segunda-feira, 25 de julho de 2016

Uma luta que não é deles: Os estudantes e a greve na USP- Aliás OESP

A notícia do fim da greve dos funcionários da USP veio com uma ressalva. A de que poderá ser retomada após o término das férias do calendário escolar. Para quem, como eu, cresceu dentro de uma fábrica e presenciou a greve dos 300 mil, em 1957, soa estranho que alguém pare para descansar da paralisação e a ela retornar após o merecido descanso.
As greves universitárias do período pós-ditatorial fluem no cenário adverso da peculiar impotência do paredismo de classe média. Não incidem sobre atividades produtivas. Nenhuma riqueza deixa de ser criada, ninguém lamentará que alunos deixem de estudar, funcionários deixem de funcionar, professores deixem de ensinar. As perdas são invisíveis. Quem se importará com os enormes danos que bibliotecas fechadas durante meses causam a estudantes de pós-graduação que tem teses para concluir e prazos rígidos para cumprir na Universidade e nas agências de fomento que lhes concedem bolsas de estudo? Prazos que a greve não modificará. Em nossa cultura alienada, que de vários modos valoriza a ignorância, estudar não é necessariamente um bem. Para muitos é um castigo. Concretamente, ninguém perde com paralisações em setores que não produzem diretamente mais-valia, para irmos ao vocabulário que dá sentido às verdadeiras greves, as fabris. Ao contrário, são setores que vivem à custa de uma parcela da distribuição da mais-valia extorquida dos trabalhadores do setor produtivo.
As três universidades públicas paulistas são mantidas às custas de uma proporção não pequena da arrecadação do ICMS, recolhido sempre que alguém compra alguma mercadoria de alguém que não seja propriamente bandido e sonegador e que, portanto, emite nota fiscal para pagar o devido imposto. Os favelados da favela de São Remo, encravada em terreno da USP, e os favelados da favela do Jaguaré, a quatro quarteirões da Cidade Universitária, são comantenedores da Universidade de São Paulo. Quando, a duras penas, compram um quilo de feijão ou de arroz ou um litro de leite para refeição da família e das crianças, pagam parte do ICMS que mantém a Universidade e assegura à pequena burguesia que a frequenta o ensino de primeiro mundo que seus filhos nunca terão. A USP é agora mesmo anunciada como a ocupante do 10º lugar, a Unicamp do 12º e a Unesp do 36º no ranking das Universidades do Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul).
Da Cidade Universitária não se vê a favela que se espalha pelo morro do Jaguaré, no entanto tão perto, e a miséria dos exíguos barracos de chão de terra batida, com a bacia da privada encravada num canto do cômodo único, com a mesa de caixote e a cama coletiva lado a lado. De lá, porém, se vê perfeitamente o próspero cenário dos muitos carros estacionados na USP, do vai e vem dos beneficiários do ensino público gratuito, democrático e laico, da alimentação subvencionada, do transporte gratuito, das bolsas de estudo e até das moradias gratuitas para muitos. Não se trata aqui de fazer a crítica fácil a quem se deixa manipular ou arrebanhar para causas que tem sua razão. Trata-se de tentar desvendar o nó que se esconde por trás das tensões que aos poucos vão consumindo a Universidade.
A facilidade com que alunos são mobilizados para causas que não são as suas, as dos funcionários ou as dos professores, apenas sugere as peculiaridades da crise de gerações entre nós nos dias atuais. Antes da ditadura, as novas gerações tinham uma causa e uma esperança, a da definição de um projeto de nação para todos, confirmação de uma história social em andamento. Na ditadura, o projeto foi truncado e reprimido, quem o defendia foi perseguido, quem insistia foi preso, cassado, banido ou morto. A crise de gerações ganhou outro contorno, o da vítima, o da generosa disponibilidade até para dar a vida em nome do sonho de uma pátria livre e soberana, justa e democrática. Com o fim da ditadura, o sonho aparentemente acabou, perdeu conteúdos, cedeu lugar aos arranjos e conveniências de poder, à busca de privilégios corporativos. As novas gerações já não têm uma causa. Tudo já está pré-formatado para elas pelos outros, pelos que não tendo causa própria se apossam do direito dos jovens de terem sua própria causa, suas próprias perguntas e suas próprias respostas. No afã autoritário do mando e da imposição, cada um a seu modo, professores e funcionários usurparam o que é próprio das novas gerações, que é recriar o mundo segundo seu modo de vê-lo e seu modo de querê-lo. Hoje, os estudantes dos movimentos grevistas nas universidades públicas, os dos cadeiraços, das ofensas e ameaças aos professores, querem o mundo e a sociedade ultrapassados de uma geração vencida, a geração fracassada que levou o Brasil ao abismo do mensalão e do petrolão, da Operação Lava Jato, da corrupção descarada, do poder pelo poder. Não lhes ensinaram a ver suas próprias contradições nem a reconhecer sua missão no mundo. Apenas a gritar sem falar, calar sem ouvir, espernear sem caminhar.

