domingo, 29 de julho de 2012

Construindo uma casa de plástico



Polímeros substituem tijolos de argila e dormentes de ferrovias
© EDUARDO CESAR
Descoberto em 1872, o policloreto de vinila, conhecido como PVC, começou a ser produzido industrialmente na década de 1920 nos Estados Unidos e na de 1930 na Europa. Feito a partir do sal de cozinha (cloreto de sódio) e de derivados de petróleo, hoje é um dos plásticos mais usados no mundo em tubos, conexões e tapetes de banheiro, brinquedos, bolsas de sangue e soro. Mais recentemente ele passou a ser usado para substituir tijolos e outros materiais. É o caso de uma tecnologia para construção de casas com paredes de PVC desenvolvida em parceria pela Braskem, Dupont e Global Housing, empresa brasileira com sede em Santa Catarina.
Batizado de sistema construtivo em concreto PVC, ele emprega perfis ou módulos desse tipo de plástico encaixados uns nos outros e preenchidos com concreto (veja o vídeo da montagem). As vantagens são que a casa pode ficar até 20% mais barata, comparando-se com as de alvenaria, e é construída de forma mais rápida, levando oito dias para ficar pronta ante três meses de uma residência convencional de 40 metros quadrados (m2).
São 10 tipos de perfis, cada um com uma função específica. O mais usado em uma construção é o chamado módulo I, que tem 20 centímetros (cm) de largura e 8 cm de espessura e altura variável de acordo com o pé-direito da casa. Há ainda o módulo multifuncional, de 8 por 8 cm, empregado nos cantos e nas divisórias. O único que fica visível depois da moradia pronta é o perfil de acabamento, que encobre os outros, tanto no interior como no exterior, e tem a mesma função do reboco.
O presidente da Global Housing, Gilberto Fernandes, conta que a ideia de desenvolver o concreto PVC surgiu há seis anos, inspirada numa tecnologia semelhante existente no Canadá, onde há pelo menos duas empresas do ramo. Existem ainda outras similares na Austrália, México e Venezuela. ?Num primeiro momento, nós desenvolvemos a ideia, aprimorando e adaptando a tecnologia às condições ambientais e climáticas brasileiras?, explica. ?O segundo passo foi criar uma formulação, para fabricar os módulos.? É aí que entram a Braskem e a Dupont. A primeira fornece a resina de PVC e a segunda o dióxido de titânio, que são usados na composição da fórmula que dá origem aos perfis.
De acordo com o responsável pelo desenvolvimento de negócios de PVC da Braskem, Marcello Cavalcanti, a empresa fornece o produto, em forma de pó, que depois é fundido na fábrica da Global Housing com os outros componentes da formulação. São cerca de 300 toneladas por mês. Além do reboco, o PVC dispensa pintura e revestimento. A cor branca é dada pelo PVC e pelo dióxido de titânio, substância que também protege contra os raios ultravioleta do sol, evitando microrrachaduras e escamações do plástico, preservando o desempenho mecânico e aumentando a durabilidade do produto. ?Mas se o dono da casa quiser pintá-la de outra cor, pode?, garante Fernandes. ?Assim como aplicar ladrilhos, azulejos ou grafiato [revestimento decorativo]. Na verdade, é tudo como numa casa convencional.?
Além dessas vantagens do PVC, que é um tipo de polímero reciclável, Fernandes cita outras, como a resistência à chuva, vento e maresia. ?Esse plástico é imune à ação de fungos, bactérias, insetos, roedores e à maioria dos reagentes químicos?, enumera. ?Sem falar que é um bom isolante térmico, elétrico e acústico; impermeável a gases e líquidos; não propaga chamas e é totalmente reciclável.? Quanto à casa em si, o presidente da Global Housing diz que ela tem paredes com espessuras menores que as tradicionais ? não mais que 8 cm ?, o que gera um ganho de até 7% na área útil. Elas também não racham nem estufam, não deformam e não absorvem água.
A construção da casa não exige mão de obra especializada, apenas treinada. De acordo com Fernandes, essa tecnologia é uma forma inovadora e rápida de construir, em escala industrial, diferentes tipos de edificações de alta qualidade, com pouco uso de madeira e água e desperdício mínimo de materiais. O projeto de uma moradia de concreto PVC começa como os outros, tradicionais. O piso pode ser uma laje de concreto (chamada deradier), que servirá como principal apoio para as paredes de PVC. A Global Housing verifica o projeto e, de acordo com ele, fornece o kit para a montagem da casa. No canteiro de obras basta montar os perfis, seguindo o projeto e as especificações. Não há colunas propriamente ditas, mas nos cantos e no meio de cada parede é colocada uma barra de ferro, do piso até o teto. Além disso, ao longo das paredes, a cada 80 cm, no piso são fixadas pequenas barras de ferro com 60 cm de altura. Todas ficam por dentro das paredes feitas com os módulos, que depois são preenchidas com concreto. Após 24 horas secando, a casa está pronta para a colocação das portas e janelas e do telhado. Por esse sistema podem ser erguidas edificações com até dois andares ? térreo mais o andar de cima ?, como sobrados, por exemplo.
Em termos de custo, o preço do metro quadrado de uma construção com concreto PVC equivale ao de uma tradicional ? algo entre R$ 800,00 e R$ 850,00, dependendo da região do país. ?Mas no final da obra há uma economia de cerca de 20%, principalmente por causa da menor necessidade de trabalhadores?, diz Fernandes. Também contribui para a redução do preço de uma casa de PVC a facilidade de gerenciamento e padronização dos processos construtivos


