Castelo ficou ameaçado de ser deposto. E saiu-se com aquela frase famosa, de que ele era o comandante-em-chefe das Forças Armadas, portanto, ele daria a posse, e não os oficiais do Exército, aos quais caberia obedecer. Costa e Silva então foi a Minas, para uma reunião com Castelo presente, e lá fez um discurso radical, censurando as eleições para governador. Castelo ficou calado. Ali foi construído um acordo, cujo principal articulador terá sido o Juracy Magalhães (embaixador do Brasil nos EUA e ministro da Justiça no governo Castelo Branco), e do qual sairia o AI-2, segundo o qual os governadores tomariam posse, mas com poderes restringidos. Hoje estou certo de que, não fosse o Castelo, 1964 teria degenerado numa quartelada, abrindo espaço para um ditador personalista, ao estilo do Pinochet. Castelo imaginou enquadrar a linha-dura com a Constituição de 1967. Não aconteceu. Costa e Silva, seu sucessor justamente, chega ao poder e baixa o AI-5. Aí a coisa degringolou.
O senhor participou dessa eleição para governador, em 1965, e foi eleito pelo Maranhão. Como era a sua relação como governador com o poder central?Vou contar um caso. Com três dias de empossado, o comandante militar no Maranhão me pediu uma audiência e foi quando conheci a figura do S2, o oficial de informação. Ou seja, o comandante veio acompanhado do S2. Daí me entregou um ofício determinando que eu substituísse dois secretários meus, por serem comunistas. Li o ofício e disse "olha, comandante, eu não vou devolver o documento para não ser indelicado. Mas o senhor entregou-o à pessoa errada. Deveria entregá-lo ao presidente da República, porque eu fui eleito pelo povo, portanto, vou cumprir meu dever da melhor maneira possível, com todas as minhas forças e melhores das intenções. Mas, reconheço que sou um funcionário público e que o presidente pode me botar para fora. Então, vá direto a ele, comandante, porque aqui quem governa sou eu".
E como se resolveu o impasse? No Rio de Janeiro, contei o episódio ao Castelo, que disse: "O senhor fez muito bem. Ele não tinha que se meter". Dois governadores no Nordeste foram respeitados pelos militares: João Agripino, na Paraíba, e eu, no Maranhão. Porque estávamos fazendo bons governos e porque não nos submetemos. Meu governo esteve sob vigilância, achavam que eu havia levado comunistas para o palácio. Tanto que quando terminei meu mandato, pegaram um secretário meu e prenderam por dez dias. Foi uma maneira de mostrar quem mandava. No Maranhão não precisamos de anistia, porque não demiti ninguém com base nos Atos Institucionais. E, quando da decretação do AI5, não passei um telegrama para Brasília. Fui o único governador a não enviar cumprimentos. E me preparei para ser afastado.
Acredita ter corrido o risco da cassação?Naqueles dias de 1968, o presidente Costa e Silva convocou todos os governadores para uma reunião e então disse que uma coisa me olhando: "Fui aconselhado a cassar alguns governadores, mas não fiz isso para não destruir a Federação. E nem abalar o Supremo". Sim, porque quando ele estava lá no Alto Comando, havia proposto a dissolução não só do Congresso, mas do Supremo.
Como o senhor se saiu no período Médici?Aí piorou, porque o general Medici até me hostilizou. Ele não foi ao Maranhão nenhuma vez em meu governo. E a estrada que fiz, de São Luiz a Teresina, foi inaugurada por ele em Teresina. A estrada toda corre toda no Maranhão, mas o Médici inaugurou no Piauí! Quando decidi concorrer ao Senado, fui comunicá-lo pessoalmente. E disse: saio para ser ou não candidato. Ele só me olhou, sem dizer nada.
O Senado marcou uma inflexão da sua carreira política, correto?Sim. Cheguei ao Senado e logo me liguei ao Sacro Colégio, grupo que se reunia secretamente, com o propósito de evitar choques entre governo e oposição. Faziam parte do Sacro Colégio Tancredo Neves, Ulysses Guimarães, Franco Montoro, Teotonio Vilela, Roberto Freire, entre outros, e a coisa funcionou bem, pois evitamos que as crises chegassem a um ponto de ruptura e o Congresso pudesse ser fechado. Tínhamos em mente a reação do regime ao discurso do (deputado oposicionista) Márcio Moreira Alves, em 1968, quando o Congresso foi fechado, de fato. Lembro de uma visita do ex-presidente chileno Eduardo Frei Montalva a Brasília, naqueles tempos. Ele já estava bem doente, então fizemos um almoço em sua homenagem no Congresso mesmo. Foi quando ele nos disse "vocês façam tudo para o Congresso não desaparecer, pois só sabe o que a liberdade representa aquele que a perde. A chama da democracia não pode apagar".
O que o moveu a aceitar ser vice na chapa do Tancredo?Eu não aceitaria a candidatura presidencial do Paulo Maluf, pelo PDS, em primeiro lugar. E também havia um movimento para prorrogar o mandato do Figueiredo. A reação a tudo isso entrou pela porta da minha casa: vi meu filho Zequinha, que já era deputado, votar a favor das Diretas Já. Disse a ele que me orgulhava do seu voto. E disse a mim ter chegado a hora de ir para casa. Renunciei à presidência do PDS. Mas aí o Ulysses resolveu namorar comigo. Ia quase todo dia à minha casa, "você não pode ficar de fora e não ajudar o Brasil nesse momento...". Recusei, mas daí o Aureliano Chaves me chamou também, pregando a união e dizendo que o partido iria indicar o vice na chapa do Tancredo. Sugeri o nome do Marco Maciel. Foi quando o Tancredo, certa noite, mandou um avião me buscar em Brasília, para um jantar na casa do (escritor) Murilo Mendes, em Belo Horizonte. Fui. Murilo e sua senhora me receberam, Tancredo estava com a dona Risoleta. Enquanto as duas mulheres conversavam, os três homens tramavam.
