quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

JOAQUIM FALCÃO E JOÃO CARLOS COCHLAR Ou seja, não leu, FSP

 Joaquim Falcão

Membro da Academia Brasileira de Letras, professor de direito constitucional e conselheiro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri)

João Carlos Cochlar

Advogado e pesquisador em direito

No ano passado, o relógio do salão nobre do Supremo Tribunal Federal marcava 16h30, na quinta-feira, 28 de setembro. O ministro Luís Roberto Barroso jurava à Constituição como 50º presidente do STF na República. Em seguida, às 17h50, no discurso de posse, comprometia-se em aumentar a eficiência do Judiciário, avançar a pauta dos direitos fundamentais e contribuir para o desenvolvimento econômico e social sustentável do Brasil.

Mas havia outras evidências no ar.

"Corte Aberta", portal de dados estatísticos do tribunal, informava que, de janeiro a setembro, o Supremo recebera 59.517 processos. Apesar desse tsunami, conseguira baixar 58.155 processos. Grande esforço. Mesmo assim, o estoque, o déficit, aumentara em 1.362 processos.

Outras evidências.

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O presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Luís Roberto Barroso, cumprimenta sua antecessora, Rosa Weber, durante a cerimônia de posse, em Brasília - Pedro Ladeira - 28.set.23/Folhapress - Folhapress

Rosa Weber, em 2023, como presidente, tomou 36.283 decisões em vários tipos processuais. Mais de 3.000 decisões por mês. Mais de 750 por semana, mais de 150 por dia. Segundo o "Corte Aberta", em 2023, essas decisões de Rosa Weber foram tomadas em mais de 32 mil processos.

Por esses números, se cada processo tivesse, numa estimativa conservadora, 200 páginas, Rosa Weber teria "lido", mesmo virtualmente, cerca de 533 mil páginas por mês. Mais de 26 mil por dia. Mais de 3.000 por hora.

Trabalhando oito horas por cinco dias da semana. 240 dias por ano.

Sem contar os dias das viagens que não fez. Como se diz no Nordeste, nem à Europa, nem à França nem à Bahia.

Ou seja, não leu.

Nenhum ministro do STF consegue ler tudo o que lhe é distribuído pela cultura judicial barroca ainda em vigor. Suas normas processuais, regimentais. Mesmo que, formalmente, a decisão saia com o nome do julgador. O token é do ministro. Mas o constitucionalismo de realidade desafia se ele realmente leu tudo.

O formalmente viável é humanamente impossível.

A Constituição, no art. 5º, assegura o acesso à Justiça, o devido processo legal e o contraditório. Esses princípios do Estado democrático de Direito começam por simples, indispensável e palpável ato: a leitura.

O direito de ser lido.

Para, só então, o magistrado pensar, processar, avaliar e escolher o que é legalmente justo.
Sem a leitura, não existe o legal.

Leitura não pelo assessor, assistente ou juiz auxiliar. Mas por aqueles em quem o presidente da República e o Senado reconheceram notável saber jurídico e reputação ilibada. Pelo detentor da palavra final, diria o ministro Celso de Mello. O colegiado do Supremo. Que a ninguém pode delegar.

Juiz auxiliar não é ministro.

O cidadão só pode ser julgado e desprovido de bens ou liberdade depois de ser lido. Simples assim.

Um assessor de magistrado às vezes passa oito horas lendo um processo. Em 2024, sem o ano Judiciário ter começado, já entraram 3.711 processos. Ou seja, 120 processos por dia.

Para ser mais eficiente, o Supremo aposta no monocratismo e na digitalização. Não resolve.

estratégia digital de privilegiar o plenário virtual não tem sido suficiente para conter o tsunami processual. Em 2021, foram 98.213 decisões. Em 2022, 89.961. Em 2023, 105.827. Aumentaram.

Em 2023, 87.637 decisões monocráticas foram tomadas. Apenas 18.190 colegiadas. Destas, cerca de 100 foram ao vivo. Presenciais. As duas turmas julgaram menos de 20 processos. O plenário, menos de 70.

O resultado líquido do monocratismo foi retirar o Supremo do ar. Acabar com o STF televisionado.

As 105.722 decisões virtuais, colegiadas ou monocráticas, não foram ao vivo. Foram em ambiente virtual.

Uma tela onde cada ministro deposita seu voto, lendo ou não. Raramente há discussão ou sustentação ao vivo do advogado.

Mais de 99% das decisões do tribunal tornaram-se virtuais.

Na ânsia de defender o monocratismo, o portal "Corte Aberta" chega a considerar decisões monocráticas como decisões presenciais. Não são. Induz-se ao erro.

Esse medo do colegiado acabou criando, mesmo sem querer, o monocratismo coletivo, digital e autoritário. Sem imagem e som. "Antidevido" processo legal. Portas fechadas.

Só resta substituir a inteligência natural do julgador pela inteligência artificial de ninguém.

Em dezembro, no encerramento do ano Judiciário de 2023, o ministro Barroso discursou: "As decisões monocráticas são imperativo da realidade do tribunal e das circunstâncias em que nós vivemos. E só poderia ser diferente se se reduzisse dramaticamente as competências do Supremo Tribunal Federal".

Às vezes, na democracia, o dramático para uns é o necessário para outros. O caminho é ser menos para ser mais.

Esta é a hora e vez do ministro Luís Roberto Barroso. Ninguém melhor do que ele.

Boa sorte, ministro.

Dino usou credencial de esquerda para convencer Lula na segurança, FSP

 Quando pisou em Pequim, em 1972, Richard Nixon estabeleceu um paradigma na política. Naquele momento de tensão global, um gesto de conciliação com os chineses seria encarado com desconfiança pelo eleitor americano. Mas a reputação do presidente como um anticomunista incontestável foi visto como garantia de rigor com os rivais.

A expressão "Nixon vai à China" passou a ser usada para descrever episódios em que um representante de uma corrente ideológica faz uma jogada tipicamente associada a uma linha política contrária. Seu objetivo é explorar a credibilidade interna para reduzir resistências e persuadir seu próprio campo da importância de determinada medida.

Flávio Dino pareceu disposto a desembarcar em Pequim quando decidiu dar peso à pauta da segurança pública. Num evento ao lado de Lula, no terceiro mês de governo, o ministro reconheceu que a esquerda tinha dificuldade de enfrentar o assunto. "Segurança pública não é um tema da direita", sentenciou.

O ministro Flávio Dino (Justiça) e o presidente Lula (PT) em balanço das ações do ministério - Pedro Ladeira/Folhapress

Boa parte dos eleitores de Lula cobra soluções rápidas para a violência. Assim como parte da direita, muitos defendem o aumento do policiamento e admitem rigor no enfrentamento ao crime. Resistências ficam por conta de elites políticas e movimentos sociais, escaldados por décadas de brutalidade estatal.

Dino usou credenciais de esquerda para flexibilizar visões nesse campo. Manteve um discurso firme contra a matança policial e o vale-tudo das armas de fogo, mas também trabalhou para convencer Lula a mergulhar numa agenda de combate ao crime organizado que incluísse a ampliação de despesas com as polícias.

Em seu balanço final como ministro, Dino buscou um equilíbrio direcionado ao público interno. Disse que segurança "não é invadir bairros populares e fuzilar idosos, crianças e mulheres", mas também reconheceu que hoje esse trabalho é impossível sem um aumento do encarceramento. Ricardo Lewandowski e seus auxiliares podem ter mais trabalho para enviar essas mensagens.