quarta-feira, 19 de março de 2014

A nova geopolítica da energia


17 de março de 2014 | 2h 06

José Goldemberg* - O Estado de S.Paulo
Petróleo tem, na vida moderna, o papel que o sangue tem nos organismos humanos. Sem ele ainda estaríamos - como na Idade Média - nos deslocando em carroças e no lombo de cavalos, a não ser pelos trens desenvolvidos no século 19, usando carvão e lenha como combustível. A produção de automóveis e caminhões, que começou no início do século passado, mudou radicalmente essa situação.
Petróleo é um combustível líquido relativamente fácil de retirar de depósitos que se encontram abaixo do solo e fácil de transportar em grandes navios. Seu custo real se manteve abaixo de US$ 10 por barril durante mais de cem anos, desde a sua descoberta até 1973. Esse custo só aumentou - atingindo hoje cerca de US$ 100 por barril - por causa da atuação política dos grandes produtores concentrados no Oriente Médio, responsáveis por cerca da metade da produção mundial. Os consumidores são todos os demais países do mundo, obrigados a importá-lo. Os principais desses importadores são os Estados Unidos, o Japão, a Índia e os países da Europa.
Essa é a razão por que o problema de suprimento de petróleo é um problema de geopolítica - isto é, uma combinação de geografia e política. De modo geral, ele não é consumido nos países que o produzem.
Metade da produção mundial de petróleo é objeto de trocas comerciais. Quando se trata de alimentos, somente 10% deles são objeto de trocas comerciais. O restante é produzido nos próprios países que os consomem.
A riqueza de muitas nações foi construída com base na produção de petróleo. Parece, portanto, sensato tentar produzi-lo para o consumo interno e exportar o excedente. Esse é o raciocínio das grandes empresas petrolíferas, que acreditam que o consumo vai continuar a crescer 2% ao ano, como tem ocorrido nas últimas décadas. Se isso se confirmar, seu consumo aumentará 50% até 2030.
Tal linha de pensamento, todavia, está sendo vivamente contestada por inúmeros especialistas, uma vez que as reservas conhecidas desse combustível fóssil - chamadas de "petróleo convencional" - vêm sendo exploradas há 30, 40 ou 50 anos e praticamente todas elas - com exceção das dos países do Oriente Médio - já atingiram o máximo de produção, que está declinando, como está ocorrendo aqui, na Bacia de Campos.
Isso não seria um problema se novas descobertas estivessem sendo feitas, mas isso não tem ocorrido. As novas fontes de produção, como as do pré-sal - chamadas de "reservas não convencionais" -, necessitam de métodos especiais para exploração, que tornam o petróleo produzido mais caro. Além disso, mesmo essas reservas, por maiores que sejam, não mudam o quadro de exaustão geral das reservas de petróleo no mundo. As expectativas otimistas da Petrobrás são de que os campos do pré-sal produzam cerca de 5 milhões de barris por dia em 2030, o que não mudaria muito o quadro mundial, em que mais de 80 milhões são consumidos por dia.
Para ser viável a exploração das "reservas não convencionais" é essencial que o preço do petróleo continue elevado, acima de US$ 100 por barril, o que estimula mais exploração. Por outro lado, torna as alternativas ao petróleo mais atraentes.
Quais são essas alternativas e quais as suas perspectivas?
A resposta está sendo dada pelo que se vê hoje nos Estados Unidos, os maiores consumidores de petróleo do mundo, que há dez anos importavam 12 milhões de barris de petróleo por dia e hoje importam pouco mais de 9 milhões.
Há três razões para essa redução das importações.
Em primeiro lugar, a fabricação de automóveis - e caminhões - mais eficientes. Desde 1975 os Estados Unidos fixaram um desempenho mínimo por quilometragem dos automóveis: 10,6 quilômetros por litro, em média. Em 2009 o governo americano elevou esse valor para 16,6 quilômetros por litro e para 2025 a meta é de 23,1 quilômetros por litro. Como a frota de automóveis nos Estados Unidos não tem aumentado, o consumo total de derivados de petróleo está caindo.
Em segundo lugar, está aumentando muito naquele país a produção de gás de xisto, o qual vem sendo utilizado como combustível em automóveis e caminhões. Isso sem falar em carros elétricos e híbridos, que consomem menos combustível.
Em terceiro lugar, vem a produção de etanol de cana-de-açúcar no Brasil - ou de milho nos Estados Unidos. A produção dos dois países já substituiu 3% do petróleo usado para transporte no mundo e existe a possibilidade concreta de aumentar essa contribuição para 10%. Não só a produção brasileira de etanol poderia aumentar, como também a sua experiência poderia ser adotada em muitos outros países produtores de açúcar de cana, principalmente na África.
Do ponto de vista geopolítico, a redução de importações de petróleo pelos Estados Unidos, isto é, a autossuficiência que esse país procura desde 1975, vai tornar esse combustível mais abundante para outros países e, em consequência, seu preço cairá, o que tornaria inviável a produção de "petróleo não convencional", incluído o do pré-sal.
O fascinante no jogo da geopolítica do petróleo é que ela parece desenvolver-se em câmera lenta, com súbitos espasmos que destroem governos e até nações. A revolução iraniana, com a queda do xá da Pérsia e a ascensão dos aiatolás, teve origem na expropriação das empresas petrolíferas estrangeiras na década de 1970. A invasão do Iraque teve muito mais que ver com petróleo do que com terrorismo.
No momento, há uma lenta evolução das alternativas ao petróleo - gás de xisto, etanol, carros elétricos e aumentos da eficiência dos automóveis -, que coexistem com os esforços tradicionais das empresas do setor (inclusive a Petrobrás) para produzir mais óleo. O que a prudência recomenda, portanto, é que não se coloquem todas as fichas numa única fonte - petróleo -, como parece ser o caso do governo brasileiro.
*José Goldemberg é professor emérito da Universidade de São Paulo (USP), foi secretário de Ciência e Tecnologia da Presidência da República. 

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