Depois do desenvolvimento da tecnologia, a empresa catarinense buscou a certificação e homologação de seu sistema construtivo em órgãos públicos. Para isso contou com o auxílio da Braskem. ?Nós ajudamos a Global Housing a conseguir toda a certificação técnica para concreto PVC?, conta Cavalcanti. De acordo com ele, a legislação da construção civil no Brasil só permite que novas modalidades e tecnologias de edificações se beneficiem de financiamentos da Caixa Econômica Federal se passarem pelo Sistema Nacional de Avaliação Técnica (Sinat). Também conhecido como diretriz Sinat, é uma iniciativa da comunidade técnica nacional da construção civil que direciona a avaliação do produto e é organizado pelo Ministério das Cidades. O objetivo é uniformizar e avaliar novos produtos e sistemas construtivos colocados no mercado e visa obter o Documento Técnico de Avaliação (DATec), um certificado que homologa e comprova a qualidade. Por isso, abre as portas para programas habitacionais financiados com recursos públicos, como o Minha Casa Minha Vida.
O sistema construtivo concreto PVC da Global Housing passou pela fase do Sinat. Foi analisado pelo Centro Tecnológico do Ambiente Construído (Cetac) do Instituto de Pesquisas Tecnológicas de São Paulo (IPT), onde foi feito o acompanhamento do sistema de montagem e ensaios de envelhecimento acelerado dos painéis, além de verificação da resistência a impactos, fogo e isolamento acústico. ?Nessa fase o produto foi considerado com bom potencial de desempenho para a construção de casas térreas e sobrados, isolados ou geminados?, disse Luciana Oliveira, pesquisadora e chefe do Laboratório de Componentes e Sistemas Construtivos do Cetac. ?Isso significa que ele pode receber financiamento da Caixa?, explica Cavalcanti, da Braskem. Mesmo antes da diretriz Sinat a empresa conseguiu conquistar uma fatia do mercado imobiliário. Desde que as casas de PVC começaram a ser comercializadas há um ano, foram construídos 20 mil m2 delas no Brasil. ?Elas são de diversos tamanhos, além de creches, escolas, sobrados e até quiosques de praia?, conta Fernandes. ?Hoje produzimos em torno de 400 moradias por mês. A previsão é ampliar esse número para mil.? A Global Housing vai aumentar o número de fábricas em 2012, abrindo unidades, nos estados do Rio de Janeiro, Alagoas e Piauí.
Atuando em outro ramo de mercado, a empresa Wisewood igualmente faz do plástico seu principal negócio. A empresa criada em 2007, com sede em Itatiba, no interior de São Paulo, fabrica a chamada madeira plástica, usada na produção de dormentes de estradas de ferro, decks, revestimentos, pallets, módulos, bancos, lixeiras e rodapés. Trata-se na verdade de um composto denominado tecnicamente wood plastic composition (WPC), produzido a partir de plásticos recolhidos do lixo, como rebarbas de fraldas descartáveis, recipientes de óleo combustível e de detergente e sacos de embalagem.
A Wisewood iniciou suas atividades com a fabricação de dormentes poliméricos para atender a MRS Logística e sua necessidade de substituição de dormentes de madeira. ?Desenvolvemos então uma peça de alta tecnologia e engenharia, para atender a todas as especificações e à enorme resistência mecânica que este mercado exige?, conta o diretor comercial da companhia, Diego Gevaerd. ?Foi um sucesso total e hoje nossos dormentes à base de WPC já estão em teste nas outras duas gigantes do setor de ferrovias: Vale e All.?
Com o tempo, os dormentes deram origem a novas tecnologias e produtos como tábuas e mourões. De acordo com Gevaerd, hoje a empresa recolhe em aterros sanitários e lixões, por meio de cooperativas de catadores, sucateiros e das próprias indústrias, cerca de 1.800 toneladas de plástico por mês, basicamente polipropileno e polietileno. São os chamados plásticos duros, que, adicionados a fibras naturais, passam por um processo industrial, dando origem a um material idêntico à madeira. ?Transformamos o que chamam de ?lixo? em produtos acabados, com aplicações industriais?, orgulha-se Gevaerd. ?Hoje atuamos em nível nacional, mas estamos iniciando atividades em novos mercados no exterior.?
Ele garante que a madeira plástica pode ser manuseada como a natural. Com as mesmas ferramentas ela também pode ser cortada, colada, furada, parafusada, pregada e torneada à vontade. Além disso, tem uma série de outras vantagens. ?É inerte e impermeável, imune a pragas como fungos e cupins, permite ser lavada e não necessita de certificados de fumigação?, enumera Gevaerd. ?Além disso, não precisa de tratamento algum (custo zero de manutenção) e não solta farpas. Sem falar que evita o desmatamento de nossas florestas e uso de madeira de reflorestamento e é uma solução sustentável, por ser um material 100% reciclado e reciclável.?

