O Estado de S.Paulo
LAURA GREENHALGH
Roma tem uma enzima que transforma todo mundo." Há quase um ano, em entrevista ao Aliás, o teólogo brasileiro Leonardo Boff assim se referiu ao ambiente de maquinações da Cúria Romana e, em particular, à guinada de Joseph Ratzinger, seu ex-professor na Universidade de Munique e uma das vozes do Concílio Vaticano II - guinada rumo a um catolicismo ortodoxo, tradicional e dogmático. "Era um professor adorado pelos alunos, mas mudou radicalmente ao assumir a Congregação para a Doutrina da Fé", disse então o entrevistado. Seguramente, nos últimos dias a enzima voltou a rondar os pensamentos desse ex-aluno do mestre alemão, por quem Boff foi punido com o silêncio obsequioso (em razão de divergências teológicas), levando-o a abandonar a ordem franciscana para declarar-se leigo.
Numa semana patrocinada por tantas surpresas vindas de Bento XVI, o papa renunciante, Boff voltou a ser ouvido pelo Aliás. Encontra-se nas opiniões expressas a seguir um desafeto que demonstra grande respeito pelo sujeito de sua contenda. Boff calcula o tamanho e as implicações da renúncia do pontífice. Reconhece-lhe a grandeza do gesto. Fala das pressões a que estaria sendo submetido, da possibilidade de ter sido traído num ambiente infestado de bajuladores e, baseando-se na convivência que ambos tiveram no passado, arrisca-se a dizer que Bento XVI poderá mesmo se recolher a uma vida de silêncio e oração, enquanto espera pelo Juízo. "Esse tipo de postura piedosa tem a ver com o catolicismo bávaro, no qual ele foi formado", acrescenta. Eis como Leonardo Boff analisa a decisão histórica que deve sacudir pilares de uma instituição monolítica, fundada no sagrado, mas respaldada pelo humano:
A pessoa e a função
"A renúncia em si não chegou a causar surpresa porque Bento XVI havia acenado algumas vezes nessa direção. Seu irmão Georg, também padre e mais velho do que ele, disse há poucas semanas, como pude ler num jornal alemão: 'Meu irmão deveria renunciar e viver tranquilo seus últimos tempos'. Esse papa soube distinguir a pessoa da função. Quando se deu conta de que, como pessoa, não poderia mais cumprir adequadamente a função, que é a de dirigir a Igreja, humildemente reconheceu a dura lei da natureza que impõe limites. E renunciou. Não é fácil um ancião adoentado governar uma China inteira de fiéis, algo como 1,2 bilhão de católicos. Louvo seu desprendimento e sua lucidez.
O nível das pressões
"Se Bento XVI estiver convencido de que a linha pastoral e política que vinha imprimindo à Igreja é a correta, seguramente vai influenciar os cardeais, ao menos os que nomeou, para que prossigam no mesmo curso. Mas suspeito que os vários escândalos, particularmente dos pedófilos e do Banco do Vaticano, tenham lhe mostrado que outro caminho para a Igreja talvez possa conter menos riscos e um futuro papa consiga gerenciar melhor as crises. Ele vinha sofrendo muita pressão, imagino até que estava com a cabeça embaralhada nos últimos tempos. Quando cardeal, fez circular um documento com sigilo pontifício determinando o rebaixamento dos envolvidos nos casos de pedofilia, mas proibindo que fossem entregues aos tribunais civis. Mais recentemente, como papa, ao tomar conhecimento de casos envolvendo não só padres, mas bispos e até um cardeal, publicamente pediu desculpas e abriu o caminho para o julgamento deles fora da Igreja. Imagine a raiva que despertou e a oposição que passou a enfrentar... E o que dizer dos documentos sigilosos que desapareceram da sua mesa de trabalho, surrupiados pelo próprio mordomo? Não tenho dúvida de que ele sentiu o golpe da traição. Tudo isso deve tê-lo feito pensar na renúncia.
Próximo ato
"Pode ser, e creio mesmo nisso, que Bento XVI vá se retirar efetivamente e viver como monge, dedicando-se à vida espiritual. Isso tem muito a ver com o catolicismo bávaro no qual ele se formou. Poderá mergulhar num silêncio piedoso, profundo, para viver de oração e esperar pelo Juízo.