O que exatamente?Tancredo disse que o vice teria que ser eu e que essa seria uma das condições para ele deixar o governo de Minas e encabeçar a chapa. Reagi, "mas, Tancredo, eu fui presidente do PDS....". E aí ele veio com o argumento fatal: "Então você conhece o mapa da mina, sabe como os delegados vão para a convenção e pode articular muito mais". Lá pelas duas ou três horas da manhã disse que aceitaria, com uma condição: se não encontrassem um nome que agregasse mais. No dia seguinte, em Brasília, Aureliano bateu na mesa e disse "sem você na chapa, não tem aliança". Ulysses foi também muito correto comigo. A partir daí comecei a articular: construímos uma dissidência grande, evitamos a eleição do Maluf, a continuidade do Figueiredo e os militares aceitavam o Tancredo. Pude dizer a Tancredo: "Não pense que pode ser presidente sem uma base militar lhe sustentando".
As ligações com os militares foram sua maior contribuição naquele momento?Ajudaram bastante. Logo procurei o general Leônidas (Pires Gonçalves, foi chefe militar na Amazônia e no Sul, depois ministro do exército apontado por Tancredo e durante todo o governo Sarney), estive muitas vezes com ele. Leônidas ficou montando uma base de resistência no 3º Exército, no Rio Grande do Sul. Procurei o brigadeiro Murilo Santos, que começou a articular na Aeronáutica. O Tancredo fez algo parecido em Minas Gerais, com o general Bayma Denys, e o Aureliano, com o almirante Maximiniano da Fonseca. Isso foi fundamental, pois na noite que o Tancredo caiu doente, o ministro do Exército do Figueiredo, Walter Pires, ao saber que eu assumiria, ameaçou levantar os quartéis para impedir a posse. Estávamos preparados para resistir.
Qual era o seu estado de espírito ao assumir a presidência, depois de um mês de suspense em torno da saúde de Tancredo?Fui a última pessoa a acreditar que ele morreria. Porque aquilo pesava enormemente nos meus ombros. Eu vinha de um Estado pequeno, mal me preparara para ser o vice, não tinha participado das articulações para formar o ministério, não tinha plano de governo nem equipe, e, de repente, cai no meu colo a responsabilidade de fazer a transição democrática brasileira. A primeira coisa que pensei: preciso me legitimar logo ou serei deposto. Tancredo poderia adiar as coisas com as quais tinha se comprometido, inclusive a convocação da Constituinte. Mas eu não tinha esse timing. Tinha que fazer tudo rapidamente, ou as forças que emergiam da clandestinidade, e precisavam de espaço político, iriam se manifestar. O que fiz? Legalizei o Partido Comunista, acabei com as restrições aos sindicatos, dei anistia a trabalhadores, acabei com os municípios de segurança nacional, fiz eleição direta para prefeito em seguida, até o Ulysses me disse que era loucura, enfim, abri os espaços da liberdade logo de saída. Só depois parti para o plano econômico. E paguei caro por isso: enfrentei 12 mil greves no meu governo.
O que contou mais na estabilização da sua presidência, a Constituinte ou o Plano Cruzado?Se não fosse o Cruzado, não teríamos tido condição de fazer a Constituinte, que foi uma obra de engenharia política, num tempo muito difícil. O Plano Cruzado foi importantíssimo, a partir dele conseguimos sair das fórmulas ortodoxas e entramos nas heterodoxas. Eu jamais aceitaria a fórmula do FMI. Depois vieram os outros planos, Cruzado 2, Bresser, Verão, e eu sempre me valendo dos colaboradores de circunstância, já que assumi sem equipe. Foram planos com problemas, mas, sem eles, não teria sido possível o Real.
Por quê?O Plano Real passou pelas minhas, trazido pelo João Sayad, meu ministro do Planejamento. Reconheci que não teria mais condição de implantar aquilo. Mais tarde, quando Fernando Henrique chegou ao ministério da Fazenda, foi falar com os técnicos e o plano estava pronto. A verdade é que, quando o Cruzado começou a ter dificuldades, os economistas bateram em retirada. Não sabiam que efeitos aquilo surtiria, não tinham certezas. A meu ver, o grande mérito do Cruzado foi ter tido a coragem de romper com a ortodoxia.
O senhor se considera o condutor da transição democrática no Brasil?Estudiosos dizem que conseguimos fazer a melhor transição da América do Sul. Há alguns fatores a ponderar. Primeiro: não deixei para trás hipoteca pendurada com os militares. Eles voltaram aos quartéis, depois que fechei o acordo de que a transição seria com eles, e não contra eles. Eu lhes dei essa garantia. Construímos uma Constituição democrática, avançamos no plano econômico, fomos para o "tudo pelo social". Esses programas que estão aí já haviam começado no meu governo - combate à fome, distribuição de leite, vale-transporte, tudo vem daquele tempo. O crescimento no meu governo foi 5% ao ano e hoje não se fala nisso! Os preços subiam, sim, mas subiam os salários, imediatamente. Com isso fizemos um colchão que nos protegeu de seguir o Fundo, com sua fórmula criada para a Europa. E saiba que se eu tivesse cedido ao FMI, teria sido deposto. Foi um governo de trepidações, sim, mas exitoso ao criar uma sociedade democrática. Um governo que terminou com um operário concorrendo à presidência da República, o que era inimaginável naqueles tempos.
Acha que a História não lhe faz justiça, Presidente?Ainda vai fazer. A transição democrática brasileira se deve ao meu temperamento, também, esse jeito nordestino de dialogar. Cometi um erro ao voltar à política quando encerrei meu mandato presidencial. De novo, deveria ter ido para casa, mas daí veio o Collor, com todos aqueles problemas, e me chamaram de volta, isso, antes do impeachment. Saí então senador pelo Amapá, porque o PMDB não me deu legenda no Maranhão. Mas, enfim, olhando para esse meu retorno, vejo-o com arrependimento.Já havia encerrado a missão maior, que foi a transição democrática. E é só o que o País deve a este presidente improvisado, que assumiu para ser deposto.

