quarta-feira, 10 de abril de 2024

José Manuel Diogo - A Terra é plana, li no X, FSP

 

— A Terra é plana, li no X.
— Não diga isso, a Terra não é plana.
— O dono do X diz que eu posso dizer o que eu quiser: mesmo, "a Terra é plana".
— Mas ela não é plana.
— Tem muita gente diz que é!
— Quem diz isso?
— Muita gente no X.

Qualquer imbecilidade pode chegar à qualidade de "ideia fraturante" logo que exista alguém disposto a ouvi-la. E a circulação descontrolada dessas mentiras pode mesmo viralizar se o imbecil e a ideia compartilharem uma plataforma onde mais imbecis podem dizer o que lhes apetece, como…

O chocolate é feito de grãos de areia. Os gatos podem prever o futuro. As bananas são um tipo de peixe que se adapta à vida em terra. Há menos acidentes em lugares onde a Terra é plana. A Terra é um disco sustentado por quatro elefantes gigantes. A Terra é plana, li no X.

Qualquer ideia, mesmo que amplamente desmentida pela ciência, ganha força e audiência quando é repetida à exaustão, sobretudo em algumas comunidades online.

Um estudo publicado na revista Science em 2018 (leia aqui, em inglês) revelou que as notícias falsas têm 70% mais chances de serem "retuitadas" do que as verdadeiras, e que esse fenômeno é impulsionado principalmente por pessoas, não por bots.

As razões para essa rápida disseminação incluem o fato de que elas costumam ser mais surpreendentes, provocativas ou emocionalmente intensas do que simples notícias verdadeiras, o que faz com que as pessoas tenham mais probabilidade de compartilhá-las, muitas vezes sem verificar sua veracidade.

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É pensando nisso (e em nada mais) que o proprietário do X defende que os usuários têm o direito de expressar suas opiniões, independentemente da sua plausibilidade ou mesmo veracidade. Porque o tráfego que elas geram, para ele, é dinheiro.

Elon Musk, proprietário da rede social X, em evento em Paris, em 2023 - Gonzalo Fuentes - 16.jun.23/Reuters

Como sempre aconteceu, quando uma nova tecnologia surge, as mudanças que ela traz para a sociedade nunca são imediatamente regulamentadas, o que inevitavelmente leva a um período de incerteza legal devido à falta de legislação específica.

A questão torna-se ainda mais complexa quando consideramos empresários globais, como Elon Musk, que podem influenciar a opinião pública e se beneficiar de conflitos sociais. Defender as democracias desses indivíduos, que utilizam as divisões sociais para lucro próprio, é um dos maiores desafios da humanidade, tão relevante como proteger o planeta das alterações climáticas.

Dirão os fundamentalistas que a liberdade de expressão é um direito inalienável, mas hoje é crucial que haja limites para evitar a disseminação de informações falsas. Mesmo que a imposição desses limites nos pareça um atropelo intolerável à democracia.

A Terra é redonda. Ponto final.


Elon Musk, o bilionário retrógrado, Elio Gaspari, FSP

 Elon Musk é um visionário bem-sucedido. Do nada, virou um dos homens mais ricos do mundo, acreditando no carro elétrico e em variantes da revolução tecnológica. Não inovou, como Thomas Edison, Henry Ford ou Steve Jobs. Prosperou com invenções alheias, como Cornelius Vanderbilt e Bill Gates, o que não é pouca coisa. À diferença de outros magnatas americanos, decidiu pôr um pé na História com a arrogância chinfrim do filibusteiro William Walker, que invadiu a Nicarágua com uma tropa de mercenários e acabou fuzilado em 1860.

Musk decidiu desafiar o Supremo Tribunal Federal, descumprindo na sua plataforma X as decisões da Justiça brasileira. O ministro Alexandre de Moraes revidou incluindo-o no inquérito que investiga as milícias digitais.

O CEO do X (ex-Twitter), Elon Musk, em simpósio em Cracóvia, na Polônia
O CEO do X (ex-Twitter), Elon Musk, em simpósio em Cracóvia, na Polônia - Sergei Gapon - 22.jan.24/AFP

Há alguma fanfarronice nas bandeiras políticas hasteadas por Musk. É um homem de direita e flertou com Jair Bolsonaro. Durante a pandemia, namorou a cloroquina. Tropeçou com falas antissemitas, mas Henry Ford também caiu nessa. Musk é uma versão tardia do filibusteiro Walker porque em julho de 2020 reconheceu publicamente que apoiou o golpe contra o presidente boliviano Evo Morales:

"Nós vamos dar golpe em quem quisermos. Lidem com isso."

