É alentador constatar que a Justiça tenta enfim traçar uma linha vermelha para ovandalismo institucional de Bolsonaro; é exasperante verificar que o presidente não se intimida e continua com seus ataques. Adoraria dizer que o Judiciário triunfará, mas não estou seguro disso.
O problema é que, no âmbito penal, a Justiça pode pouco contra o chefe do Executivo. Se entrarem numa disputa tipo cabo de guerra, o presidente ganha. O pecado original está na Constituição, mais especificamente no § 4 do artigo 86, que determina que o presidente, na vigência de seu mandato, não seja responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções.
A linguagem asséptica do texto constitucional esconde o alcance do dispositivo, que, na interpretação que lhe vem sendo dada, estabelece que o presidente da República não pode ser preso nem se esquartejar um desafeto ao vivo na televisão. Esse seria um ato estranho a suas funções, pelo qual ele só responderia ao término do mandato. Se o ato não for estranho a suas funções —imaginemos corrupção ou prevaricação—, a situação melhora, mas não muito. Nesse caso, o mandatário pode ser responsabilizado, mas só se a Câmara autorizar a abertura do processo. E precisa fazê-lo por maioria de 2/3.
A Constituição não proíbe a adoção de medidas cautelares diferentes da prisão —uma ordem para que ele não se pronuncie sobre voto impresso, por exemplo. Mas, se ele não acatar, não há muito que se possa fazer, já que a desobediência dificilmente vira processo. Na esfera eleitoral, a rota é menos pedregosa. O TSE tem em tese envergadura para torná-lo inelegível no próximo pleito, embora eu ache difícil que se chegue a esse ponto.
Esquecendo Bolsonaro, penso que é preciso calibrar melhor as imunidades presidenciais. Nosso sistema é herança de tempos em que figuras presidenciais preferiam cometer suicídio a ver-se investigadas por um crime. Não é mais o caso.
A Covid-19 é uma doença potencialmente letal e que causa enorme destruição econômica, além de ser altamente disruptiva para nossas vidas. Até o fim do ano passado, isso era uma fatalidade. Vieram, então, as vacinas. Em vários países desenvolvidos, os imunizantes já estão disponíveis para todos os adultos e adolescentes que desejem tomá-los. Bastam duas picadas para reduzir substancialmente o risco de morte pela moléstia. Avacinaçãotambém ajuda a recuperar a economia e permite recobrar alguns aspectos da vida pré-pandêmica. Não obstante, fatias substanciais das populações de alguns desses países recusam a injeção.
"Duas coisas são infinitas: o universo e a estupidez humana. Mas, em relação ao universo, ainda não tenho certeza absoluta". A frase, de Albert Einstein, captura a essência da chamada hesitação vacinal. De um ponto de vista puramente darwiniano, poderíamos interpretar a atitude dos cidadãos recalcitrantes como uma contribuição involuntária ao aprimoramento da espécie, mas não é tão simples.
A vacinação tem efeitos positivos não só para o indivíduo mas também para a coletividade. Quando porções significativas de uma comunidade deixam de imunizar-se, o vírus permanece em circulação, colocando em risco as pessoas que não podem vacinar-se ou não desenvolvem uma boa imunidade após a inoculação, além de aumentar a probabilidade de surgirem variantes do vírus com escape vacinal.
Faz sentido, portanto, que as nações em que a hesitação é mais forte adotem diferentes blends de incentivos (dias de folga, cerveja grátis, prêmios em dinheiro) e sanções (demissão, limitação a atividades) para diminuir a resistência. Essas medidas devem funcionar, mas só parcialmente.
No Brasil, a julgar pelas pesquisas, a hesitação é pequena. Mas isso não significa que a estupidez inexista por aqui. Ela apenas se manifesta de outras formas. Nós, afinal, elegemos Bolsonaro.
O Brasil poderia incluir quase uma nova Belo Monte no sistema elétrico nacional apenas com obras de melhorias em algumas hidrelétricas existentes. Atualmente, o País tem um parque hídrico de 109 mil megawatts (MW), composto por 1.495 usinas, muitas delas com idade superior a 50 anos. Se em 51 delas houvesse troca e renovação de alguns equipamentos, a expansão na capacidade instalada poderia chegar a 10 mil MW, segundo um estudo da Empresa de Pesquisa Energética (EPE). Ou seja, o potencial em todo o parque pode ser ainda maior.
Chamado de repotenciação, o processo implica substituição de peças, reforma de equipamentos ou instalação de novas turbinas para aumentar a potência ou melhorar a eficiência da usina. Em tempos de crise energética, com risco de racionamento por causa da baixa nos reservatórios, se o País tivesse equipamentos mais eficientes em algumas unidades antigas, quase centenárias, o aproveitamento da água seria maior, afirmam especialistas.
Esse processo – mais barato e com menos dificuldade de licenciamento ambiental – tem sido muito usado em vários países como forma de ampliar a capacidade instalada. De acordo com relatório da Associação Internacional de Hidrelétrica (IHA, na sigla em inglês), entre 2006 e 2016 70% do crescimento líquido da capacidade hidrelétrica dos Estados Unidos foi conseguido por meio de repotenciação de usinas existentes. Canadá e Rússia também têm programas em andamento nesse mesmo modelo.
