quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Declínio americano?, por Daniel Piza



A crise econômica dos EUA, afundados em dívidas que há muito se sabe que um dia eles teriam dificuldades para rolar, faz muita gente apontar um declínio breve do “império” e, em consequência, a tentar adivinhar de quem será este século 21, já que o anterior foi americano. Muitos apontam a China – ou a Ásia em geral – e alguns como o presidente Lula, cuja bravata patriótica soava e soa tão parecida com a do regime militar, chegaram a dizer que seria “o século brasileiro”. No entanto, observando culturas como a brasileira, me pergunto se a influência americana sequer começou a ceder. Assim como vai demorar para os EUA serem ultrapassados no PIB e no IDH por um mesmo país (a China pode ultrapassar no PIB até 2050, dizem, mas vai precisar de muito mais para fazê-lo no IDH), a força sedutora do “american way” também vai se estender bastante.
Para o bem e para o mal; não é disto que se trata. Um exemplo bastante claro está no uso cada vez maior, em ruas e telenovelas, de adjetivos como “popular” e “loser”. Ou seja, uma pessoa que chama atenção dos outros por sua aparência física ou habilidade esportiva e se dá bem com a maioria das outras ganha agora esse qualificativo, como se tais atributos fossem mais importantes num ser humano do que caráter e inteligência. E quem não tem sucesso profissional ou financeiro é tachado de perdedor, como se felicidade se medisse em salário, como se status substituísse vocação; cada vez soa mais estranho que alguém opte por uma carreira mais por gosto do que por retorno. Isso sem entrar em outro adjetivo corrente, “workaholic”, para designar os que acham que vidas familiar e cultural são secundárias, até que se veem tomando pílulas com Coca-Cola para aguentar o estresse.
No campo do consumo do chamado “entretenimento”, então, nem é preciso listar muitos fatos. A TV por assinatura multiplicou os seriados e programas americanos, seguidos fielmente no mundo todo; Hollywood continua a dar as cartas nas bilheterias globais, com sua usina de celebridades que povoam sites e revistas; cantoras como Beyoncé e rappers como Jay Z dominam os videoclips em TV e You Tube; filmes de HQ em cartaz como Capitão América Lanterna Verde insinuam a velha ideologia do heroísmo que livra Nova York e outras cidades de vilões com tonalidades nazistas ou comunistas ou terroristas; e até para rirmos das manias americanas, de sua mentalidade consumista, precisamos de um americano como Woody Allen. E o que dizer do admirável mundo novo da tecnologia? Bill Gates, Steve Jobs e Mark Zuckerberg estão muito acima da manada forasteira – e que eu saiba a internet fala inglês, não chinês.
Talvez alguém argumente que a cultura americana não perdeu influência em termos de quantidade, de comportamentos massificados, mas em termos de qualidade, de modelos refinados. Por um bom tempo, bebendo na fonte europeia, a cultura americana buscou padrões cada vez mais elevados e produziu escritores como Henry James, Scott Fitzgerald, Saul Bellow (irrelevante que tenha nascido no Canadá); importou cientistas como Einstein e cineastas como Hitchcock; produziu movimentos na pintura, como o expressionismo abstrato, e na música, como o jazz, o bebop e o rock, que mudaram o mundo a fundo; também gerou pensadores, metafísicos ou pragmáticos (de Peirce a Rorty), e espalhou fundações e museus indispensáveis. Nomes e instituições já não surgem como antigamente nos EUA. Mas alguém me diga: e onde surgem?
Sim, também sonho com um mundo mais multipolar, o que significaria uma América menos hegemônica, e, sim, também me canso dessa cultura americana de arte enlatada e mente dicotômica, que com seus apelos emotivos e “power points” afasta muitas pessoas de outros conteúdos e formas de pensamento e estética. Não nego que algumas coisas estejam mudando e que isso seja bom, que os tempos de colonialismo bélico possam estar passando. Mas acho desonesto ignorar a presença ainda tão forte dos produtos e atitudes dos EUA, tantas vezes imitados até por quem diz odiá-los, e confundir uma fase crítica com um fracasso estrutural. Talvez o fato de o século 21 não vir a ter um “dono” seja a melhor notícia, mas, por ora, um deles ainda serão os EUA por um bom tempo. Como diria Mark Twain, os boatos sobre o declínio americano são exagerados.