Num caso raro de sinceridade, Musk admitiu que ajudou o golpe porque tinha interesse em explorar o lítio boliviano, matéria-prima para as baterias de seus automóveis. Faz tempo que empresários americanos apoiavam golpes para proteger seus bananais; Musk quer golpes para garantir o fornecimento de lítio.

Musk não defende a liberdade de expressão. Se essa bandeira fosse do seu agrado, ele teria desafiado a China de Xi Jinping. Ele gosta de holofotes e, por algum motivo, resolveu encrencar com a Justiça brasileira. Deu um mau passo, pois associou a defesa das plataformas de redes sociais ao golpismo explícito: "Lidem com isso."

Lidando com isso, o presidente do SenadoRodrigo Pacheco, pediu ao seu colega Arthur Lira que saia de cima do projeto que regula as plataformas digitais. Votado no Senado, ele dorme há três anos na Câmara.

As big techs lutam contra essa regulamentação associando leviandade à arrogância. Musk pode ter ajudado a destravar o debate. Junto com ele virão inevitavelmente propostas disfarçadas de censura. Uma agência do governo já se ofereceu para o papel de fiscal das redes. É meio caminho para a censura, mas deve-se reconhecer que em janeiro de 2023, as redes sociais eram usadas para convocar golpistas para a "Festa da Selma", explicitamente para incentivar a invasão do Palácio do Planalto. Centenas de pessoas foram presas, mas nenhum diretor de big tech viu-se responsabilizado.

Se a "Festa da Selma" tivesse prevalecido, Elon Musk poderia ter dito: "Nós vamos dar golpe em quem quisermos."

O doutor levou água para o monjolo de quem quer regulamentar as redes no interesse do governo. Pena, porque no limite, entre um fanfarrão como Musk e um comissário de olho nas limitações da liberdade de expressão, fortaleceu-se o comissário.

Nem todo defensor da liberdade das redes é um golpista como Elon Musk, e nem todo golpista está de olho apenas nos próprios negócios. O doutor, como os americanos que azucrinaram a vida dos latino-americanos no fim do século 19 e início do 20, é um golpista tardio, exibicionista primitivo.

Deirdre Nansen McCloskey - Hoje vemos 'problemas sociais' por toda parte, FSP

 A expressão "problema social" não teria sentido para as pessoas antes da era moderna liberal ou estatista.

Nos anos 1700 e antes, se você tivesse um problema, como pobreza, escravidão ou poluição, a resposta que receberia seria: "Do que você está reclamando? Se você for uma pessoa boa, mesmo pobre, terá uma vida infinita no céu. Então carregue a sua cruz".

Entretanto, nos últimos dois séculos, o "problema social" explodiu. Hoje vemos problemas sociais por toda parte. A ruptura da família. O mau comportamento dos jovens. O último furacão.

Um dos primeiros problemas sociais a chamar a atenção, tanto no seu país como no meu, foi a escravatura.

Anteriormente, ninguém pensava na escravatura, enquanto sistema, como um "problema". Se você fosse escravizado, o problema era seu, aquele era o destino dado por Deus. Muito ruim. Mas o sistema em si não era criticado. Afinal, como poderemos ter luxos se não tivermos escravos para fornecê-los?

navio negreiro
Planta de navio negreiro, que trazia pessoas da África para escravizar na América - Divulgação

O terceiro presidente norte-americano, Thomas Jefferson (1743-1826), famoso por ter feito a declaração de que "Todos os homens são criados iguais", manteve ele mesmo seus escravos, incluindo seus próprios filhos com uma escrava, mesmo após a sua morte. O presidente dizia que odiava aquele sistema. Mas ele queria os seus vinhos franceses, e de que outra maneira poderia consegui-los?

Ah, Tom...

Eu disse que isso mudou em nossa "era liberal ou estatista".

Na visão liberal existente no século 18, o "Grande Problema" era a hierarquia tradicional herdada. A velha regra era "Os reis sempre ganham e as mulheres sempre perdem". Qualquer tipo de liberal no sentido europeu quer derrubar essa regra e substituí-la por uma regra de igualdade entre todos os homens —e mulheres, querido Tom.

A maneira de conseguir chegar a isso é retirando os reis do caminho. Dê permissão para as pessoas, uma igualdade de permissão, deixando uma mulher participar da disputa para se tornar, digamos, piloto de avião.

Como Moisés e Arão disseram ao faraó sobre os judeus escravizados: "Deixe o meu povo ir".

O estatista moderno e esclarecido desde o século 18, em contraste, não quer igualdade de permissão. Ele anseia por fazer com que todos comecem a partir da mesma linha na corrida da vida, ou mesmo que todos alcancem a linha de chegada ao mesmo tempo.

Oh-oh...

Ao contrário da igualdade de permissão, nenhuma das duas opções é possível.


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves