segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

A inepta política nacional de drogas, FSP

 Thiago Colnago Cabral

Juiz da 3ª Vara de Tóxicos, Organizações Criminosas e Lavagem de Capitais de Belo Horizonte

Foi publicado recentemente o "Global Drug Policy Index", ranking mundial do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas, abrangendo 30 países de todos os continentes, quanto à política de drogas. O trabalho, coordenado por Helen Clark, ex-primeira-ministra da Nova Zelândia, reserva ao Brasil a pior classificação dentre os países avaliados, atrás de México, Colômbia, Afeganistão Indonésia, o que exalta a importância de seu comprometido exame pela sociedade brasileira.

A classificação está fundada em cinco critérios, referentes ao cabimento de medidas extremas de julgamento, especificamente com aplicação de penas de morte ou perpétuas; à proporcionalidade da resposta da Justiça criminal; às políticas de tratamento e redução de danos; ao controle de medicamentos de acesso restrito; e às medidas de desenvolvimento nacional.

Policiais do Rio de Janeiro durante operação policial contra supostos traficantes de drogas na favela do Jacarezinho - Mauro Pimentel - 21.abr.21/AFP

Pesou substancialmente na classificação do Brasil a consideração de que o país vivencia endemia de execuções sumárias "em nome do combate ao tráfico" —tal qual se atribui ao México, a qual é equiparada aos regimes indonésio, indiano e tailandês de imposição de penas de morte.

O estudo denomina tais ações estatais como sentenças extremas ou violações graves a direitos fundamentais, relacionando-as diretamente à circunstância da militarização enquanto elemento da política de tratamento às drogas.

Neste pormenor reside outro aspecto importante da realidade nacional com a qual o Brasil se vê sempre confrontado, especialmente no cenário internacional: as vítimas fatais de ações policiais.

De tempos em tempos a sociedade brasileira é confrontada com ações dessa natureza, amplamente divulgadas, como nas muitas chacinas noticiadas pela grande imprensa; entretanto não há como negar que tais ocorrências são, ainda que em menor magnitude, relativamente frequentes no país.

Outro critério de avaliação bastante prejudicial ao Brasil foi o que se denominou desproporcionalidade no tratamento judiciário, fundada em violações a direitos humanos representadas pelo uso excessivo da força em nome do combate aos entorpecentes. Prisões provisórias prolongadas e amplamente empregadas foram diagnosticadas no estudo internacional como marcas do Judiciário brasileiro.

Com fundamento nesses critérios, o Brasil é pessimamente avaliado quanto à política de redução de danos, medidas de tratamento ao uso abusivo de entorpecentes que acabam por evitar incursões criminais deles decorrentes. A teor do ranking, tais políticas são insignificantes no nosso país. É justamente neste ponto que se coloca a maior importância do estudo para o Brasil: fazer pensar sobre a estruturação da política de drogas no país.

Não há como deixar de perceber que, para além dos grandes traficantes e das organizações estruturadas de narcotráfico e lavagem de capitais, a estrutura do tráfico compreende um sem número de desvalidos, no mais das vezes sem qualquer oportunidade econômica ou social. São eles um universo infindável de mão de obra barata e plenamente substituível na estrutura do narcotráfico.

Para estes, muitas das vezes a promessa do ganho fácil, ainda que se restrinja à diminuta porção de entorpecentes, se afigura muito sedutora, senão irresistível.

Quanto a esse grupo, a política nacional se restringe à repressão policial, em combate que no mais das vezes conduz ao encarceramento de integrantes de menor importância na estrutura delitiva e, sobretudo, estabelece verdadeiro empecilho para que agentes públicos se dediquem, com maior vagar, às estruturas de poder das organizações criminosas.

Independentemente das concepções de cada um quanto à descriminalização do uso de determinados entorpecentes, a adoção nacional de uma efetiva política de redução de danos —com estruturados serviços de acolhimento e tratamento, aliada a políticas públicas de proteção social— é o único instrumento eficiente no tratamento da questão.

Enquanto isso não for objeto de reconhecimento e, principalmente, de mudança da realidade nacional, continuaremos morrendo e matando, encarcerando grandes parcelas da nossa juventude em vão, sem atingir estruturalmente as organizações dedicadas ao narcotráfico.

TENDÊNCIAS / DEBATES

Marcus André Melo Verdades privadas, mentiras públicas, FSP

 Em 6/10/1989, Erich Honecker, o secretário geral do PC da República Democrática Alemã (RDA), presidiu a celebração de 40 anos do regime, em uma enorme e pomposa cerimônia, simbolizando a força do regime e sua estabilidade. Doze dias depois, demitiu-se. Decorridos 20 dias, o muro de Berlim seria derrubado. Menos de um ano depois, a RDA não existiria mais, dando lugar ao surgimento da nova Alemanha unificada.