Sociedade da diversão: O Pokemón Go vai transformar o mundo em uma enorme rede social, Aliás OESP

uando os primeiros Pokémons apareceram, há duas décadas, vivíamos em uma sociedade bem diferente da atual. A internet ainda se movia por fios telefônicos, seus primeiros usuários eram programadores, curiosos e jornalistas e ela só podia ser acessada por PCs, que ocupavam mesas. Celulares ainda eram só telefones móveis que nem mandavam mensagens de texto entre si. Videogames não eram jogados em rede. GPS era uma rede de satélites de uso militar começando a ser usada por exploradores. O conceito de realidade aumentada ainda estava no laboratório. Fotografias iam do filme para o papel. Não havia redes sociais.
E foi neste mundo do final dos anos 1990 que se espalhou a sanha para capturar monstros de bolso (Pokémon é uma contração de “pocket monster” em inglês). Era mais um ícone da cultura pop japonesa que invadia o Ocidente e mais uma febre infantojuvenil que se manteve firme nos seus dias de ouro, quando todo tipo de subproduto vinha com a cara dos 150 primeiros monstrinhos, sintetizado no amarelo radiante do apaixonante personagem Pikachu, um perfeito ícone pop.
Pokemón Go 2
A chegada da internet de banda larga na virada do milênio aconteceu simultaneamente à corrida do ouro pela música gratuita, aberta pelo pioneiro software Napster. Surgiam também os primeiros blogs – e qualquer um podia publicar na web sem pagar servidor ou entender de programação. A essa altura, a Nintendo, casa dos Pokémon, perdeu o fio da meada do mundo dos videogames, sem nunca apostar na internet.
Enquanto isso, o Google reinventava a rede com sua página de abertura minimalista e começava a crescer rapidamente. Em pouco tempo, compraria um site chamado YouTube, que nos ensinou a publicar vídeos caseiros e a consumir conteúdo em streaming (fluxo contínuo de dados pela internet). Outros tipos de sites abriam a possibilidade de publicar conteúdo e conectar-se com outras pessoas, naquilo que começou a ser chamado de “redes sociais”. Cada país tinha sua principal rede social, que foram fagocitadas no decorrer da primeira década do século pelo que se tornou a maior delas, o Facebook.
Câmeras analógicas foram sendo trocadas pelas digitais, que logo se transformariam em um dos principais acessórios dos celulares. Estes, antes artefatos caros e elitizados, aos poucos se popularizavam ao incluir outras características, até mesmo acessar a internet. Até que a Apple completou sua ressurreição apresentando seu iPhone e o conceito de smartphone. Foi o último suspiro dos computadores de mesa (que já estavam sendo substituídos pelos notebooks) e o início da era da internet móvel.
A violenta transformação pela qual o mundo vem passando graças a esses inventos dos últimos vinte anos não foi acompanhada pela Nintendo. Por muito tempo, cogitou-se a possibilidade de o encanador Super Mario ter suas aventuras transferidas para smartphone ou para aplicativos via redes sociais. O sucesso da franquia Angry Birds, por exemplo, é claramente devido à lacuna deixada pela empresa japonesa nestas plataformas.
Até que os monstrinhos saíram do estado de hibernação, há menos de um mês. Em parceria com uma empresa subsidiária do Google, a Nintendo soltou os Pokémon na rede exatamente no momento em que a internet parece ter consolidado seu ciclo de dominação e não haver mais fronteiras entre o virtual e o offline. Se antes a internet parecia ser “um lugar” para onde “íamos”, hoje ela está em toda a parte.