‘Ainda não temos crença na democracia’

Lamenta o intelectual que se escondeu da polícia, até ser pego pela política

28 de março de 2014 | 17h 52

Laura Greenhalgh
Era jovem, mas já prestigiado como acadêmico. Equilibrava-se entre ser socialista nos modos e marxista nas ideias. E fazia a cabeça da estudantada da Faculdade de Filosofia da USP. Daí o golpe se consumou e o professor Fernando Henrique teve que sumir. Vazou, como se diz hoje. "Quando os policiais chegaram na Maria Antonia (nome da rua onde ficava a faculdade, em São Paulo) para me prender quase levaram o (filósofo) Bento Prado, achando que era eu", comenta o ex-presidente ao lembrar de um tempo em que precisou pular de casa em casa, de cidade em cidade, às escondidas, até se fixar no Chile, para onde seguiram a mulher, Ruth Cardoso, e os filhos pequenos.
 - Eduardo Nicolau/Estadão
Eduardo Nicolau/Estadão
Na entrevista que se segue, o trigésimo-quarto mandatário brasileiro reflete sobre a ditadura e conclui que ela não chegou a desmontar o Estado regulador. "Falam tanto em neoliberalismo, mas nunca tivemos isso no País. Já liberalismo político, esse eu até gostaria que houvesse mais". A 50 anos do golpe que o levou para o exílio e aos 82 de idade,
Fernando Henrique, deixa passar uma nota de amargura: "Não estamos em condição de ensinar democracia a ninguém, porque há muito a aprender. Faltam-nos, sobretudo, crença na democracia e grandeza na vida política."
Onde estava quando tudo aconteceu, 50 anos atrás? Semanas antes do golpe, quando houve aquele comício da Central do Brasil, eu estava no Rio, onde vivia meu pai. Passei pelo comício e embarquei lá mesmo, rumo a São Paulo. Era 13 março. No trem estavam o (hoje ex-ministro) José Gregori, o (hoje ex-deputado federal) Plínio de Arruda Sampaio, com quem eu acabaria me reencontrando no exílio, e um rapaz chamado Marco Antonio Mastrobuono, que depois viria a casar com a Tutu, filha do Jânio Quadros. Viemos conversando ao longo da viagem sobre a situação. Ali ninguém era entusiasta do Jango, eu também não era. Embora meu pai fosse um militar nacionalista, que inclusive havia sido deputado pelo PTB.
Seu pai era um nacionalista. E o senhor?Um socialista. Tivera contato com o comunismo nos anos 1950, mas àquela altura, depois do stalinismo, não sobravam ilusões. Também não tinha ilusão de que o Jango seria algo extraordinário ao País, porque ele era um populista e eu, um acadêmico. E, na universidade, tínhamos a convicção de que as mudanças viriam da luta de classes, não do populismo. Pois bem, chegando a São Paulo, encontrei um clima de grande agitação. Nessa época o Darcy (Ribeiro) já havia sido nomeado chefe da Casa Civil do Jango. E era muito amigo da minha família. Nós nos falamos algumas vezes por telefone naqueles dias e isso terminou me trazendo uma dor de cabeça tremenda, pois o aparelho do Darcy estava grampeado e fui grampeado, também.
O que aconteceu exatamente?O Darcy um dia me disse que viria a São Paulo e eu comentei "vem com cuidado aí com o Grupo dos Onze" (grupo de resistência radical concebido em 1963 pelo então governador gaúcho Leonel Brizola). Disse aquilo por dizer, sem qualquer intenção, porque havia acontecido uma violência contra o ministro da Reforma Agrária do Jango, em São Paulo, algo assim. Esse comentário grampeado iria me complicar no futuro, quando fui processado na Justiça Militar. Mas, na noite do golpe, lá na Maria Antonia, havia mesmo muita confusão. Eu exercia certa influência sobre alunos e professores mais jovens, embora fosse jovem também - tinha só 33 anos, mas já fazia parte do Conselho Universitário. Muitos dos meus colegas achavam que o golpe era do Jango e dos generais leais a ele, o Amaury Kruel, o Osvino Ferreira Alves. A confusão era tanta que eu telefonei para o Luiz Hildebrando da Silva, que era da Medicina da USP e ligado ao Partidão, dizendo para ele vir até a Maria Antonia, pois estavam preparando um manifesto contra um golpe do presidente. E não um manifesto contra o golpe no presidente! Veja como estávamos perdidos na USP, isolados da vida política, mergulhados num marxismo teórico. Vou contar uma passagem estapafúrdia: naqueles dias soubemos que haveria uma resistência armada no Sul e então o Bento Prado, o (cientista social) Leôncio Martins Rodrigues, o Paulo Alves Pinto, que era sobrinho do general Osvino, e eu cogitamos tomar um aviãozinho no Campo de Marte para lutar no Sul. Ainda bem que não houve luta alguma (ri). Então, assim foi a minha última noite andando pela rua Maria Antonia. No dia seguinte, a polícia apareceu por lá para me prender. Quase levaram o Bento Prado, pensando que fosse eu.
Como escapou de ser preso na Maria Antonia?Alunos meus ficaram nas esquinas, à espreita, para me avisar que a polícia estava lá, assim que eu me aproximasse. Acabei não indo à faculdade e naquela noite dormi na casa de um amigo, o cineasta Bráulio Muniz. Continuei me escondendo, daí fui para o Guarujá na casa do (fotógrafo) Thomas Farkas, com o Leôncio. E a Ruth (Cardoso), minha mulher, ficou aqui, tentando entender o que se passava. Ruth procurou o Honório Monteiro, que fora ministro do presidente Dutra e era meu colega no Conselho Universitário. O Honório tentou interferir a meu favor junto ao Miguel Reale, então secretário de Segurança. Mas o Reale respondeu que no meu caso não havia o que fazer, porque "esse professor Cardoso não é só teórico, mas prático também". Outro amigo, o (economista, museólogo e autor teatral) Maurício Segall, que já se ocupava de organizar fugas, achou que eu tinha que cair fora, não havia condições de ficar no País. Saí por Viracopos e fui para Argentina, para a casa de um ex-colega meu na França, que mais tarde viria a ser ministro do Kirchner, o José Nun. Tive convite para lecionar na Universidade de Buenos Aires, mas também convite para trabalhar na Cepal, no Chile. Preferi ir para o Chile. Meses depois Ruth veio ao meu encontro, com as crianças, e lá ficamos anos.
