domingo, 30 de março de 2014

‘Existe um pessimismo muito acima do razoável’, diz Delfim Netto


Na avaliação do economista, Brasil não está tão fora do eixo como alguns fazem crer

29 de março de 2014 | 14h 02

Alexa Salomão e Ricardo Grinbaum, de O Estado de S. Paulo
Às vésperas do aniversário de 50 anos do golpe, o economista Delfim Netto, ex-ministro da Fazenda durante o regime militar, nunca esteve tão alinhado com o PT. Deu um voto de confiança ao atual governo porque, segundo ele, "reconheceu os problemas e tomou providências" para corrigi-los. Quando fala da campanha à presidência, declara cultivar um "viés": "Tenho admiração pela Dilma." Ele também considerou precipitado o rebaixamento da nota do Brasil, na semana passada, pela agência de risco Standard & Poor's (S &P). Mas nem por isso, não deixa de fazer críticas à atual política econômica. "A política de combate a inflação foi muito ruim", diz em entrevista que concedeu aoEstado. Veja os principais trechos abaixo.
O rebaixamento da nota do Brasil pela Standard & Poor's seria o início do que o senhor chamou há alguns meses de a "tempestade perfeita"?
Quando eu me referi a tempestade perfeita no fim do ano passado, falava da coincidência do rebaixamento - que, naquele momento, era uma novidade - e a elevação da taxa de juros do Fed (Federal Reserve, banco central dos EUA). Naquele instante, quando o mercado ainda não tinha prefixado o rebaixamento, a coincidência dos dois teria sido uma tragédia. O rebaixamento agora é o que eu chamaria de tragédia anunciada. Você anunciou, o mercado absorveu, de forma que quando ele saiu já não teve nenhum efeito - pelo contrário. O câmbio se valorizou. Os juros subiram um pouquinho. A bolsa se valorizou. A própria redução do rating (nota de risco) das empresas não teve, nem terá, nenhum efeito porque tudo isso já estava antecipado pelo mercado. E a elevação dos juros americanos, talvez, vá ficar para o primeiro semestre de 2015. De forma que aquele fenômeno não aconteceu e não há razão para acontecer. Mas eu acho que a S&P não deu o voto de confiança. A priori, disse: eu conheço o teu passado, portanto eu determino o teu futuro - o que é uma grande idiotice porque, seguramente, o futuro não está contigo no passado. Nós aqui no Brasil colaboramos com isso. A receptividade à visita da S&P dava a impressão de que o papa estava chegando. O governo se mobilizou. Estenderam o tapete vermelho. Me disseram que cederam até automóveis para eles. Essa gente está em busca de credibilidade e, na minha opinião, com essa medida, conseguiu os seus 15 segundos de glória.
Qual a perspectiva daqui para frente após o rebaixamento?
Primeiro, se você ler com cuidado o relatório do S&P, verá que ele traz todos os problemas que já são apontados por todos nós aqui dentro. E pior - são exatamente os problemas que o governo já reconheceu que existem e em relação aos quais está tomando algumas providências. Peguemos o problema fiscal. A dívida bruta do Brasil não é um exagero. Está em 60%, um pouco menos até, nos últimos 10 anos. Os superávits primários dos últimos 10 anos têm sido suficientes para manter a dívida em torno de 57%. Ela é um pouco elevada quando você considera que o Brasil é um país emergente. Talvez fosse melhor ter 40%. Por que melhor? Porque se você tiver necessidade de fazer uma política anticíclica, com 40% pode chegar a 60% sem causar grandes perturbações. Mas com 60%, não pode chegar a 80% sem grandes perturbações. O governo entendeu isso. Tanto que não se pode considerar como teatro ele estabelecer 1,9% (de meta para o superávit primário deste ano). Na minha opinião, esse 1,9% se transformou em um compromisso sério para o governo. O segundo ponto que a S&P destacou foi a inflação. A inflação não está fora de controle. Não está ameaçando voltar para dois dígitos. Mas a política de combate a inflação foi muito ruim. Primeiro, usaram o câmbio. Isso é um erro. Desde 1984, o Brasil não resiste a essa tentação. Cada vez que há uma melhoria nas relações de troca, usam o câmbio para combater a inflação - e foi o que aconteceu agora. Com isso, você destruiu a indústria nacional - essa é a verdade. Não temos que ficar discutindo se câmbio é ou não importante. É evidente que o câmbio é importante. Essa discussão é completamente fora de propósito. Não é só câmbio, obviamente. Também quando se faz isenções para combater a inflação, você não combate a inflação. Você está empurrando a inflação com a barriga. O velho Gudin (economista Eugênio Gudin Filho) já dizia que uma pequena inflação é como uma pequena gravidez - inevitavelmente é posta para fora. Também não existe nenhuma dúvida do que o País precisa voltar a crescer. Precisa de aumento de produtividade. Esgotou-se a possibilidade de crescimento pela simples expansão da mão de obra. O que significa que é preciso aumentar a quantidade de capital por unidade de trabalho - e é isso que o governo está fazendo. O governo levou três anos para aprender como fazer concessões, como atrair o setor privado, mas aprendeu. A prova disso é o sucesso dos leilões. Leilão é coisa para profissionais e o governo não acreditava nisso. Tinha muito amador nesse negócio. Concessão pública é injeção na veia do investimento. Eleva a produtividade do sistema brutalmente. Basta ver o seguinte: para levar uma tonelada da soja do Mato Grosso para Paranaguá você gasta 400 quilos de soja. Sai de lá com mil quilos e chega com 600. Quando essas concessões estiverem prontas, não vão ser gastos 100 quilos - será como ganhar 300 quilos de soja em produtividade.