Reclamações – João Ubaldo Ribeiro


Acabo de passar os olhos nos jornais e, naturalmente, li muito sobre corrupção, mas bem menos que em dias anteriores. É natural, não só foi feita uma faxina, ainda que meio estranha, como, principalmente, o assunto começa a ficar velho. Da mesma forma que em relação a um produto qualquer, cansamos do velho e queremos novidades. O noticiarista tem de matar um leão por dia, se quiser continuar tendo leitores. E aí vem esse papo de corrupção, espocam notícias e fofocas irrequietas e todo mundo entra no bonde, mas não completa a viagem, que acaba ficando chata mesmo, de tão repetitiva.

Isso se deve em grande parte ao fato de não acontecer nada com os corruptos, a não ser um comentário de um jornal ou outro. Até quando parece que pegaram mesmo um corrupto, é foro especial pra cá, é recurso de todo tipo pra lá e o fato é que o bicho continua próspero, meio gordote e feliz por nunca ter trabalhado e ganhar uma bela aposentadoria de deputado, para não falar nas “colocações” de parentes, protegidos e assemelhados.

Mesmo que houvesse punição, o Brasil é muito avaro com elas. De vez em quando se anuncia que Fulano foi condenado a, sei lá, seis anos de cadeia, mas logo se descobre que, se valendo disso e daquilo, estará em regime semiaberto dentro de alguns meses e praticamente solto. Outro dia, muitos de vocês devem ter visto na TV um rapaz sorridente confessar numa delegacia de polícia que foi coautor ou cúmplice de um assassinato. Mas, como o próprio delegado explicou, ele se apresentou espontaneamente, era réu primário, patati-patatá e foi imediatamente solto, só faltando um abraço no delegado e um aceno para as câmeras. O mesmo ocorre com o indivíduo que enche a cara, pega o carro, faz uma série de barbeiragens embriagadas e mata quatro pessoas de uma vez. Réu primário, coisa e tal, paga fiança, responde ao processo em liberdade e depois lhe dão as colheres de chá legais que lhe permitirão matar mais quatro ou cinco daí a uns dois anos.

Apesar de algumas mudanças recentes, a tendência tem sido procurar as “causas” do comportamento antissocial, o que acaba por levar à conclusão de que ninguém é culpado ou responsável por nada. O culpado é a causa, não o agente do delito. E a função da pena é a “recuperação” do condenado, mesmo por crimes muito graves, sua “reinserção na sociedade”. Creio que continua politicamente correto pensar assim, mas já há especialistas que acham que essa “recuperação” é no mais das vezes falaciosa. E a severidade da punição tem passado a ser vista como básica, mesmo para a obtenção de alguns casos de recuperação. Mas, no Brasil, as penas são leves e suavizáveis a pretexto de praticamente qualquer coisa. Cala-te, boca, mas não posso evitar a suposição, oxalá falsa, de que, com tanto legislador pendurado numa ilegalidadezinha, seria uma imprudência da parte deles estabelecer penas pesadas para — quem sabe quando o Cão atenta? — um delito pelo qual vários ou muitos deles mesmos podem vir a ser condenados.

A repercussão do assassinato da juíza Patrícia Acióli foi vergonhosa para quem quer que seja cioso das instituições republicanas e compreenda a gravidade desse ato. O fato teve e ainda está tendo cobertura ampla. Mas nenhum governante chamou a atenção para a agressão às instituições assim cometida, ao que parece nenhuma autoridade foi ao sepultamento da juíza e tudo o que ouvimos dessas autoridades foram as habituais declarações de lamentável isso e aquilo e providência disso e daquilo. Agora descobre-se que as balas usadas para matar a juíza eram munição da Polícia Militar, certamente deflagradas por armas também da Polícia Militar. Enfim, descobre-se que agentes da lei mataram uma magistrada e não há a indignação, o clamor e o vigor de reação com que um fato dessa magnitude exigiria e que ajudaria na sua avaliação adequada por parte da população atingida, ou seja, nós todos, de uma forma ou de outra. Aqui é praticamente apenas mais um simples fato policial — lamentável etc. Claro que a comparação é falha, mas imagino um juiz americano fuzilado com armas e munições de policiais. Aqui é tratado como ocorrência normal e vem o medo de que se torne corriqueiro.