Calculando o impacto
"Seu gesto pode abrir uma brecha para mudanças na Cúria Romana. Na verdade, uma brecha que oficialmente já fora apresentada por Paulo VI, com o decreto de 23 de novembro de 1970, Ingravescentem aetatem, pelo qual aposentava todos os cardeais ao atingirem 80 anos, excluindo-os de participar do conclave para a eleição de um novo papa. Paulo VI decretou também que todos os bispos, aos 75 anos, deveriam pedir a renúncia, podendo ou não ser aceita por Roma. Tais mudanças, lá trás, irritaram enormemente os cardeais da Cúria. E mais: o decreto dava a entender que o limite de idade de 80 anos também poderia valer para o papa. Hoje se sabe que Paulo VI queria se retirar. Só não o fez porque foi advertido de que grupos conservadores poderiam não acolher o novo pontífice e continuar obedecendo a ele, mesmo tendo abdicado. Isso dividiria a Igreja, como aconteceu no passado, quando se chegou a ter até três papas que se excomungavam entre si. Não me admiraria se algo parecido acontecesse agora. Mas tudo depende da linha que o novo pontífice tomar. Se for aberto demais, cristãos fundamentalistas e conservadores podem dar obediência ao papa renunciante Bento XVI e negá-la ao outro. Espero que isso não aconteça. Seria uma tragédia ter uma Igreja com duas cabeças.
Mensagem ao clero
"Creio que a referência que ele fez ao Vaticano II, ao falar aos padres essa semana, é um recado para fora, para além da Cúria, que sempre se opôs às resoluções do Concílio. O papa hoje se dá conta de um certo fracasso seu por não ter levado adiante a agenda reformadora do Vaticano II. Mas, por outro lado, tem sido complacente com os lefebvrianos (seguidores do arcebispo francês Marcel Lefebvre) que rejeitam o Concílio in totum. Ao retomar o tema agora, Bento XVI faz um apelo para a reforma da Igreja. Mas não qualquer reforma, somente aquela que se inscreve dentro dos parâmetros do Concílio. Isso é um bom sinal. E uma advertência à Cúria.
Colégio eleitoral
"A Cúria Romana é uma fogueira das vaidades, administrada por todos aqueles celibatários não integrados ao mundo, à realidade. Brigam até pela proximidade física do papa, para ver quem fica mais perto dele, coisas assim. Acho tudo isso um horror. O colégio de cardeais hoje é formado majoritariamente por conservadores e o que se vê, lá dentro, é a ausência de mentes brilhantes e proféticas. Na média, são despreparados e preguiçosos. Talvez votem na linha da continuidade até para não ter o trabalho de enfrentar a mudança. Agora, a Igreja também surpreende. Depois de Pio XII, um papa conservador e controvertido, quem foi eleito? João XXIII, o reformador. Então, tudo é possível. Se de repente resolvem eleger alguém que venha de uma região mais periférica, e se esse novo pontífice chegar com ideias diferentes, ele poderá ser o agente de mudanças numa estrutura que depende sempre de uma cabeça absolutista. Seja como for, o que se precisa hoje é de um homem que una a Igreja.
Diálogo entre religiões
"Se o sucessor seguir a linha de Bento XVI, o diálogo será difícil. Porque o papa Ratzinger orientou-se pelos dogmas e pela reafirmação da exclusividade da Igreja de Roma como suprema autoridade sobre todas as demais. Enquanto não se questionar o centralismo do sistema romano, monárquico e absolutista, não haverá união das Igrejas e o diálogo se transformará numa retórica de civilidade. Em relação às religiões, Bento XVI fez uma leitura medieval, segundo a qual fora da Igreja Católica não há salvação. Isso está no documento Dominus Jesus, de 2000, quando ainda era cardeal. Como papa, manteve-se coerente. Não significou que tenha perdido a elegância ao visitar mesquitas, sinagogas e outros templos. Mas as categorias teológicas que maneja o impedem de ver densidade divina em tais manifestações. Para ele, essas categorias não passam de esforços humanos que não atingem a meta só alcançada por mediação da Igreja Católica. Uma coisa podemos dizer: Jesus jamais faria isso. E nem São Pedro, que acolheu o oficial romano mesmo antes que fosse batizado, como relatado nos Atos dos Apóstolos."
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