domingo, 3 de fevereiro de 2013

A porta aberta


Cláudio Couto: 

Artigo publicado pelo pesquisador do Cepesp Cláudio Couto no caderno Aliás, do jornal O Estado de S. Paulo, em 20 de janeiro.
Há um dito popular segundo o qual o cachorro entrou na igreja porque a porta estava aberta. Pode-se dizer que o mesmo se aplica à proliferação de partidos no Brasil. Não há incentivos institucionais para que os políticos prefiram agregar-se em partidos maiores (e menos numerosos)em vez de ingressar em agremiações menores – por vezes optando por criar as próprias entidades. A coleta de milhares de assinaturas dificulta a criação de novos partidos,mas não é barreira intransponível.
Claro que se pode sugerir que o motivo de o cachorro ter adentrado a igreja é que havia ali algo atraente. Embora isso não tire a importância da porta aberta, ressalta que a mera ausência de impedimentos não é suficiente para acarretar certas ações, sendo necessária também uma motivação. Pois há motivos para que nossos políticos criem, mantenham e se filiem a tantos partidos diferentes, além da mera ausência de impedimentos para fazê-lo.
1) Motivos ideológicos. Políticos podem fundar novos partidos por acreditarem que apenas por meio deles será possível defender determinadas causas, valores e ideias. Essa talvez seja a melhor explicação para a criação do PSOL, dissidência à esquerda do PT. Diante do pragmatismo cada vez maior dos petistas, que abriram mão de diversos pontos de seus programas históricos para governar, algumas de suas alas mais ortodoxas optaram por criar uma nova agremiação. Os custos não são negligenciáveis, algo evidenciado pelo tamanho diminuto do PSOL e pela dificuldade de angariar apoios que permaneceram fiéis ao petismo.
2) Motivos fisiológicos – espaço político. A criação ou a migração para outro partido podem se justificar pela falta de espaço que um político tinha em sua antiga agremiação. Assim, migra-se não em função de mudança ideológica ou desacordo político de fundo, mas porque as ambições são tolhidas. Tais movimentos dos políticos fazem com que a manutenção de várias legendas seja algo viável e rentável,pois sempre haverá quem tenha interesse em mudar de ares. Casos recentes desse tipo de operação foram a idade Agnelo Queiroz do PCdoB para o PT,de Gustavo Fruet do PSDB para o PDT, assim como o ingresso de diversos políticos país afora na nova agremiação criada por Gilberto Kassab, o PSD.
3) Motivos fisiológicos – governismo. A criação ou a manutenção de um partido podem também se justificar porque sua existência facilitará a vida dos que não conseguem permanecer muito tempo na oposição. Novamente, o PSD de Kassab é bom exemplo disso– veja- e o estrago que provocou nas hostes oposicionistas. Da mesma forma, o inchaço que PTB e PL (hoje PR) tiveram durante o primeiro ano de Lula se deveu ao fato de ser em eles um estuário natural da adesão de adesistas natos que se elegeram  por partidos de oposição – PFL (hoje DEM) e PSDB, eles mesmos beneficiários de movimento similar quando FHC governou o país – e não pretendiam ingressar no PT, partido de disciplina interna mais rígida.
4) Motivos fisiológicos – recursos. A criação de um partido pode ser um bom empreendimento.
Há um montante garantido vindo do Fundo Partidário, mesmo que o partido seja bem pequeno. Se a legenda tem a felicidade de eleger alguém para a Câmara dos Deputados, aumenta o valor ganho. Mas a legenda também pode angariar recursos da contribuição de doadores de campanha e filiados, sobretudo os que pretendem se candidatar a alguma posição, mesmo sem chance alguma. Com isso,
os dirigentes partidários (sempre os mesmos) têm seu ganha-pão assegurado, com poucos riscos negociais. Decerto, a maioria dos casos é uma combinação desses vários motivos. O novo partido pretendido por Marina Silva, por exemplo, pode ser entendido como resultante de uma combinação entre os motivos 1 e 2; já o PSD de Kassab é uma misturados motivos 2 e 3 . Os partidos nanicos sem ideologia podem ser enquadrados na motivação 4.  A proliferação de legendas não traz ganho à democracia. Pelo contrário, já que torna o sistema partidário de difícil inteligibilidade para a maioria dos eleitores e dilui responsabilidades.
Isso não significa que o cenário ideal seria um bipartidarismo, já que esse hipersimplifica a disputa, eliminando nuances políticas enriquecedoras e sub-representa preferências eleitorais. Contudo, nem por isso o extremo oposto que temos é o antídoto dessas mazelas. Ele convém aos políticos profissionais sem causas públicas, à busca de ganhos fisiológicos: cada um cria ou ingressa em agremiações nas quais terá maior importância relativa e possibilidades de ganho. Nesse assunto, ao contrário do verificado noutras situações, foi o Congresso que produziu uma reforma política e o Judiciário que a sepultou. Uma cláusula de desempenho eleitoral mínimo vigoraria para as eleições de 2006, tendo até mesmo forçado fusões (como PTB/PSD e PL/PRONA). Ela foi derrubada pelo Supremo Tribunal Federal por alegada inconstitucionalidade. Foi o Judiciário que manteve a porta aberta.

CLÁUDIO GONÇALVES COUTO É CIENTISTA POLÍTICO, PROFESSOR DO CURSO DE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DA FGV-SP. 

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