Voltou ao Brasil nesse período?Duas vezes. Eu me encontrei em Paris com Antonio Candido, que dava aulas por lá, e ele me ajudou a voltar ao Rio para ver meu pai. Era 1965. Quando meu pai morreu, eu estava no Chile, mas já com passaporte validado, portanto voltei para o enterro. Houve uma missa com muitos oficiais e um deles chegou perto do meu irmão para dizer, referindo-se a mim: "Ou ele vai embora ou vai ser preso". Vim para a casa do empresário e editor) Fernando Gasparian, em São Paulo, dormi outra noite na casa do (sociólogo) Pedro Paulo Popovic, e regressei ao Chile. Acabei não sendo preso. Houve o processo contra mim na Justiça Militar, com acusações ridículas, entre as quais aquela envolvendo o telefonema grampeado do Darcy, e outras histórias vindas da universidade, de colegas que naquele momento dedo-duraram bastante, mas depois virariam ultra-esquerdistas. O general Peri Bevilacqua, neto do Benjamin Constant e homem ligado à minha família, foi quem me deu um habeas corpus anos depois. Mais tarde ele seria cassado, também. Pude devolver as medalhas do general para a família dele, quando estava na Presidência.
O que o senhor pesquisava na época do golpe?O empresariado brasileiro. Foi minha tese de livre-docência, defendi em 1963 e publiquei-a no ano seguinte. Contestava a visão da esquerda de que havia uma aliança dos latifundiários com os imperialistas, contra a burguesia nacional e o povo. Isso era bobagem. Os empresários tinham ligação com o campo e não eram antiimperialistas, com exceção de dois ou três. A esquerda apostava no papel progressista da burguesia nacional e eu tinha uma visão crítica em relação a isso.
Disse que não se entusiasmava por João Goulart. Como o definiria?Jango não era de assustar ninguém e hoje seria um político muito mais tranquilo do que qualquer um desses governantes populistas da América Latina. Mas, no contexto da Guerra Fria, e pelos contatos que tinha com os comunistas, representava o horror naquele momento. Vi isso acontecer de novo no Chile. Allende era um reformista e virou o belzebu. Enfim, Jango era um político brasileiro tradicional, populista, um latifundiário que nunca quis fazer revolução alguma. Levantava a bandeira das reformas de base e ninguém sabia exatamente o que eram. Olhando sociologicamente: tínhamos o mundo contingenciado pela Guerra Fria, porém o Brasil começava a se encaixar no eixo dos investimentos estrangeiros, desde o Juscelino. Havia crescimento industrial, forte migração campo-cidade e um Estado incompetente para atender às demandas de uma sociedade que crescia. Então, a população começou a se movimentar e ir para as ruas. Nós, acadêmicos, estávamos tão entretidos com os debates teóricos, que quando nos demos conta as ruas tinham entrado na universidade!
Qual era o projeto dos militares em 1964? Submeter o País a uma modernização imposta de cima para baixo?Acho que nem tinham projeto. Setores pensavam de forma diferente e foram variando de posição até o final. O general Amaury Kruel (foi ministro da Guerra de Jango), por exemplo, foi um que variou até o momento do golpe. Mesmo o general Mourão, de Minas, não tinha noção do que deveria ser feito. Quem tinha? Os oficiais da Escola Superior de Guerra, o grupo do Castelo Branco. Esses sabiam que seria importante empreender no País a modernização conservadora. Mas, veja só, entregaram a economia ao (Otávio Gouveia de) Bulhões e ao (Roberto) Campos, que por sua vez saíram atrás da modernização capitalista - arrocho fiscal, arrocho salarial, tudo feito a machadinhas, o povo pagando um preço alto. Implantaram um programa austero, que deu na explosão econômica dos anos 70. Ora, quem fez isso não foram os militares, mas o Bulhões e o Campos. Havia necessidade de modernizar o capitalismo brasileiro. E, consequentemente, frear o avanço do setor estatal. Até porque o Juscelino já tinha feito o enganche do País com o setor produtivo global e os militares sabiam disso.

O senhor acha que o regime, no seu primeiro momento, tratou de sepultar o legado varguista?O Castelo, talvez. A verdade é que os militares já estavam claramente divididos, e isso era visível no Clube Militar: havia o setor ultranacionalista e o setor democrático-liberal. Este se aproximava dos Estados Unidos. E o ultranacionalista, embora não engolindo os russos, achava que eles funcionavam como contra-peso ao poderio americano. Isso, evidentemente, tem a ver com as posturas "ser Getúlio" ou "ser anti-Getúlio", levando-se em conta que o Getúlio simbólico foi sempre o nacionalista-estatizante. É interessante notar como era o contexto da época: os militares nacionalistas-estatizantes, que nunca confiaram nas forças do mercado, eram chamados de esquerda, o que era exagero. E os democráticos-liberais eram vistos como direita, outro exagero.
Daí o regime foi se radicalizando.
Exato, foi radicalizando a tendência autoritária. Isso não foi pretendido no começo, mas foi se formando. E virou um monstro que, não fosse o (general Ernesto) Geisel ter-se oposto, justo ele, um nacionalista-estatizante, correríamos o risco de cair numa direita fascista. Uma direita que se justificaria pelo apego à ordem, e não pelo desenvolvimento capitalista. Cabe ainda muita pesquisa sobre o período, para analisar com objetividade e entender como tudo aconteceu ao largo de um intenso processo de industrialização e urbanização. São Paulo, em meados da década de 70, crescia 5% ao ano. Havia mais de cinco milhões de pessoas vivendo aqui. Tivemos um crescimento econômico que não correspondeu ao social. Isso começa a ser corrigido com a redemocratização e vem até agora. Penso que hoje, de novo, vivemos algo parecido. Não se tem mais a mobilidade rural-urbana do passado, mas uma intensa mobilidade social. As pessoas querem mais e o Estado não tem como dar. Instalados no poder, os militares trataram de providenciar uma fachada de legalidade ao regime. Chegaram a falar em "democracia relativa".De fato, eles nunca aceitaram que o regime não fosse visto como democrático.
Laura Greenhalgh
Rejeitavam a ideia de fechar o Congresso. E mesmo impondo suas regras, queriam eleger o presidente. Isso faz diferença quando se compara ao que houve na Argentina e no Chile. Militares brasileiros disseram que o regime seria provisório, até que se purificassem as forças políticas, enfim, tinham essas ideias amalucadas. Os oficiais da linha dura, claro, não pensavam assim, eles de fato preocupavam-se com a ordem, a estabilidade do regime... Mas esse não era o pensamento da média do oficialato. Além disso, a ditadura foi perdendo apoios, tanto dos nacionalistas quando de setores democráticos. Nos anos 70, na Universidade de Yale, ouvi de Juan Linz, grande especialista em franquismo, uma frase que me marcou: "No Brasil, vocês não têm um regime autoritário. Têm uma situação autoritária". Por mais que buscássemos semelhanças entre os militares daqui com os chilenos e argentinos - e havia semelhanças, afinal, todos torturavam, o que é inexcusável - não havia o mesmo apego nem a mesma pretensão de uma nova ordem, algo também pregado pelo franquismo e o salazarismo. Estes acreditavam que para bem governar não era preciso ter o povo. Aqui se pensava que era preciso melhorar o povo para bem governar.
Mesmo com o avanço da visão monetarista na economia, inclusive nos anos Delfim Netto, até que ponto o regime terá mudado o perfil regulador do Estado brasileiro?Nunca mudou completamente. O que se chamou de regime neoliberal nunca houve no Brasil. O Roberto Campos foi fundador do BNDES. O Delfim foi intervencionista em vários momentos. Celso Furtado nem se fala. Eu próprio sempre achei que o Estado deveria regular muita coisa. Aqui nunca houve um pensamento econômico liberal, de fato. Pensamento político-liberal eu até gostaria que tivesse mais, mas econômico-liberal nunca teve. O Estado sempre desempenhou um papel forte. O que é razoável, desde que o Estado não extrapole, como frequentemente tende a fazer. O que nos falta é liberalismo político.
Como se traduz isso?Crença na democracia. O que se tem hoje? Pensamento corporativista. Os grupos se organizam e defendem seus interesses. Não aceitam regras de competição. E tem que ter, porque não há competição sem regra. Aqui, quando o Estado intervém, é justamente para evitar a competição.
Em novo livro, o pesquisador Daniel Aarão Reis levanta a seguinte questão: quando de fato terá terminado o regime militar? Em 1979, quando são revogados os atos institucionais, ou em 1985, quando o poder volta para as mãos dos civis? Enfim, quando a ditadura termina?
Só a partir de 1985. Nossa transição seguiu a opinião vencedora, diga-se de passagem, do Geisel, de que o País deveria viver uma abertura lenta, gradual e segura. Na época houve muita discussão a respeito e eu dizia o seguinte: o regime autoritário resiste como uma fortaleza. Nós, a oposição, estamos cercando a fortaleza. Esse negócio só vai ruir quando houver uma ruptura interna que se some à externa. Porque daí tem a infiltração. Esse momento aconteceu, a meu ver, pela primeira vez, quando o general Euler (Bentes Monteiro) aceitou ser candidato à presidência da República, pelo MDB, em 1978. Era uma facção deles que se descolava. Ulysses Guimarães fora inicialmente resistente a apoiar a candidatura do Euler. Queria o Magalhães Pinto, tendo o Severo Gomes (ex-ministro e mais tarde senador) como vice. Mas até o Severo preferia o Euler! Severo e eu ouvimos do Euler, pela primeira vez, que ele poderia aceitar ser candidato, quando então fomos falar com o Ulysses.
E qual foi a reação dele?Ulysses me ouviu direitinho, embora Severo estivesse inquieto. Depois me chamou no canto: "O que o senhor acha mesmo deste general, professor?" Respondi "olha, dr. Ulysses, nós já deveríamos tê-lo apoiado há muito tempo". Ele fechou a cara: "Mas o senhor não sabe que São Paulo é civilista?". Disse que sabia, mas que não poderíamos perder o primeiro racha dos militares. Entendi que se não houvesse um racha naquela couraça, a situação não principiaria a mudar. E tudo foi um pouco assim. A Anistia acabou passando, mas não da maneira que queríamos, a liberdade de imprensa foi voltando, veio o Movimento das Diretas Já, mas fomos derrotados no Colégio Eleitoral, o Tancredo foi eleito pelo voto indireto, daí veio o Sarney, que era um elemento da transição, no entanto soube entender o momento histórico, enfim, tudo veio de forma lenta e gradual. Eu mesmo fui eleito senador pela oposição no tempo do Figueiredo, em plena ditadura. A ruptura final só vai se dar na eleição do Collor, quando o presidente passa a ser eleito pelo voto direto. Aí, sim, é outro momento.
Ou seja, a recomposição democrática foi se valendo das fraturas do regime.Sim. E muita gente foi mudando, também. Severo Gomes e Teotônio Villela, por exemplo. Foram homens do regime e se transformaram em ícones da oposição. O próprio Ulysses votou a favor do Castelo Branco.
Anos antes, em 1973, Ulysses já havia procurado o grupo de intelectuais fundadores do Cebrap, entre eles, o senhor, para buscar apoio à sua anti-candidatura presidencial. Como foi esse momento?Eu havia publicado um artigo no jornal Opinião, dizendo que era chegada a hora de intervir no processo. Que os intelectuais não podiam mais ficar pensando na guerrilha, trancados em casa. Que seria melhor fazer a luta possível, nas ruas. Daí o Ulysses foi ao Cebrap, ainda na rua Bahia, em Higienópolis, achando que éramos um grupo político, quando éramos apenas um grupo de pesquisadores, com posições críticas ao governo. Ele nos convidou para escrever o que seria um programa de governo do MDB. Expliquei que teria que consultar os colegas, e alguns toparam: Chico de Oliveira, Maria Ermínia, Bolívar Lamounier, Paul Singer, Francisco Weffort, eu....fizemos um livrinho de capa vermelha, um projeto social-democrata que foi a mãe de todos os programas que viriam a aparecer depois.