Mais um medo, entre todos com que aprendemos a conviver e já nem notamos. Apareceu até uma novidade, o medo da ambulância. No Rio foi descoberto um ramo de comércio que já deve estar implantado também em outras cidades, considerando a rapidez com que essas coisas se espalham, pois o brasileiro é muito observador e atento a novas descobertas. Agora o sujeito passa mal — como sempre em plena madrugada — e aí a candidata a viúva telefona aflita para uma ambulância. Os operadores da ambulância então levam o doente, não ao hospital que ele quer ou que mais convém a seu estado. Levam o infeliz para o hospital ou clínica que os remunerarem de acordo com uma complexa tabela. A clínica está sem freguesia — talvez porque hajam morrido todos os seus pacientes — e aí paga um modesto estipêndio aos condutores da ambulância, para refazer a clientela. Claro, pensei logo na possibilidade de uma clínica dessas contratar transplantes, caso em que o paciente acordaria sem um rim, num hospital desconhecido, que ainda cobraria pela intervenção. Talvez vocês achem isto um exagero, mas puxem pela memória, porque já devem ter lido sobre coisas piores.

Escrevo sobre estes assuntos e penso novamente na corrupção. Há quem considere a corrupção um problema político menor ou que se trata de uma questão de moralismo. Não é nem uma coisa nem outra, é por causa dela que enfrentamos os problemas que mencionei e tantos outros com que também sofremos. E ter senso de moralidade distingue os homens dos bichos.

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Caminhar é a atividade mais importante nas cidades


“Agora é a vez do pedestre”, afirma o diretor de desenho urbano da Prefeitura de Nova York, Alexandros Washburn.
A Folha conversou com o arquiteto durante o 1º Congresso Internacional de Habitação e Urbanismo, promovido pela Prefeitura de São Paulo em junho.
Ele critica o modelo de urbanização com prédios recuados e muros alto, comum em São Paulo.
Folha – São Paulo pretende adensar as áreas centrais para aproximar as pessoas dos empregos e da infraestrutura que já existe. A cidade não vai se tornar desagradável, cheia de prédios altos?
Alexandros Washburn -
 Não é agradável caminhar pela Quinta avenida? Não há nada de errado com prédios altos. A questão é como esses prédios se encontram com a rua. Aqui você tem uma regra que diz que os prédios devem ser recuados. Mas aí o que você tem é rua fechada com muros e grades.
E como deve ser?
O muro da rua tem que ser feito do tecido dos prédios, com lojas, janelas nos primeiros andares. Você tem que sentir que as extremidades da rua estão abertas para você. E que as pessoas estão olhando para você.
É preciso projetar desde a linha de um prédio à do outro. Em vez de recuar o prédio cinco metros, construir direto na calçada. Deixa uns três metros livres na calçada. E aí põe uma árvore, depois a guia. E então decide: Vou pôr uma ciclovia ou vou pôr os carros para estacionar aqui?
Alguém precisa desenhar isso. Hoje, está por conta própria.
Nova York enfrentou resistência dos moradores para implementar a ciclovia do East Side?
Tem havido um pouco de resistência. Mas isso é parte do processo de compreensão de como a mistura da via com as bicicletas funciona.
Em minha perspectiva, o pedestre é o mais importante. Caminhar é a atividade mais importante na cidade. Tanto pelo lado cultural como pela sustentabilidade.
Nova York tem muita sorte por lutar por ótimas ruas. Você conhece a música “Empire State of Mind”, da Alicia Keys? É sobre caminhar em Nova York. Tem outra do Frank Sinatra. As ruas de Nova York são tão boas para andar que as pessoas escrevem músicas sobre isso.
O que torna a cidade “caminhável”?
Entre os edifícios, há uma quantidade limitada de metros. Então é preciso decidir quantos metros para caminhar, quantos metros para árvores, quantos metros para bicicletas, para carros. Decidir que o pedestre é o foco é uma decisão política importante para a cidade.
É por isso que Nova York é uma cidade vibrante. Caminhar na rua em Nova York é minha experiência favorita. O espaço público é muito importante para construir confiança entre as pessoas de todas as classes e etnias.
Como colocar o pedestre em primeiro lugar em uma cidade projetada para carros, como São Paulo?
Cidades são projetos de longo prazo. Os carros estão em primeiro lugar há 50 anos. Agora é a vez do pedestre. É uma questão de equilíbrio, não de eliminação.
Quando você toma a decisão de colocar o pedestre em primeiro lugar, você adota um ponto de vista. Você vê os problemas através dos olhos de um cidadão caminhando pela rua. Não são soluções mutuamente exclusivas.
Por exemplo, como pedestre, é bom ter carros parados paralelamente à calçada. Eles formam uma barreira ao movimento da rua. Carros e pessoas podem andar juntos, mas a questão é perguntar primeiro ao pedestre.
É possível transformar o Minhocão em um parque suspenso, como o High Line, de Nova York?
A comparação entre o Minhocão e o High Line é difícil. Primeiro, o Minhocão não é uma linha de trem abandonada, como o High Line. O Minhocão tem uma função de transporte ativa.
Acho que o objetivo para o Minhocão pode ser modificar essa função de transporte, não eliminá-la, e fazê-la servir melhor a vizinhança ao redor dele.
Mas acho que não se deve chegar a ideias precipitadas. É preciso um debate amplo entre comunidade e especialistas para definir qual é o objetivo social, econômico e ambiental da transformação do Minhocão. No momento, me parece que desenhar a pergunta é mais importante do que fazer um projeto.
Há semelhanças entre a revitalização da área portuária de Nova York e a Nova Luz?
Diferentemente do que fizemos com a região portuária, a Nova Luz tem o potencial de ser uma vizinhança completa: tem uma ótima estação de trem, um ótimo parque, apartamentos, escritórios, lojas. E tem uma localização estratégica, próxima ao centro. A estrutura está toda lá para que se torne um bairro excelente.
Para mim, o sucesso da Nova Luz está nos detalhes. Primeiro: como os novos prédios vão se encontrar com a rua? A calçada contribui para que exista um lugar bonito para caminhar? Os estabelecimentos estão abertos para a calçada para reforçar a vitalidade do local para o pedestre? E qual é a mistura do que já existe e do novo?
Como é a participação nos projetos de Nova York?
Nós temos uma forma de ouvir as pessoas, a “Uniform Land Use Review Process”. Está na lei. Fazemos reuniões, ouvimos.
Assim, é possível pegar uma ideia da comunidade, transformá-la em uma política, que é então financiada pelo setor privado. E também um pouco pelo governo.
Um projeto que resultou desse método foi o High Line, que mudou o bairro ao redor.
Rudolph Giuliani [ex-prefeito de Nova York] já tinha assinado uma ordem para demoli-lo. Aí, dois caras organizaram um grupo chamado Amigos do High Line. Eles organizaram uma competição de ideias. Para qualquer ideia dar certo, política, financiamento e projeto têm de estar juntos.
As pessoas sempre se interessam pela mudança urbana?
Na área portuária, que é a área próxima de onde houve o ataque ao World Trade Center, nós nos engajamos com o conselho comunitário.
Mostrávamos os desenhos, argumentávamos, refazíamos. Tem muito a ver com diálogo. E às vezes pode ser muito emocional, às vezes técnico.
No final, todo mundo quis fazer com que a margem do rio ficasse melhor.
Esse é um valor importante para o desenvolvimento urbano: fazer com que o projeto pertença não só a quem o construiu, mas às pessoas que moram ali. A comunidade precisa sentir que ela quer que o projeto aconteça.
E como está a revitalização da zona portuária?
Está pronta. Você já pode ir lá e passear nela. É muito importante entender que a janela de oportunidades se abre por um tempo curto. Você tem que saber o que quer e fazer enquanto pode.
Quando a mudança vem, é de uma vez. E aí para. São Paulo é muito empolgante para mim. Me parece ser uma cidade à beira da mudança. Não tanto fisicamente, mas de ponto de vista. Quando essa mudança de perspectiva acontece é que a cidade muda fisicamente.
Você falou de ideias que surgiram da população. E quando o processo é inverso?
Tem um ditado em inglês, “o sucesso tem muitos pais”. Você está sempre procurando ideias que sejam bem-sucedidas. Muitas não vão a lugar nenhum. As que dão certo são as que têm ressonância. E é isso que estamos buscando. Dá para descobrir rápido. É como quando você toca a tecla certa do piano.