O bote final parece estar sendo dado com a captura desses monstros, que podem estar em qualquer lugar. Aponte a câmera do seu celular ao redor para descobrir simpáticos monstros imaginários à solta, esperando serem caçados. Monstros que não existem podem ser colocados em lugares de verdade. É uma forma de tornar a realidade mais divertida, a continuação de um movimento que surgiu no final da década passada chamado de “gameficação”. Originalmente, a gameficação da realidade tem motivos nobres: comparar a evolução de seu desempenho durante a realização de uma atividade física, fazer que a criança encontre motivação para escovar os dentes todo dia, incentivar o motorista a avisar quando ele está num engarrafamento para melhorar um mapa colaborativo de trânsito.
Essa transformação da vida em jogo é uma tendência natural do ser humano, vide o clássico Homo Ludens (1938), de Johan Huizinga, que falava na “alegria” de jogar, em busca de uma “consciência de ser diferente da ‘vida cotidiana’”. Sem perceber, transformamos tudo em jogo, e isso vale para os programas que assistimos no Netflix, a forma como batizamos os grupos no WhatsApp ou nossas redes domésticas de Wi-Fi, a forma como escolhemos as fotos a expor nas redes sociais ou o nome que colocaremos em nossos e-mails. A vida digital nos coloca para jogar continuamente.
Pokémon Go vai além desses conceitos ao trazer o jogo para a atividade online e offline simultaneamente. Além de micos coletivos e situações perigosas, o jogo – que já é um dos maiores fenômenos de popularidade da década – também nos ensinará a utilizar a realidade aumentada que vem sendo prevista há alguns anos. Em algum momento – seja com o celular, óculos hi-tech ou algum outro dispositivo (uma lente de contato?) –, começaremos a ver dados online se superporem às imagens e aos sons do mundo “real”, transformando a sociedade numa enorme rede social em movimento, privacidades vasculhadas para vender anúncios de produtos. E esse momento parece estar começando agora, com a febre Pokémon Go. Que, pelo visto, está ainda em seus primeiros dias – sem mesmo ter chegado ao Brasil, país tradicionalmente voraz consumidor de novidades online. Imagina quando ele chegar no meio dos Jogos Olímpicos...
Quando isso começar, toda a transformação a que assistimos de 20 anos para cá parecerá pequena. Prepare-se.
ALEXANDRE MATIAS, 41 ANOS, É JORNALISTA E ESCREVE NO SITE TRABALHO SUJO HÁ 20 ANOS

Capturados pelos Pokemóns: o fenômeno mundial é uma fuga à realidade tão antiga quanto o ser humano. Alias, OESP

O videogame Pokémon já vendeu mais de 200 milhões de itens da marca e até março deste ano faturou US$ 46,2 bilhões. O jogo consiste na captura dos Pokémons – pequenas criaturas imaginárias – por seres humanos, que os treinam para lutar entre si. Seu mais recente produto, o Pokémon Go, foi lançado essa semana nos Estados Unidos, Austrália e Nova Zelândia, e tem alcançado enorme sucesso. Graças ao uso da realidade aumentada, os Pokémons se escondem não mais no espaço interno do próprio jogo, e sim em inesperados lugares das cidades – ruas, praças, logradouros públicos, etc. – onde os jogadores os localizam por meio de seus celulares.
Desde o recente lançamento, foram relatadas várias ocorrências que mostram a intensidade da imersão dos jogadores na realidade virtual. Em suas andanças pela cidade em busca dos Pokémons, eles se esquecem da realidade factual e seus perigos, e assim se expõem a sérios riscos – como o trânsito e ladrões oportunistas.
Pokemón Go
São incidentes que tendem a se multiplicar, na medida em que o jogo seja lançado nos demais países, incluindo o Brasil. Eles retomam a antinomia entre realidade virtual e realidade factual. Seriam elas antagônicas e inconciliáveis? Antes de tirar conclusões, talvez devêssemos enfocar uma questão prévia, e nos perguntar sobre o que é mesmo isso que chamamos de realidade. Veríamos então que equivocadamente a tomamos como um dado autoevidente, sem notar que essa é uma noção complexa, nada fácil de apreender e que tem largas implicações filosóficas.
De forma ingênua, a primeira ideia que nos ocorre sobre a realidade é que ela é aquilo que captamos diretamente através de nossos órgãos de percepção ou das próteses que para eles construímos com o objetivo de lhes aumentar a potência, como microscópios, telescópios e apetrechos correlatos.
Mas a mente humana não funciona como um instrumento que registra exata e imparcialmente o que está à sua frente, como faria uma máquina fotográfica ou cinematográfica. Nossa percepção passa por filtros afetivos conscientes e inconscientes que podem distorcer bastante o que se nos apresenta. Nossa memória também é pouco confiável, alterando o passado com frequência em função de vivências do presente.
Ao mesmo tempo em que dispomos de recursos poderosos para reconhecer a realidade e nela intervir, transformando-a em nosso benefício, como mostram as conquistas nos mais variados campos que nos têm proporcionado uma vida mais segura, saudável e confortável, temos também idêntica capacidade de negá-la, com consequências as mais desastrosas.
Há diferentes níveis de negação da realidade. A forma mais radical é a psicótica, que a substitui por um delírio que satisfaz sem restrições os desejos e fantasias que se recusam a abandonar o princípio do prazer. Na neurose, a negação da realidade é mais branda, ocorre parcialmente, sendo os fragmentos negados substituídos por fantasias, devaneios, mini delírios que conciliam as exigências da realidade e as pressões narcísicas.
As variações no manejo da realidade descritas pela psicanálise rompem com a rigidez da divisão entre realidade virtual e factual. Mostram que não estão tão distantes uma da outra, e que o próprio conceito de realidade virtual popularizado pela tecnologia e informática tem um substrato mais arcaico e universal.
Sempre vivemos, cada um de nós, em “realidades virtuais” próprias, singulares, secretas, privadas, íntimas, na medida em que fazemos recortes muito precisos apagando alguns aspectos da realidade, de modo a adequar suas restrições a nossos desejos inconscientes infantis, dos quais não queremos ou podemos abrir mão.
Enquanto cada um de nós cria uma realidade virtual singular fantasmática, que atende às especificidades únicas do próprio desejo inconsciente, a tecnologia, pelo contrário, produz uma realidade virtual padronizada e massificada, materializada num programa de computador a ser processado num gadget, como ocorre com o Pokémon Go.
A tendência a negar os fatos e mergulhar em realidades virtuais é tão antiga quanto o próprio homem e evidencia a dinâmica entre o princípio do prazer e o princípio da realidade. Freud dizia que não toleramos um contato ininterrupto com a realidade. Precisamos diariamente cortar o contato com ela e nos refugiar no mundo dos sonhos. O sonho é a “realidade virtual” onde realizamos de forma disfarçada e simbólica os desejos que a realidade nos obriga a abandonar. Não é de hoje que se usam substâncias que criam estados alterados de consciência, afastando-nos da realidade e nos levando para paraísos artificiais (virtuais).
As artes e, especialmente as narrativas, como a literatura e o cinema, também criam realidades virtuais. Tais estruturas narrativas, ainda que ficcionais, ou seja, “não reais”, “virtuais”, mesmo assim possibilitam o acesso a importantes verdades humanas que sem elas nos seriam inacessíveis.
Ao reconhecer esse fato, recuperamos o aspecto positivo desses construtos. Eles não se prestam apenas à fuga da realidade através do entretenimento, como faz o Pokémon Go.
A realidade virtual produzida pela tecnologia pode ser usada para fins terapêuticos, como mostram relatos recentes de tratamentos experimentais de fobia de avião realizados na França. O paciente, usando óculos especiais que recriam a experiência de voo, é acompanhado por um psicanalista que segue o desenvolvimento de sua angústia no processo e procura usar dos recursos analíticos e cognitivos para ajudá-lo a superar o sintoma.
É um campo promissor. Se as condições de voo podem ser recriadas virtualmente, permitindo que o fóbico as vivencie de forma assistida e controlada junto a seu analista, outras situações traumáticas semelhantes ou mais complexas poderiam ser também recriadas, ampliando o arsenal terapêutico.
Aplicada no entretenimento, como o Pokemon Go, ou na terapêutica, como no tratamento de fóbicos, a tecnologia mostra a versatilidade desse mais recente exemplar de uma longa e rica tradição.
SÉRGIO TELLES É PSICANALISTA E ESCRITOR. AUTOR, ENTRE OUTROS LIVROS, DE O PSICANALISTA VAI AO CINEMA, VOL. 3 (ZAGODONI)