O mar rugiu nesta mesma página 8, na semana passada. Prostituto da vida, como salientou o Christian Carvalho Cruz, o Atlântico se ressentiu de não ter engolido um surfista americano lá na praia portuguesa de Nazaré. Pois nesse ritmo de mar que vai e volta, ei-lo aqui arrematando de novo uma história que, como disseram os maledicentes, também "parece coisa de lusitano": passear de ônibus numa praia. Seis rio-clarenses afundaram o busão da família na Jureia e perderam R$ 50 mil para as ondas. A notícia vazou pelo litoral e pelo interior como As Férias Frustradas do Ano, e quem pôde se escondeu na ignorância dos fatos. Os Herminis juram de pé firme que foi tudo na inocência. A veire, então.
Em junho, Marcia e Bardô Hermini sentaram com as gêmeas para pensar numa fuga de Rio Claro. Fuga rápida, com volta marcada, bem diferente da primeira, há duas décadas, quando Badô teve um infarto aos 33 anos. O golpe no miocárdio o levou a reformar a vida maluca e um ônibus velho, no qual enfiou a mulher e as crianças com a ideia de estabelecer uma rotina mansa em Porto Seguro. Ali o técnico em eletroeletrônica vendeu o transporte, já um trambolho, e serviu no que sabia, em oficinas mecânicas e cozinhas de hotel, porque também é chegado num fogão e num tempero caseiro.
Mas as gêmeas obviamente cresceram, e sem escola não dava. Voltaram todos para as bandas de São Paulo, achando que a estância paulista de Analândia merecia um investimento. Abriram pizzaria, restaurante, trabalharam e moraram num camping. "Mas a vida muda por motivos vários, quebra, começa de novo, e vai, e vai", diz Badô, num tom lamentoso. O fato é que ele retornou à terra natal para trabalhar como chef e organizador de festas, muitas festas, já com o próprio bufê. Então num susto, "de onde era aquele homem, meu Deus?", viu um senhor preparando um porco no rolete. Pimba na gorduchinha! O bicho todo pururucado, aquela homarada em volta tomando cerveja, o mulherio pedindo a carne mais branquinha, o povo do sítio querendo a cabeça para comer as bochechas em casa...
Badô olhou para a tradição - o porco, melhor dizendo, a leitoa no rolete é famosa em Toledo, no Paraná - e resolveu personalizar. Bolou uma máquina que desmonta em três partes, mas que sustenta bem um suíno de 60 quilos, e há um ano e meio comprou um Mercedes Benz Incasel 1980 de uma banda sertaneja - a Diligence Company - para tornar o porco itinerante. Acoplou cinco jogos de bancos, adaptou uma cozinha com pia e botijão, parafusou dois freezers de 480 litros cada no fundo do coletivo e estampou um adesivo na lateral: B&M. "Já perguntaram se é Bruno & Marrone ou Bob & Marley", diz Graziela, uma das filhas de Badô e Marcia.
O carro-chefe da Nave do Porco era a leitoa no rolete, que eles compram de um fornecedor totalmente desobstruída das vísceras, sem gordura quase, só uma pancettinha... Mas o Busão também carregava costelão bovino, frango, peixe, bebidas e acompanhamentos, dependendo do pedido. E incluía, caso fosse o desejo, o tal carneiro à paraguaia, aberto pelo dorso, "que a gente chama de chupa-cabra, mesmo não sabendo se chupa-cabra existe", confessa Gabriela. A Nave viajava, mas para perto. O mais longe que tinha chegado era Araçatuba. Como o fim de ano tinha sido bom, decidiram que era hora de alçar voo alhures e descansar um pouco. Se fossem de busa, pra dormir tinham onde, pra fazer comida tinham onde. Só precisavam de água, luz e banheiro.
Precisavam de um camping, enfim. Alguém comentou sobre a Jureia. Entraram no Google e lá estava o Camping do Milico, no costão, a 18 km da Barra do Ribeira, com acesso pela areia. Eles aceitavam ônibus? Não sabiam. Alguém ligou pra lá? Ninguém. Mas, se não desse certo, tudo certo. Na perspectiva dos Herminis, eles dariam meia volta e iriam para Ilha Comprida. Sairiam de férias assim meio na louca, como tantos, mas chacoalhando num ônibus, como poucos. "Vamo? Vamo!"
Na segunda retrasada, a Big Monday deles, a Nave estacionou às 2 da manhã à beira da balsa que leva para Barra do Ribeira, bairro de Iguape. Levava dentro Badô, Marcia, a filha Graziela, Luciano (o namorado dela), Marcelo e Miller (chegados da casa). De imediato, ouviram um não. Ônibus não pega a balsa para o outro lado, avisou um funcionário do ferry. Badô mostrou uma placa com preços da Dersa proibindo apenas ônibus e caminhão trucados. O cara respondeu que era uma placa padrão, nada a ver com o lugar. Badô diz que concordou: "Ô, parceiro, trabalhei com isso, sei como é: se entra na frente e baixa a balsa, e se a traseira encosta do lado e a roda fica boba no ar, acabou. Só o trator pode tirar. Valeu, obrigado". Trancaram o ônibus e passaram a pé.
Tomaram uma cerveja, conheceram o lugar e tal. Voltaram pela balsa às 3h15 e foram dormir, com o plano de zarpar no dia seguinte para outra ilha, a Comprida. Acontece que o Miller, quando levantou, foi fumar um cigarro lá fora e deu de cara com outro funcionário da balsa: "Pode vir, pode vir, que eu deixo passar". Badô coçou os olhos, penteou o bigode com os dedos, sentou no volante, funcionou o ônibus e foi pra vila. Na praça, perguntou do Camping do Milico. "O senhor vira li, sai na praia e vai andando pela areia." Na praia? "Sim, na praia, é a Avenida Beira-Mar, aqui não tem estrada lateral, paralela."
Logo o Busão cruzou com carro indo e vindo, moto indo e vindo, tudo ali. Badô achou que procedia, parecia asfalto. "Também não sou um tonto, minha família inteira dentro do ônibus, não vou entrando na praia de trouxa", frisou. Eram 9h30. A maré baixa permitia uns 100 metros entre a mata e a água. Badô rodou uns 8 km, mas chegou num ponto em que, de repente, a coisa melou. A Nave do Porco assentou nas quatro de uma vez, não andou nem pra frente nem pra trás. Atolou implacavelmente. Empacou.
Logo chegou um guarda-parque perguntando se Badô tinha visto um sinal dele. "Eu vi a caminhonete com o braço pra fora, até tirei o pé do acelerador pra voltar, mas ele estava no meu retrovisor há uns 50 metros." Adenir e Redivaldo, os guarda-parques, falam por si: "A praia mudou muito de uns cinco anos pra cá, virou uma praia de saibro a partir de um certo trecho, um areião", diz Adenir, dez anos de Jureia. Se um dia houve uma placa alertando pra isso, ele não sabe se a água levou ou se alguém tirou. Mas a prefeitura não se predispôs a colocar outra. "Eles vieram com a cara e a coragem, ninguém mais praticamente vai pro Camping do Milico, estavam na inocência mesmo." Rivaldo foi mais sucinto: "Deu dó".
Sem sinal de celular, a família indicou o Miller para acompanhar o guarda-parque até a base, onde ligariam para o Índio, mecânico e desentalador do lugar. "O Índio chegou lá pela 1 e meia, a maré já subindo, e com uma Hilux", ri Badô, aquele riso tenso. "Depois veio com um guinchinho velho, caindo aos pedaços, desmanchando, e todo mundo falando que tinha de ser um trator." Puxa daqui, cava de lá, a Nave só fazia chafurdar. Mas o circo de palpites e pitacos que se armou em volta se desfez com a noite. E os seis viraram uma meia dúzia de náufragos, com os colchões e um punhado de roupa lá em cima, no mato, à espera do dia seguinte.
Até lá haveria uma nuvem de borrachudos e pernilongos - e, ironia de Poseidon, uma lua cheia que prateou o ônibus e fez subir a maré num tanto que girou a Nave, deixando-a de focinho pro mar. Badô saiu do mato e grudou no volante. O motor, que ficou ligado o dia inteiro, não podia morrer, para não entrar água pelo escapamento. Ao mero sinal vermelho no painel, ele acelerava. Rezou, implorou a Deus, fez promessa pra Nossa Senhora, apelou para o capeta. "Não podia perder a única coisa que tinha pra trabalhar", justifica. "Mas a água passava por cima do ônibus e entrava por baixo, batia aqui no meu peito, eu me senti dentro de um aquário. Não existe nada mais forte que o mar."
Num certo momento arrearam, ele e seu ganha-pão. Badô virou a chave, foi pro fundo do ônibus, pulou pela janela e sentou lá em cima, com a família, vendo o areião virar praia de tombo e o ônibus um berço de ninar, gingando de um lado pro outro. Às 2 e meia da manhã a água os alcançaria novamente, molhando os colchões e as roupas, até então queimadas pelo dia. Na terça-feira, a pele é que iria esturricar.
Excursão de turista? Nenê Agrícola tem esse nome porque o pai era Antônio Agrícola. E o pai era Antônio Agrícola porque a mãe, muito fervorosa, viu no calendário que no dia 4/11 era dia de Santo Agrícola, que protegia a lavoura. Funcionário do Instituto de Terras, candidato a vereador não eleito, ele tem uma casa em Iguape e outra no Prelado, vila a uns 8 km de onde o ônibus encalhou. Na segunda-feira, quando avisaram do acontecido, pensou que era excursão de turista ou de aluno. Mas no dia seguinte contaram outra história pra ele: "Nenê, é uma família, seis pessoas, tudo branquelo, os caras estão cozinhando no sol".
O servidor público mandou rebocar os Herminis e seus agregados, mas já era tarde para alguns. Graziela e a mãe tinham insolação, Márcia também inchou com a alergia a picadas, e os pés e o couro cabeludo de Miller ferviam com queimaduras de terceiro grau. De nada adiantou a tendinha branca que armaram na arquibancada do desespero. O protetor solar tinha ido para o beleléu e eles já começavam a depenar o ônibus, tirando o freezer, a pia, os mantimentos, o que deu.
"Não entendo por que ninguém falou em estivar o ônibus", pergunta-se Nenê. "Podiam ter jogado uns galhos embaixo, o guarda-parque deveria saber disso, teriam tirado ele sem grandes danos. Cavaram e ajudaram o mar." Ele acampava muito na Praia do Rio Verde, depois do maciço, onde tem o areião. No seu entender, a água foi comendo, comendo, comendo e depositou tudo do lado de cá, onde a nave se atascou. "Virou um saibo grosso, uma areia movediça, onde se atola até o tornozelo só de caminhar, e ninguém pra avisar isso."
Badô, que já foi Vadô por ser José Salvador, só foi ter com Nenê de madrugada. Passou a terça às voltas com a Patrol e outra máquina que, no jogo de puxa e estica, acabaram quebrando o para-brisa da Nave, deixando-a caolha. Por baixo, os trancos nervosos quebraram o metalon e a ponta de eixo. De tanto subir e descer descalço do ônibus para segurar o volante, o empresário do rolete nem sentiu os cacos de vidro a lhe filetar os pés. Por isso, quando finalmente ouviu a bendita W20 passar pela casa onde dormia, não se pôs atrás. Por isso e por desânimo. Quem viu contou que a carregadeira, vinda de Ilha Comprida, em menos de 1 hora e meia encaixou a pá na traseira da Nave, empurrou pra frente até um ponto de areia dura, amarrou um cabo de aço e saiu arrastando.
A família doou quase todo o recheio da Nave, menos o motor do porco, uma caixa de ferramenta, a barraquinha dobrável e as roupas pessoais. Voltaram de carona para Rio Claro, enquanto o ônibus dorme na oficina do Índio. Agora a dor de cabeça é o que fazer com a Nave, que não tinha seguro por ser de 1980. Badô fala que não tem dinheiro nem para o conserto, muito menos para tirá-la de Iguape. Índio diz que desmontou o motor, montou novamente e o ônibus funcionou. Tem outras coisas pra fazer, mas agora ficou com o pé meio atrás. "Eu vou ligar pra ele e falar assim: 'Badô', o que você quer com esse ônibus? Quer que eu deixe em condições de você levar, recuperar, mandar pro Lata Velha? Importante que você saiba que aqui, pra mim, você deve X e tem que me trazer esse montante. Ou o ônibus é meu e posso falar pro mundo que é meu? Se for, eu quero que você reconheça a firma desse recibo em meu nome e me mande via sedex o recibo."
Badô recebeu o recado, mas mandou avisar que a Nave ainda é dele e ninguém devia tascar nada, pelo menos até passar o carnaval. Águas e porcos vão rolar, e ele ainda tenta digerir mais um ciclo de vida. "Mas não podia ser algo mais light? Tá meio pesado..."
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