13/02/2013 - 04h40
A RENÚNCIA do papa é um convite para toda sorte de teorias conspiratórias; no mínimo, pode-se prever que, de forma talvez nunca registrada na história, Bento 16 terá condições para dirigir, ainda vivo, a própria sucessão.
A decisão foi também repentina demais para se acreditar plenamente na tese de cansaço; teria surgido alguma pressão súbita capaz de tirar Bento 16 do trono de São Pedro? Algum escândalo, quem sabe?
Há argumentos contra esse tipo de especulação. Imagine a hipótese inversa. Se tudo se deve mesmo à fragilidade, à saúde e à velhice, o papa tomou a melhor atitude ao fazer o anúncio de chofre. Não há como preparar a opinião pública para uma coisa dessas sem dar margens a rumores ainda piores.
Vindo de um papa tão cioso das tradições, o fato não deixa de ser irônico. Bento 16 "inova", por assim dizer, evitando o triste espetáculo que se viu no caso de seu antecessor. Com os progressos da medicina, cargos vitalícios acabam -como a vida- conhecendo um prolongamento cruel e antinatural.
Bento 16 ficará com a imagem de "conservador", o que é verdade.
Mas prefiro pensar nele de outro modo. Para quem não tem crença religiosa, as palavras de Bento 16 eram muito mais interessantes do que seria de esperar.
Como intelectual, este papa sempre soube melhor se dirigir ao cérebro do que ao coração das pessoas. Várias vezes topei com frases de Bento 16 que eu mesmo, ateu de carteirinha, poderia subscrever.
A primeira surpresa foi quando ele visitou o local de um antigo campo de concentração nazista. Em seu discurso, deixou no ar a pergunta memorável.
Ficamos pensando, disse o papa, onde estava Deus quando tudo isso aconteceu. Era uma pergunta que nada tinha a ver com as habituais consolações, tão vazias, que a rotina religiosa costuma invocar nesse tipo de situação.
No ano passado, Bento 16 tocou no mesmo tema. Foi num concerto em Milão, no qual iam tocar a Nona Sinfonia de Beethoven. Como se sabe, no último movimento são cantados trechos da "Ode à Alegria" de Schiller. Não há catolicismo nesses versos, mas tudo transmite confiança religiosa.
"Ébrios de fogo entramos em tua morada celeste!", exulta o coro. "Sobre a abóbada estrelada deve morar o Pai amado!"
O papa confessou suas dúvidas a respeito. Essas palavras "ressoam vazias para nós, aliás, não parecem ser verdadeiras". "Não experimentamos de modo algum as centelhas divinas do Elísio. Não estamos inebriados de fogo, mas, ao contrário, paralisados pela dor diante de tanta e incompreensível destruição, que ceifou vidas humanas, que privou muitos da própria casa e lar."
Ele se referia a um terremoto ocorrido na Itália em maio daquele ano. E continuou.
"Até a hipótese de que por cima do céu estrelado deve habitar um Pai bom nos parece discutível. O Pai bom está sozinho acima do céu estrelado? A sua bondade não chega até nós aqui embaixo? Procuramos um Deus que não domina à distância, mas que entre na nossa vida e no nosso sofrimento."
Frases como essas me pareceram extremamente justas, e -vindo de quem vieram- ousadas a mais não poder. "Não temos necessidade de um discurso irreal de um Deus distante e de uma fraternidade não exigente", continuou o papa.
"Buscamos uma fraternidade que, no meio dos sofrimentos, ampara o outro e assim o ajude a ir em frente. Depois deste concerto muitos participarão na adoração eucarística -ao Deus que se inseriu nos nossos sofrimentos e continua a fazê-lo. Ao Deus que sofre conosco e por nós, e assim tornou os homens e as mulheres capazes de compartilhar o sofrimento do próximo e de o transformar em amor."
Ouvi com frequência um comentário meio leviano sobre o conservadorismo de Bento 16 em temas como família, homossexualidade, contracepção. "O que vocês querem? Afinal, ele é o papa!"
Nunca concordei com essa desculpa. Mesmo sendo "o papa, afinal", Bento 16 não saiu por aí fazendo campanha em favor da tese de que o mundo foi criado em seis dias.
Foi escolha sua insistir em temas relativos à vida sexual, quando há dezenas de campanhas (comércio de armas, aquecimento global) que poderiam garantir à Igreja mais apoio junto às pessoas de bom senso. Mas não faltou a Bento 16 o ânimo de dizer mais do que se esperava dele.
Marcelo Coelho, jornalista, é membro do Conselho Editorial da Folha. É autor dos romances "Patópolis", "Jantando com Melvin" e "Noturno" e das coletâneas de ensaios "Tempo Medido", "Gosto se Discute" e "Trivial Variado". Comenta assuntos variados. Escreve às quartas na versão impressa de "Ilustrada" e mantém um blog no site da Folha.
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