O que está havendo com o B do Bric


Jim O`Neill
E por falar em cair em desgraça! Parece que foi ontem que muitos se atropelavam para salientar o visível sucesso do Brasil, com alguns ousando dizer que o País alcançaria níveis de crescimento padrão China. Foram dias inebriantes em 2010. Hoje, contra o pano de fundo dos muitos desafios mundiais, o consenso agora fala de um crescimento real do PIB pouco acima de 2,0% em 2012, o que, vindo após os 2,7% de 2011, põe o Brasil numa categoria diferente. Algumas pessoas chegaram a me perguntar se o "B" do Bric é seguro, quase voltando aos primeiros dias de 2001 e 2003, quando as pessoas não acreditavam que "B" pertencesse a circunstâncias tão altaneiras. Circulam também algumas especulações de que o Brasil poderia crescer menos do que os Estados Unidos neste ano, contribuindo para uma sensação de que a história de crescimento brasileiro ou foi exagerada ou está agora fadada a uma considerável decepção.
Permitam-me dar um passo atrás antes de me concentrar nos desafios futuros do Brasil. Na época em que criei a sigla Bric, muitos não haviam percebido as prováveis ramificações positivas das mudanças políticas que precederam a chegada de Lula ao governo e a combinação de uma política fiscal muito melhorada com uma inflação, para os padrões brasileiros, baixa e estável, que permitiriam que o Brasil entrasse num novo clima de estabilidade.
Como eu costumava dizer aos que questionavam o "B" do Brasil, o principal objetivo que o País precisava alcançar era evitar a crise. Muitos achavam que eu estava brincando, mas de uma maneira considerável, foi essa a essência da última década do Brasil. O País não precisou crescer números espetaculares e, ao menos em termos reais, não o fez. A ascensão do Brasil na década de 2000 para superar a Itália e, provavelmente, de maneira temporária, a Grã-Bretanha para se tornar a 6.ª maior economia do mundo em 2011, não decorreu de uma taxa de crescimento do PIB real particularmente forte, mas foi muito influenciada pelo notável fortalecimento do real ante o dólar. No entanto, na medida em que o real permanecia forte, muitos investidores ignoraram os desafios que viriam com isso, e optaram por acreditar que o Brasil poderia surpreender.
O Brasil em 2011 foi o queridinho do Bric, uma posição completamente diferente da que desfrutava 10 anos antes. Em consequência dessas expectativas aumentadas, o Brasil tem hoje mais dificuldade de atender de fato à essas expectativas.
As circunstâncias externas que o Brasil enfrenta precisam ser reconhecidas também. Além da impactante crise na zona do euro - que está engolindo cada vez mais a Espanha -, os números da economia americana continuam medíocres e, claro, existe uma desaceleração na China. As pessoas que estavam acostumadas à sede de commodities da China na última década estão tentando perceber a diferença entre uma China que, embora crescendo a uma taxa mais lenta que na década anterior e se concentrando em qualidade, é mais sustentável do que a que crescia a 10% e estava comprando commodities de quase toda parte.
Como eu também adverti com frequência, não se poderia realmente descrever o grau de mudança do Brasil até experimentarmos um período de preços das commodities mais moderados. Embora houvéssemos testemunhado isso em 2009, após os primeiros efeitos da crise do crédito de 2008, a experiência foi muito breve. Em 2012, com a China se centrando cada vez mais em qualidade e menos em quantidade, talvez estejamos entrando num período de testes mais significativos. Seja como for, isso é um lembrete a países como o Brasil de que fatores externos nem sempre são benignos, e que o destino do Brasil está, em última instância, em suas mãos.