Segundo a IHA, por volta de 2030 mais da metade da capacidade hidrelétrica mundial terá passado por repotenciação ou modernização e, até 2050, todas as usinas instaladas deverão ter realizado alguma ação semelhante. “As experiências internacionais mostram que o ganho pode chegar a 20% da capacidade. Mas o número exato só se conhece após projeto de engenharia e cálculos de viabilidade econômica”, diz Diego Almeida, pesquisador de mestrado e políticas públicas da UFRJ.
No Brasil, o “retrofit” de hidrelétricas ainda está em ritmo menos acelerado do que no restante do mundo. Uma das explicações é que, até bem pouco tempo atrás, o foco estava na construção das megausinas. Com as complicações ambientais e maior dificuldade para obter licenciamento ambiental para novas hidrelétricas, a repotenciação pode ser um paliativo. “Devemos lembrar, no entanto, que isso não substitui a necessidade de retomarmos a construção de novas usinas”, diz o presidente da Associação Brasileira de Pequenas Centrais Hidrelétricas (Abrapch), Paulo Arbex.
Outro motivo do atraso do processo de repotenciação no Brasil é a questão regulatória. O objetivo da EPE ao fazer o levantamento com as 51 usinas – com potência acima de 100 MW e idade superior a 25 anos – foi exatamente levantar a discussão sobre o potencial existente e a necessidade de avanços na regulação. As mudanças envolvem sobretudo a remuneração da nova potência instalada – o Ministério de Minas e Energia está estudando o assunto.
Em geral, esse tipo de ampliação agrega mais potência do que energia gerada, o que exige um modelo específico, explicam os superintendentes da EPE, Bernardo Folly Aguiar e Thiago Ivanoski. Segundo eles, a repotenciação pode ser uma solução barata para agregar energia em momentos de pico – hoje, o foco da crise elétrica nacional. Para isso, é preciso criar programas de incentivo para essas obras, incluindo linhas para financiar os projetos, a exemplo do que ocorre em outros países.
Projetos em andamento
Mesmo sem um programa específico, algumas empresas já se movimentam para renovar suas usinas, como é o caso da Centrais Elétricas de Santa Catarina (Celesc). A companhia acaba de concluir a repotenciação da usina Celso Ramos, construída em 1963 para atender a cidade de Concórdia (SC). Com investimentos de R$ 40 milhões em duas turbinas, a obra mais que dobrou a capacidade da PCH, de 5,6 MW para 13,9 MW.
A companhia tem 12 unidades de 107 MW de potência e idade média de 79 anos. Por isso, a modernização do parque é importante. Com o passar dos anos, a eficiência dos equipamentos diminui com paradas recorrentes para manutenção. Isso reduz a geração média da usina ao longo do tempo.
Além de Celso Ramos, a Celesc tem projeto de repotenciação de outras duas unidades: Salto, que deve subir de 6,3 MW para 29 MW, e Caieiras, de 4 para 9 MW. “No caso de Salto, colocaremos mais duas turbinas e construiremos mais uma casa de força. Em nenhum projeto há aumento de área alagada, apenas aproveitamos melhor o volume de água do rio”, diz o diretor de geração, transmissão e novos negócios da companhia, Pablo Cupani Carena.
O engenheiro Alexandre dos Santos Fernandes, especialista em hidrelétricas da Weg, conta que tem percebido uma procura maior para repotenciação de usinas e alguns processos de concorrência pública. “É um bom negócio. Com 30% do valor do equipamento, se consegue mais 30 anos de operação.”
Na Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE), do Rio Grande do Sul, as obras de expansão da usina de Bugres devem começar em dezembro e ser concluídas em 18 meses. O projeto envolve a instalação de nova turbina e a modernização e recuperação da unidade existente, além de outros equipamentos e obras que vão elevar a potência de 11,12 MW para 17,62 MW.
“O projeto é vantajoso, pois prevê o aproveitamento ótimo (máximo que se consegue gerar numa usina com viabilidade econômica) do reservatório”, diz o diretor de geração da CEEE, Carlos Augusto Almeida. A empresa tem planos de ampliação e repotenciação de mais cinco usinas.
Mudanças regulatória
Em nota, o Ministério de Minas e Energia afirma que, de acordo com o Plano Decenal de Energia, a expectativa é que a expansão hidrelétrica alcance 4,3 mil MW até 2030 com a modernização das usinas existentes. “Contudo, para isso ocorrer, é preciso evoluir a atual forma de remuneração de atributos das hidrelétricas, como a capacidade”, diz o ministério, destacando que é preciso aprimoramentos metodológicos e de desenho do mercado de acordo com os trabalhos do Comitê de Implementação da Modernização. “A reavaliação do potencial dessas usinas pode ser uma oportunidade para a indústria de hidreletricidade do País”, diz o ministério.