Como era esse programa de oposição, elaborado em plena ditadura?Dizia coisas óbvias. Não ficava só no campo político, tratava de economia, de dívida externa, e daí entrava na questão da mulher, do negro, do índio, dos sindicatos. Foi um momento que marcou a minha aproximação com o MDB. Eu me lembro que Weffort e eu fomos a Brasília nos encontrar com aquelas "raposas", Amaral Peixoto, Nelson Carneiro, o próprio Tancredo, e nós, assustadíssimos, achando que eles não iriam aceitar o documento. E eles não estavam nem aí, só queriam um programa. Toparam na hora.
Foi difícil para o senhor entrar de vez na política?Eu tinha um viés muito acadêmico, como já disse, mesmo contanto com o background político da minha família. Aos 37 anos, eu era um catedrático da USP, aposentado pelo AI 5. E fiz o quê, então? Escrevia nos jornais alternativos da época, o Opinião e o Movimento. Só entrei no MDB em 1977, porque o Ulysses pediu expressamente para eu ser candidato ao senado. Queria que eu disputasse para ampliar a base, porque indiscutivelmente seria eleito o Franco Montoro. E só quando Montoro virou governador de São Paulo é que eu assumi a vaga de suplente no Senado. Até aí minha relação no mundo política era com o Ulysses, com o João Pacheco Chaves, com o Pedro Simon, que tinha um grupo de estudos bem ativo no Sul.
Aceitar um jogo político engessado no bipartidarismo foi uma questão intrincada para os opositores do regime?Sim, isso nos dividiu. Muitos diziam que não era possível participar, pois se tratava de uma oposição consentida. Eu estava convencido de que deveríamos usar as armas disponíveis. Até porque a situação muda. O MDB mudou e acabou funcionando como oposição verdadeira.
Nossa capenga estrutura partidária vem dessa época?Quer que eu diga uma coisa? Não sei se vem só lá de trás. Acho que o problema é mais profundo. Falta uma visão consistente do que seja o jogo democrático entre nós. Aqui, o que conta é o governo, o Estado. E democracia é organização do povo. Do jeito que vamos, com 30 partidos e 39 ministérios, ficou inviável. O custo é a paralisação da máquina pública, como bem disse a ex-ministra Gleisi Hoffmann, numa entrevista recente. Passamos do presidencialismo de coalizão para o presidencialismo de cooptação, essa é a verdade. Eu mesmo fiz coalizões. Mas o limite dos acordos era votar reformas. Agora, não. O que temos é uma amálgama para dividir o poder e o butim do Estado. Isso não dá governabilidade.
Por quê?Como o nosso sistema tem sempre esse elemento autoritário, que é a medida provisória, o governo se mantém e o Congresso fica cada vez mais achatado. Ora, a população que o sistema político vem perdendo legitimidade a olhos vistos. Enquanto a economia foi bem, essa crise não foi percebida. Agora, quando a economia não vai bem e tudo balança, ela aparece. Quando a presidente propõe um plebiscito, por exemplo, a ideia não se segura um mês porque não foi costurada, nem discutida e nem está atrelada a uma agenda política verdadeira. Estamos nos aproximando de uma situação delicada. Uma coisa são as flutuações econômicas, outra coisa é a paralisação da administração e do sistema político. Isso gera a separação entre sociedade e governo.
O senhor diria que estamos indo nessa direção?Sim, e corremos riscos. Um deles é a perda da capacidade de olhar o futuro e tomar decisões. Outro é o de provocar uma irritação popular incontrolável - e daí, como resolver? As demandas estão crescendo, o Estado não toma decisões, não entende que boa parte do que faz pode ser passado para o setor privado, e faltam lideranças. Eu diria que, hoje, não temos o que ensinar sobre democracia. Temos é que aprender. Por exemplo, como é que a democracia convive com as redes sociais? Isso não está claro. Falta ouvir mais, estudar mais e dar espaço para a criatividade. Não podemos dizer que um partido, o PT, seja o culpado por tudo o que estamos vivendo. Até porque tudo é mais grave do que isso.
Em que pese a animosidade atual entre o seu partido e o PT, lá trás o senhor determinou que se fizesse uma transição transparente do seu governo para o do presidente Lula, em 2002.Lula reconheceu isso de público recentemente, falando a empresários em Ribeirão Preto. Decerto imaginou que eram favoráveis a mim... Lula sabe o que fiz. Sempre tive preocupação institucional, daí o cuidado em transferir o poder, fincando bons fundamentos. Uma coisa que sempre me irritou na vida foi me chamarem de "neoliberal", esse qualificativo que não vale nada. Meu governo foi o oposto ao neoliberalismo. Fizemos ajuste fiscal, estabelecemos regras para a economia, aumentamos o salário mínimo, tocamos a reforma agrária, os programas sociais, demos prioridade à educação....e, diante do que foi feito, os governos posteriores ao nosso puderam avançar. Mas hoje não se preocupam em dar sustentabilidade ao que se construiu. Na vida política brasileira falta pensamento, falta interconexão e, no fundo, no fundo, falta grandeza. Você não vê ninguém dizendo vamos juntar forças e melhorar o País. Você só vê gente dizendo vamos juntar forças para ganhar eleição. Muito bem, ganha e faz o que depois? Como é que vai ser governar em 2015? Eu não sei

ango teve reunião secreta com bispos pouco antes do golpe

Eles tentaram convencer o presidente a dar 'novo rumo' ao governo

28 de março de 2014 | 18h 11

José Maria Mayrink
Duas fotos publicadas pela imprensa carioca no dia 25 de março de 1964, uma no Jornal do Brasil e outra na Última Hora, mostraram o presidente João Goulart entre o cardeal de São Paulo, d. Carlos Carmelo de Vasconcellos Motta, e o recém-nomeado arcebispo de Olinda e Recife, d. Helder Câmara, após um almoço no Palácio das Laranjeiras, no Rio.
 - Jornal do Brasil - março/1964
Jornal do Brasil - março/1964
Os três estavam sorridentes, o que levou os jornais a interpretar o encontro como uma demonstração de apoio da Igreja ao governo. O cardeal Motta presidia a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e d. Hélder era o secretário-geral. A tranquilidade era só aparente.O clima era tenso e todos se mostravam "aflitíssimos", segundo Marina Bandeira, secretária de d. Hélder, a quem ele relatou detalhes da conversa. Nada foi divulgado sobre a audiência, que havia sido solicitada pelo arcebispo de Recife, com a condição absoluto sigilo.
