Mário Scheffer
Nesta terça-feira (1º), Dia Mundial de Luta Contra a Aids, precisamos lembrar dos 360 mil mortos e 1 milhão de casos da doença no Brasil, sem esquecer da sobreposição entre a persistente epidemia de HIV, cada vez mais negligenciada, e o novo coronavírus.
A pandemia de Covid-19 interrompeu a atenção a pacientes crônicos e prejudicou serviços de assistência, prevenção e testagem do HIV. O empobrecimento de famílias, as repercussões do isolamento, com aumento de violências, transtornos mentais e uso abusivo de álcool e drogas, submetem muita gente ao maior risco de infecção pelo HIV, à piora do estado de saúde e à morte relacionada à Aids.
Sem escola ou emprego, milhões de jovens serão muito afetados, pois mais da metade dos novos casos de HIV já ocorria entre quem tem de 15 a 29 anos —um quarto da população brasileira.
O “apagão” no combate à Aids no Brasil é anterior à Covid-19. À cruzada obscurantista que proíbe falar de sexo seguro nas escolas e censura campanhas dirigidas a gays juntou-se a indigência técnica de programas governamentais.
Com isso, foi cancelado o plano de tornar o Brasil um lugar onde novas infecções pelo HIV sejam raras e, quando ocorram, que cada cidadão, seja qual for a idade, sexo, raça, cor, orientação sexual, identidade de gênero ou situação social, esteja livre de discriminação e possa ser imediatamente acolhido pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Nos países que controlaram a epidemia de HIV, a prevenção foi adaptada às possibilidades, aos desejos e à vida das pessoas, não só focada nos preservativos. O êxito veio da combinação de testes rápidos, redução de danos para usuários de drogas, tratamento pós-exposição (de emergência, em caso de sexo desprotegido), profilaxia pré-exposição ou PrEP (um comprimido por dia para pessoas HIV negativas expostas a riscos) e tratamento como prevenção (o fato de uma pessoa HIV positiva que toma os medicamentos não transmitir o vírus). No Brasil, essa prevenção “combinada” pouco alcança quem dela pode se beneficiar.
O HIV e o coronavírus têm pouco em comum quanto às formas de transmissão, efeitos no organismo, perfil das populações afetadas e estigmatização da doença. Ainda assim, e apesar de a política anti-HIV no Brasil não servir hoje de referência, a experiência acumulada em três décadas de combate à Aids deveria orientar decisões sobre a Covid-19.
Aprendemos que tratamentos eficazes, por si só, não acabam com epidemias, pois a disseminação do vírus age como marcador das desigualdades sociais. Os avanços demoram a chegar ou nem são acessados pelos mais vulneráveis.
A Aids nos lembra de tudo o que podemos alcançar quando a ciência e os direitos humanos orientam a prevenção e o tratamento, quando recursos excepcionais são garantidos, a proteção social é acionada e os cidadãos mais atingidos são mobilizados como parte da solução.
Oposto ao que ocorre na atual pandemia, a resposta à Aids foi construída pelo SUS, com liderança responsável do Ministério da Saúde, em consensos elaborados pela comunidade científica e diretrizes compartilhadas com estados e municípios, além da atuação decisiva de organizações não governamentais genuinamente comunitárias.
Os abutres que sobrevoam epidemias são sempre os mesmos, mas eles podem ser enquadrados ao bem comum. Os planos de saúde que agora reajustam mensalidades enquanto negam testes para o coronavírus foram obrigados no passado a dar a cobertura que recusavam à Aids.
As multinacionais farmacêuticas que projetam lucros exorbitantes de suas vacinas contra a Covid-19, no caso da Aids tiveram suas patentes quebradas, houve transferência de tecnologias e produção nacional de genéricos, o que foi determinante para a garantia do acesso universal aos antirretrovirais no Brasil.
Resgatar o que deu certo na luta contra a Aids no passado é o caminho mais curto para remediar a tragédia sanitária do presente.