A compreensão das atuais controvérsias em torno da Petrobrás só é possível mediante a análise, sob a perspectiva histórica, dos interesses, conflitos e disputas que a cercam. A revolução industrial e a urbanização na Europa e EUA, sob a ordem capitalista, causaram reflexos sobre o Brasil agrário de meados do século passado. Setores progressistas entendiam que a energia, sob forma de eletricidade e derivados de petróleo, ao lado das telecomunicações, do aço, e da infraestrutura viária, eram condição necessária para a industrialização e urbanização. Surgiram dessa visão o sistema Eletrobras, Telebrás, Companhia Siderúrgica Nacional, o então BNDE e a Petrobrás, sob o signo de uma mística. Das ruas nasceu a campanha "O petróleo é nosso", quando não havia petróleo, apenas esperança. Não obstante a mística, que até hoje marca o sentimento de afeição de grande parte da população brasileira, a Petrobrás é fruto da concepção keynesiana de Estado provedor das condições básicas para o desenvolvimento capitalista. E cumpriu seu papel em etapas determinadas por interesses das forças hegemônicas.
Na primeira etapa, o esforço foi promover o acesso de todas as regiões do País aos derivados de petróleo, permitindo a mobilidade de pessoas e mercadorias em grande escala. Com o impacto dos choques dos preços do petróleo, de 1973 e 1979, a Petrobrás assume uma missão adicional, que inaugura uma nova fase: a busca de petróleo no mar. Torna-se líder mundial na produção em águas profundas e ultraprofundas - lançando as bases tecnológicas e estruturais para a efêmera autossuficiência, festejada em 2006 e perdida logo após, e a descoberta do pré-sal, em 2007.
Nessas duas etapas, garantiu o suprimento de derivados de petróleo, muitas vezes com preços subsidiados, e serviu de indutor da modernização industrial do País. Garantiu a demanda para o arranjo produtivo setorial, viabilizou o suprimento de derivados de petróleo, supriu a demanda por derivados dos segmentos industriais e, viabilizou todo o complexo automobilístico e rodoviário.
O fim da era keynesiana com a emergência do neoliberalismo, sob Collor, e sua implantação, por FHC, engendram uma transformação. Com a Lei de Política Energética, os preços dos derivados são internacionalizados e a Petrobrás passa da estrutura e operação autárquicas para um modelo de governança típico das majors internacionais de petróleo, como BP, Shell e Exxon-Mobil. 30% do seu capital é vendido na Bolsa de Nova York (NYSE) por cerca de US$ 5 bi. A privatização não se completa, por pressão popular, inspirada na mística de sua criação. Embora 70% de seu capital fosse privatizado, o governo mantém a maioria das ações ordinárias e o controle da gestão. A disputa intercapitalista emerge: atender aos clientes internos ou maximizar os lucros, como requer a nova ordem sob FHC para atender aos interesses dos acionistas e o capital financeiro internacional? Sob o governo do PT o modelo herdado é mantido intacto, com o acréscimo da exigência de conteúdo nacional para a cadeia de suprimento.
Uma nova condição geopolítica emerge a partir de 2005. Dos anos 1980 até 2005 o petróleo se mantinha na faixa dos US$ 20 por barril, pouco acima dos custos de produção. Mas a forte demanda por petróleo liderada pela China e a rearticulação da Opep, com o alinhamento da Rússia sob Putin, permitiram as condições para que os produtores voltassem a se apropriar do excedente. Com preços acima dos US$ 100 e custos diretos, capital e trabalho, inferiores a US$ 10, o excedente por barril chega a US$ 90. Esse contexto acirra oportunidades e conflitos. Aos acionistas interessa manter a política de preços internacionalizados, aumento de reservas, redução dos custos, mesmo via importação.
Com valor em bolsa de cerca de US$ 15 bilhões em final de 2002, a Petrobrás chegou a liderar as transações de ações de empresas internacionais NYSE, superando os US$ 200 bilhões, em meados da década de 2000.
A descoberta do pré-sal e o aumento de dezenas para mais de centena de bilhões de dólares dos investimentos previstos pelo plano estratégico, a partir de 2005, colocam a Petrobrás no foco central dos interesses para o controle dos contratados na cadeia de suprimento, pela base de apoio político e econômico do governo. Consórcios de políticos de vários partidos da base aliada são formados para indicar os dirigentes das esferas superiores de gestão da Petrobrás. Aumenta a presença, existente em todos os governos, de despachantes de interesse em cargos executivos. São os "crachás de aluguel", funcionários com experiência e currículo dispostos a ocupar cargos em nome desses consórcios. O preço disso: destruição do foco estratégico e triplicação dos custos de investimentos, como no caso da Refinaria Abreu e Lima ou do Complexo Petroquímico do Rio. Em flagrante descumprimento da lei de política energética, o governo do PT intervém na autonomia da Petrobrás e implanta uma regulação improvisada, arbitrária, dos preços para evitar a explosão da inflação e subsidiar o consumo, reduzindo o custo da força de trabalho e os insumos industriais. O modelo elétrico e seu uso em benefício dos sócios do governo também penalizam a Petrobrás, como provedora de gás natural liquefeito e diesel importados, vendidos abaixo do custo - para, ainda assim, gerar energia cinco vezes mais cara que a hidráulica ou eólica.
Nesse jogo de interesses a massacrada é a população que deveria obter o máximo de valor pelo petróleo que, segundo a Constituição, lhe pertence, e deveria ser explorado no ritmo adequado para gerar excedente capaz de financiar um plano nacional de desenvolvimento, baseado na educação e saúde públicas, na proteção ambiental, no avanço científico e tecnológico e na reforma urbana e agrária. Outra sacrificada é corporação Petrobrás, a maior realização do povo brasileiro como capacidade estruturada de intervir sobre a natureza e dela arrancar, em ambiente de alta complexidade, o insumo essencial para sua existência: a energia.
* ILDO SAUER, PROFESSOR TITULAR DO IEE-USP, FOI DIRETOR DA PETROBRÁS (2003-2007)
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