Nem garçom seria admitido na sala, depois de servido o almoço. A entrada de um fotógrafo da Secretaria de Imprensa da Presidência da República surpreendeu os bispos, que protestaram. Goulart alegou que seriam fotos para seu arquivo pessoal, mas determinou ou permitiu que fossem divulgadas. O historiador e teólogo padre José Oscar Beozzo conseguiu essas informações nos arquivos da CNBB.
Os bispos, segundo a secretária Marina Bandeira, tentaram convencer Goulart de que ele teria de dar novo rumo ao governo, se quisesse ser sustentado pelos militares. O presidente resistiu, pois acreditava no apoio do povo e no dispositivo de segurança montado pelo chefe da Casa Militar, general Assis Brasil. O almoço ocorreu entre os dias 22 e 24 de março, após o comício da Central no dia 13 e a Marcha da Família com Deus pela Liberdade do dia 19, no Rio. Na semana seguinte, conforme se previa pelos boatos e comentários sobre uma conspiração em andamento, as Forças Armadas se rebelaram e derrubaram o presidente.
A Igreja estava dividida. A maioria dos bispos aplaudia o movimento ou golpe militar contra a ameaça comunista, embora segmentos de organizações católicas, como os militantes da Ação Popular (AP), oriunda da Juventude Universitária Católica (JUC) e seus assessores religiosos, apoiassem Goulart e suas prometidas reformas de base. Grupos de esquerda da Igreja que dominavam as federações de trabalhadores, compartilhando os sindicatos com os comunistas, foram contra os militares, mas manifestos favoráveis à derrubada do regime tinham a assinatura dos Círculos Operários Católicos.
No dia 2 de abril, a Marcha da Família com Deus pela Liberdade mobilizou cerca de 500 mil em São Paulo. A multidão caminhou cantando e rezando, da Praça da República à Catedral da Sé, onde a manifestação terminou com a recitação do terço. Foi um ato organizado com o apoio do cardeal-arcebispo do Rio, d. Jaime de Barros Câmara, sem a aprovação do arcebispo local, o cardeal Motta. As marchas de abril, em ação de graças pelo sucesso do movimento militar, foram apoiadas também pelos arcebispos de outras capitais como d. Vicente Scherer em Porto Alegre e d. João de Resende Costa, em Belo Horizonte. Houve bispos, porém, como d. José Pedro Costa, de Caiteté (BA), que não participaram das marchas, embora tivessem apoiado antes o golpe contra a ameaça comunista.
O cardeal d. Jaime Câmara, que havia renunciado à presidência da CNBB em novembro de 1963, era um dos principais críticos do governo Goulart, que ele acreditava estar ligado aos comunistas de Luiz Carlos Prestes. O cardeal despejou a sede da CNBB do Palácio São Joaquim, onde morava. Mandou retirar dali também o Movimento de Educação de Base (MEB), depois de a polícia do governador da Guanabara, Carlos Lacerda, ter apreendido cinco mil cartilhas consideradas subversivas no local. Cortou as relações com d. Helder Câmara, seu bispo auxiliar, e pediu a remoção dele para outra diocese.
Mais ocupado com o Concílio Vaticano II, que realizava sua terceira sessão em Roma, d. Hélder deixou o Rio de lado, a conselho do núncio apostólico, d. Armando Lombardi, até ser nomeado arcebispo de Olinda e Recife
A dissidência interna na CNBB refletiu-se na política nacional, quando o episcopado tomou posição em relação ao golpe militar. Amigo pessoal do general Castello Branco, d. Helder foi conversar com ele, acompanhado dos arcebispos d. Eugenio de Araújo Sales, então administrador apostólico de Natal, e de d. Fernando Gomes, arcebispo de Goiânia. O encontro, ainda antes de Castello assumir a Presidência da República, amenizou o clima para o trabalho inicial de d. Hélder em Recife Participou da conversa também o general Justino Alves Bastos, comandante do IV Exército, no Nordeste.
Magoado com a realização da Marcha da Família, à sua revelia, no dia 2 de abril em São Paulo, o cardeal Motta transferiu-se para Aparecida, de cuja diocese era administrador apostólico. Deixou depois a presidência da CNBB e não voltou a Roma para as sessões seguintes do Concílio. Mineiro de Bom Jesus do Amparo, na região de Itabira, o cardeal era amigo do ex-presidente Juscelino Kubitschek e, a pedido dele, celebrou a missa de inauguração de Brasília, em 1960. Antes de abdicar à presidência da CNBB, d. Motta convocou uma reunião da Comissão Central da entidade, que em 29 de maio aprovou uma declaração, divulgada em 2 de junho, sobre a posição da Igreja em relação ao regime militar.
Nesse documento, os bispos aceitam e até justificam a deposição de Goulart, dão um crédito de confiança ao presidente Castello Branco e, por último, denunciam "acusação injuriosa" que estava sendo feita pelos militares contra membros da Igreja. Principais trechos da declaração:
-- "A Revolução. segundo afirmam seus dirigentes mais qualificados, teve a intenção de arrancar o País ao comunismo, e de fazer valer a justiças, o direito e o bom senso. Não há dúvida de que a ação militar deve consolidar a vitória, mediante o expurgo das causas da desordem. Entretanto, o critério da correção, os métodos a serem empregados na busca e no trato dos culpados, as medidas saneadoras e as penalidades não são atribuições da força, como tal, mas de outros valores, sem os quais a força não passaria de arbitrariedade , de violência de tirania. Que os acusados tenham o direito de defesa e não se transformem em objeto de ódio ou de vindita."
-- "Mercê de Deus, muito nos tem tranquilizado a palavra oficial, quer a do Comando Revolucionário, logo após a vitória, quer a do Senhor Presaidente da República, desde que, eleito pelo Congresso Nacional , assumiu toda a responsabilidade de Supremo Magistrado. Contudo, ao reconhecer as inevitáveis dificuldades do momento e as melhores intenções do governo, cumpre-nos declarar que não podemos concordar com a atitude de certos elementoss, que têm promovido mesquinhas hostilidades à Igrejas, na pessoa de bispos, sacerdotes, militantes leigos e fiéis."