Comemoração dos 10 anos da queda do Muro de Berlim: multidão de alemães sobre o Muro de Berlim em 1989, quando a barreira entre os lados ocidental e oriental da Alemanha caiu. - 9.nov.1989 / AFP

Processos semelhantes ocorreram na transição de regimes autoritários para democracias (ex. Primavera Árabe, 2011). Seu traço distintivo é a rapidez. Nenhum analista os havia antecipado malgrado sua enorme importância histórica: havia poucos sinais de mobilização ativa na população ou na opinião pública que pudessem sugerir o que estava para vir.

Timur Kuran foi o primeiro a analisar o fenômeno rigorosamente. https://www.hup.harvard.edu/catalog.php?isbn=9780674707580 Sob o autoritarismo, argumentava, há custos altos para as pessoas manifestarem sua insatisfação. Apenas no âmbito privado essa informação está disponível. Há assim uma assimetria de informação em relação à prevalência da insatisfação coletiva. O que explica a estabilidade e posterior resposta coletiva surpreendente.

É um equilíbrio instável cujo desenlace é o comportamento de manada a partir de "cascatas informacionais". Ele explica a resiliência de estruturas que são rejeitadas coletivamente. Kuran examinou o racismo nos EUA, o sistema de castas da Índia e o apartheid na África do Sul.

O que ele chamou de falsificação de preferências é fenômeno universal em qualquer situação em que estejam presentes custos envolvidos em revelá-la. Nas democracias, o custo pode assumir várias formas: sanções informais, perda de acesso a emprego e oportunidades, e, hoje, cancelamentos. Mas Kuran escreveu nos anos1990, e não poderia imaginar a mudança trazida pelas redes sociais que contribuíram, por outro lado, para quebrar assimetrias de informação.

Na literatura de opinião pública um fenômeno parecido é conhecido como o viés de desejabilidade social. Nas pesquisas de opinião, as respostas expressam a resposta esperada pelo interlocutor ou grupo de referência, mais que a genuína.

No Brasil, pós 1988, há um segmento significativo do eleitorado que não adquirira visibilidade até a chegada de Bolsonaro. Timothy Power https://www.psupress.org/books/titles/0-271-02009-1.html referiu-se a ele como a "direita envergonhada".

Manifestantes bolsonaristas atacam ministros do STF - Pedro Ladeira -21.jun.20/Folhapress

Hoje, a real extensão do antipetismo e do antibolsonarismo é difícil de estimar devido ao fenômeno da falsificação de preferências, que é magnificado devido à forte polarização. O mesmo vale para o apoio a candidaturas como a de Moro. Pode-se esperar, portanto, volatilidade maior nos movimentos de opinião pública para além dos efeitos próprios da campanha eleitoral.


Ruy Castro - Puro nonsense, FSP (definitivo)

 

Um dos contos nonsense de Woody Allen, de quando ele escrevia contos para a revista The New Yorker e os reunia em livros nos anos 70, trata de um homem maduro, solteirão, inútil, que sempre morou com a mãe e era por esta tratado como um idiota. Um dia, para massacrá-lo de vez, ela lhe revelou: "E quer saber de uma coisa? Você é anão. Eu e seu pai montamos esta casa na sua escala para você nunca perceber!".

A ideia de armar um pequeno mundo para uma pessoa não saber que a realidade lá fora é outra me ocorreu ao ler sobre uma nova biografia do ditador português Oliveira Salazar (1889-1970), que por 40 anos condenou Portugal ao atraso, à asfixia, à pobreza e ao desprezo internacional. Trata-se de "O Ditador que Morreu Duas Vezes", do italiano Marco Ferrari, com uma novidade em relação a outras biografias de Salazar que conheço.

O ditador português, Oliveira Salazar - 24.jun.1960/AFP

Como se sabe, em agosto de 1969, aos 80 anos e sem a menor intenção de pedir o boné, Salazar sofreu um acidente doméstico. Foi sentar-se a uma cadeira de diretor para ler seu jornal favorito, o Diário de Noticias, o que mais se acanalhava para agradá-lo. A cadeira virou, Salazar caiu para trás e bateu com a nuca no chão. Sofreu uma hemorragia intracraniana, não descoberta de imediato. Mas o caso se agravou, ele teve de ser operado e ficou inconsciente. Certo de que Salazar morreria e o poder não podia vagar, seu governo o substituiu por Marcelo Caetano, velho aliado.

Só que Salazar não morreu. Voltou a si e, para terror de seus homens, resistiu por 11 meses, razoavelmente lúcido. Já não governava, mas não podia saber disso, donde seus ministros o visitavam para "discutir" com ele os problemas. E —esta a novidade— toda manhã Augusto de Castro, diretor do Diário de Notícias, ia levar-lhe o jornal.

Um exemplar único, rodado só para ele, com as notícias alteradas omitindo seu sucessor, para Salazar pensar que continuava ditador. Era Woody Allen na veia.