Olhemos agora mais de perto o desempenho do crescimento brasileiro em sua existência como Bric, isto é, de 2001 para cá. Em 2011, o Brasil desapontou com um crescimento de "meros" 2,7%. De 2001 a 2010, o Brasil cresceu numa média em torno de 3,7%, nada espetacular. Como mencionei anteriormente, o País cresceu mais espetacularmente em termos de dólares, mas isso por causa da valorização do real. Durante essa década de crescimento médio de 3,7%, houve três anos de uma decepção bastante notável: 2,7% em 2001; 1,1% em 2002; 1,1% em 2003; e, como se sabe, em 2009, o PIB real encolheu cerca de 0,3%. Contra esse quadro, houve quatro anos de crescimento acima de 5,0%, destacando-se 2010, com 7,5%.
O que tudo isso me diz é que o crescimento brasileiro gira em torno da tendência do momento e, por isso, assim como ele foi muito decepcionante em 2001 e 2002, mesmo que o PIB real cresça "apenas" 2% no corrente ano após o decepcionantes 2,7% de 2011, isso não significa que esta seja a nova tendência. E, para os mercados brasileiros, se esses desenvolvimentos resultarem em expectativas mais realistas, isso não é uma coisa ruim.
Dito isso, nós supusemos - em contraste com os outros três países do Bric - que o crescimento desta década se aceleraria para cerca de 4,5% a 5,0%, de modo que o Brasil precisará de ainda mais anos de crescimento acima de 5,0% para isso ser satisfeito. Ainda não tenho bases reais para mudar nossos pressupostos sobre o crescimento para a década.
O Brasil está numa posição razoavelmente boa em medidas comparáveis de crescimento sustentável e produtividade em relação aos outros países do Bric, embora esteja, como os outros, bem abaixo do melhor da classe no mundo desenvolvido. No Índice de Condições de Crescimento (GES, na sigla em inglês) do Goldman Sachs, o Brasil figura com 5,4 em 10, o que o reúne no alto à China entre os países do Bric, mas bem atrás dos 7,7 da Coreia do Sul. Como já sugeri algumas vezes este ano, o Brasil faria bem em enviar uma delegação para visitar a Coreia e descobrir o que eles conseguiram aprender, e talvez imitá-la.
Em termos de alguns desafios, eu vejo alguns bons sinais. O real perdeu sua devoção obsessiva aos mercados cambiais e, apesar de ainda estar provavelmente forte demais para ajudar a indústria brasileira, ele claramente não é um problema tão grande como foi nos últimos anos.
E, quanto a isso, eu admiro as medidas agressivas do Banco Central para baixar as taxas de juros, o que poderá permitir um ambiente mais favorável ao investimento privado, além de ajudar no desafio da moeda.
O Brasil decepcionou claramente as pessoas nos últimos trimestres, mas tal como a noite segue o dia, assim que os investidores mudarem suas expectativas, eles ficarão surpresos. Sem querer diminuir o desafio que o Brasil precisa superar para atingir a média de 4,5% a 5,0% que supusemos para 2011-2020, uma comparação direta com os dois primeiros anos da década passada indica um forte começo para esta! Com a Copa do Mundo em 2014 e a próxima Olimpíada em 2016, o Brasil ainda vai ficar muito tempo na berlinda.
Recentemente, autoridades brasileiras importantes vieram a Londres como muitas outras de todo o mundo para assistir aos Jogos Olímpicos. Tive a sorte de conversar com algumas delas, e fiquei impressionado com o que ouvi em termos de compromisso como uma série de medidas políticas, que, se forem implementadas, começarão a fazer os analistas pensarem que a taxa de crescimento do Brasil poderá aumentar. Será interessante ver uma nova virada nas expectativas consensuais./ TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK

Mamãe Poderosa



22 de julho de 2012 | 3h 11 Aliás

Marcelo Medeiros - O Estado de S.Paulo

No início da semana o Yahoo contratou Marissa Mayer, de 37 anos, para dirigir suas operações. O fato ganhou destaque não tanto por ela ser mulher, afinal a segunda executiva mais importante do Facebook também é, mas porque Marissa está no sexto mês de gravidez.
Há cada vez mais mulheres ocupando postos-chave nos negócios e na política, o que ocorre porque barreiras no reconhecimento da capacidade de liderança delas vêm sendo rompidas. Chefes de Estado, diretoras de empresa e generais de exército mulheres ainda são minoria, mas não causam mais o assombro que causariam há três décadas.
Entre o fim do assombro e a igualdade há uma grande distância. A notícia de um homem assumindo um cargo importante a poucos meses de ter um filho passaria despercebida. Isso porque a emancipação do trabalho feminino não foi acompanhada de mudanças na divisão do trabalho dentro das famílias, nem no que se considera responsabilidades familiares. Ainda recai sobre as mães a maior parte do cuidado dos filhos e são elas que precisam fazer escolhas entre carreira e família. Ninguém se preocuparia seriamente com o risco de um homem ter seu trabalho afetado por causa de um filho. Nesse aspecto, o mundo mudou bem pouco: a ideia de ser apenas dono de casa para cuidar de uma criança, ainda que por poucos meses, provoca arrepios em qualquer homem, mas é considerada natural entre as mulheres.
Marissa deverá voltar ao trabalho logo após o parto - não apenas porque quer, mas porque pode. É uma mulher rica e poderosa, casada com um executivo igualmente rico e poderoso, e receberá US$ 12 milhões anuais, mais que suficientes para contratar quem cuide de sua família em tempo integral. Marissa não assume cargo tão importante porque as barreiras à maternidade deixaram de existir, mas porque consegue se comportar como um homem: transferindo aos outros boa parte do trabalho de cuidar de crianças.
Esse é um luxo impensável para as mulheres comuns em trabalhos comuns. Para elas, a escolha é entre uma segunda jornada ao chegar em casa e abandonar o emprego. A ideia de que a responsabilidade pelo cuidado das crianças é das mulheres, e de elas devem estar disponíveis para isso, é tão arraigada que poucas de nossas instituições transferem para o espaço público aquilo que se julga dever privado. Basta notar que são poucas as creches gratuitas, não temos escolas em tempo integral, com anos letivos longos, nem horários de trabalho compatíveis com o transporte de crianças da casa à escola.
Em um mundo que aceita bem presidentas, mas tem aversão a donos de casa, o trabalho doméstico ainda é tabu do machismo. Seria ingênuo achar que os homens, em um lampejo de generosidade, passarão a dividir esse trabalho com as companheiras. Seria mais realista entender que a família não é a única instituição capaz de cuidar de crianças e que essa é uma responsabilidade coletiva.
Creches, pré-escolas e escolas em tempo integral podem soar como utopia. Mas talvez ajude a reduzir resistências lembrar que o ensino básico gratuito também já foi considerado utópico. Como qualquer outra, a responsabilidade de cuidar de crianças tem seus custos. Até o momento, temos sido capazes de arcar com eles. Mais exatamente, as mulheres têm sido, e vêm pagando com seu tempo. A questão fundamental é se estamos dispostos a transferir esses custos da esfera privada para a esfera pública, como fazemos com vacinas e segurança.
Tempo livre é algo muito importante. Não à toa uma das exigências de Marissa Meyer em seu contrato é terminar o expediente rigorosamente às 5h30, para que possa todos os dias jantar com a família. Adianta muito pouco ter dinheiro sem ter tempo livre para usufruir o que esse dinheiro pode comprar, assim como aproveitar as coisas que dinheiro algum pode comprar. Um reflexo disso é a preocupação crescente em vários países em conciliar trabalho, lazer e família.
Nossa divisão do tempo, no entanto, é tremendamente injusta. Pesquisas brasileiras de uso do tempo mostram que, depois da entrada massiva das mulheres no mercado de trabalho, quando o tempo de trabalho pago é somado ao tempo de trabalho doméstico, a disponibilidade feminina de tempo livre é muito inferior à masculina, marcadamente entre as classes sociais mais baixas.
A emancipação profissional das mulheres caminha no sentido inverso da liberdade de tempo porque a igualdade obtida no mundo do trabalho não tem contrapartida nem no mundo doméstico, nem nos serviços públicos. Ao contrário do que pode parecer à primeira vista, a privação de tempo livre e a dificuldade em conciliar o trabalho com o resto da vida não são problemas das grandes executivas, mas das mulheres comuns. 
MARCELO MEDEIROS É SOCIÓLOGO, PROFESSOR DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLI
A