-- "Reconhecemos e lamentamos que, até mesmo em movimentos de orientação católica, tenha havido facilidades e abusos por parte de um ou outro elemento que burlou nossa vigilância, ou de outros que foram vítimas do seu próprio idealismo, da falta de malícia ou de inadequada apreciação dos fatos..."
-- "Por outro lado, não aceitamos, nem jamais poderemos aceitar, a acusação injuriosa, generalizada ou gratuita, vela ou explícita, de que bispos, sacerdotes e fiéis, ou organizações, como, por exemplo, a AçãoCatólica ou o Movimento de Educação de Base (MEB), sejam comunistas ou comunizantes. Isto se deve, às vezes, à própria tática comunista, outras vezes a certos elementos inconformados com a atitude aberta e corajosa de verdadeiros apóstolos da Igreja, do clero e do laicato, que pregam a são doutrina, seja contra o comunismo, seja contra gritantes injustiças sociais e focos de corrupção e de degradação dos valores morais..."
O texto foi assinado por 23 integrantes da Comissão Central da CNBB, entre os quais os cardeais Motta e Jaime Câmara, d. Eugenio Sales, ainda administrador apostólico de Natal e d. Hélder Câmara. Parecia um bom começo para as relações da Igreja com o regime militar, que os bispos reconheciam como Revolução, mas esse clima de relativo bom entendimento não se manteve por muito tempo. A partir do Ato Institucional nº 5 (AI-5), de 13 de dezembro de 1968, a situação se deteriorou. Entre múltiplos incidentes, destacaram-se alguns bispos na divulgação de denúncias e acusações contra o regime. Entre eles, o cardeal-arcebispo de São Paulo, d. Paulo Evaristo Arns, o arcebispo de Olinda e Recife, d. Hélder Câmara, o bispo de Volta Redonda, d. Valdir Calheiros, e o bispo de Bauru, d. Cândido Padin, autor de um contundente documentosobre a Lei de Segurança Nacional.
A Igreja transformou-se em defensora dos direitos humanos, na luta contra a arbitrariedade, que se traduziu em censura à imprensas, prisões, torturas e mortes. Durante o governo do general Ernesto Geisel, com a mediação do chefe da Casa Civil, Golbery do Couto e Silva, os militares tiveram uma série de encontros secretos com bispos, entre os quais cardeais Arns e Eugenio Sales, então já arcebispo do Rio, em busca de um entendimento. As tensões, porém, perduraram até o fim da ditadura.

Gerador doado por Kennedy nunca foi usado

28 de março de 2014 | 16h 29

Leonencio Nossa ENVIADO ESPECIAL / VITÓRIA DE SANTO ANTÃO - 1964; ditadura militar; jango; castelo branco; democracia; goulart
A ditadura já era ditadura no final da tarde do 1o de abril de 1964, quando o menino Zito, de 8 anos, viu a tropa do Exército cercar as casas da sua família e dos vizinhos no Engenho Galileia, em Vitória de Santo Antão, na Zona da Mata pernambucana.
Leonencio Nossa/Estadão - Zito com o gerador
Zito com o gerador
Leonencio Nossa/Estadão
O lugar era o berço das Ligas Camponesas, um movimento de trabalhadores que se alastrava por 13 Estados. "Entraram três caminhões de homens com metralhadoras nas mãos", lembra José Joaquim da Silva, o Zito, hoje com 58 anos, enquanto mostra um croqui obtido no Departamento de Ordem Política e Social (Dops) da operação militar. No mapa que lembra um desenho de criança, o lugar está tomado de soldados e árvores.
Cinquenta anos depois, Zito escreve livros de cordel sobre a ocupação militar e a resistência da comunidade. Hoje, uma centena de famílias vive no engenho. Ele mostra ao Estado um antigo gerador de energia, símbolo da importância do lugar nas vésperas do golpe militar. O motor foi um presente do então promotor de Massachusetts Edward Kennedy, que visitou o engenho em julho de 1961 a pedido do irmão, o presidente John Kennedy. Ted, o caçula do clã Kennedy, fez perguntas e ouviu relatos para elaborar um dossiê sobre as Ligas.

Com a Revolução Cubana, a zona dos canaviais passou a ser uma preocupação dos Estados Unidos. O movimento camponês daquele começo dos 1960, que tinha por líder o advogado e depois deputado federal Francisco Julião, logo foi chamado pela imprensa de Ligas Camponesas, mesmo nome de um que existiu na década de 1940 organizado pelo PCB.
Quando Ted Kennedy chegou ao Galileia, Julião e moradores do engenho já tinham feito viagens a Havana, para encontros com Fidel Castro. Zito conta que o motor de energia nunca funcionou, porque o "pessoal" não tinha dinheiro para fazer as ligações até as casas.
Horas após o golpe, soldados entraram nos casebres de sapé do Galileia e reviraram colchões, camas e baús, em meio ao choro de mulheres e crianças. Os homens estavam na mata em volta do engenho. Para lá foram alguns soldados, com cães farejadores. Os soldados arrastaram Zito para apontar o esconderijo dos adultos. O velho José Daniel, um dos líderes da comunidade, não aguentou o esconderijo e voltou. Ele apanhou na frente das crianças. "Diziam que os galileus, como chamavam os moradores, tinham enterrado armas de Cuba", relata Zito. "De dez em dez metros tinha um militar cavando. Mas só acharam foices e enxadas."
João Virgínio, tio de Zito, ficou escondido no mato até 15 de abril. Passou seis anos na prisão. O motorista Rosário também se rendeu. Ele e outros eram personagens de Cabra Marcado para Morrer, documentário de Eduardo Coutinho. A equipe do cineasta estava no Galileia no momento do cerco. "O Galileia tem um simbolismo grande, pois ali começou uma nova concepção de luta camponesa que era diferente da do PCB", observa Gilney Viana, que coordena um grupo de memória na Secretaria de Direitos Humanos. "Julião iniciava um movimento de massa."
"Nos canaviais era tempo da Idade Média", avalia o antropólogo Anacleto Julião, filho do líder das Ligas. "As leis trabalhistas valiam para a cidade e não para o campo."


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