Pensando junto com o sr.: o governo empurrou o reajuste da energia elétrica para 2015. Isso foi um sinal que o aprendizado ainda não foi concluído?
Você está apontando um fato que na minha opinião foi decisivo para antecipar a decisão da S&P. O governo não demonstrou nenhuma segurança no que vai fazer. Na minha opinião, deu um sinal ruim. Esse problema de energia elétrica é extremamente técnico. Tem opiniões de todas as formas. O governo diz que não tem nenhum problema. Profissionais do setor privado dizem que têm todos os problemas. Vamos ficar no meio. Realmente há um estresse no setor. Estão usando as térmicas no limite. Qual é a forma mais fácil de reduzir o estresse? Provavelmente não é tentando elevar a oferta em três meses - é reduzindo a demanda. Ora, mas qual é o único instrumento para reduzir demanda? O preço. Mas o governo se recusa a dar uma oportunidade para que o sistema de preços funcione. Precisa aumentar, mesmo, a tarifa. Logo depois que S&P saiu do Brasil, houve essa discussão no governo.
A essa altura, no último ano de mandato, já dá para ter uma ideia do governo Dilma. Como esse período, na sua opinião, vai ser lembrado?
Toda intervenção do governo foi feita na direção certa, mas sempre de forma muito complicada. Portos. É óbvio que estava na direção correta. Mas é óbvio também que se tivesse ouvido o setor privado poderia ter feito tudo de forma mais eficiente e mais rápida. Os leilões hoje são muito profissionais. Mas o governo demorou para entender. Em um bom leilão, você convoca os competidores e eles fixam a taxa de retorno. Ou você fixa a taxa de retorno e o leilão estabelece a porcaria que eu posso oferecer para essa taxa de retorno. O que não é possível é controlar os dois - a não ser por uma divina coincidência. Como Deus não se envolve nisso, é difícil de acontecer. Mas isso criou uma enorme desconfiança entre o setor privado e o governo.
Ainda sobre o governo Dilma, qual a sua opinião sobre o que chama de nova matriz econômica?
Eu acho isso um jogo de palavras. É uma conversa mole para boi dormir, do mesmo jeito que é o tal tripé. São coisas óbvias. Quem é que propõe alguma coisa fora disso? Todo mundo sabe: é preciso uma política fiscal razoável. Ou seja: não posso ter dívida pública crescendo permanentemente, não posso ter déficits permanentemente porque isso acaba tendo consequências, não posso deixar de prestar atenção para esse equilíbrio. Eu preciso de relativa estabilidade de preços - coisa que não consigo obter se não tiver uma política fiscal adequada. Portanto, a política econômica envolve uma coordenação entre política fiscal, monetária e cambial. O que me parece é que existe um pessimismo muito superior ao que seria razoável. Há uma diferença inegável entre o setor privado empresarial e o governo. É um absurdo acreditar que a Dilma queira chegar ao socialismo. Seria a única vez na história que fariam socialismo destruindo empresa estatal. O mesmo vale para o governo achar que o setor empresarial só olha para o seu umbigo. É uma meia verdade.
O sr. falou bastante da presidente Dilma, mas como o sr. vê Aécio Neves e Eduardo Campos?
São pessoas competentes e acho que têm lá as suas oportunidades, mas até agora não vi nada, vi um pouco mais do mesmo. Seguramente, dariam um pouco mais de espaço para o mercado funcionar. Mas deixa eu dizer uma coisa: eu tenho uma inclinação, um viés. Tenho admiração pela Dilma porque ela é absolutamente correta.
Como o senhor está vendo o cenário eleitoral?
É difícil dizer, mas eu acho que ainda hoje ela leva uma vantagem. Isso pode mudar. Falar hoje que não vai ter segundo turno é palpite. A única coisa que eu digo é o seguinte: o andar de baixo está muito mais satisfeito do que parece. Não adianta se apropriar do andar de cima. É precisa se apropriar do andar de baixo se quisermos manter o processo civilizatório do Brasil.
Segunda-feira são 50 anos do golpe. O sr. foi influente na economia daquele período. Olhando para trás, quais foram os erros, os acertos, o que faria diferente se tivesse a oportunidade?
Deixa eu explicar: você só faz em cada momento o que tem na cabeça e conhece, em certas condições objetivas. Uma decisão só vai se mostrar certa ou errada depois, pela qualidade do seu conhecimento e pelo ambiente em que você está. Eu fico muito entusiasmado quando vejo um sujeito se tornar um grande sábio quando o futuro já virou passado - daí emerge a sapiência. Quando o futuro ainda é futuro, isso nunca acontece. Por isso, eu digo: eu não me arrependo de nada. O que fiz foi baseado naquilo que eu achava que sabia, naquele momento e nas condições que me circundavam. É o velho José Ortega y Gasset (filósofo e ensaísta espanhol): "Yo soy yo y mi circunstância". E qual era a teoria econômica nos anos 70? O intervencionismo. O controle de preço. Nós aprendemos, aprendemos apanhando, que esse não era um caminho adequado. Na minha opinião essa ideia é uma coisa preposta - se eu soubesse, teria feito diferente, mas aí seria com c cedilha.

Nenhum comentário: