terça-feira, 1 de dezembro de 2020

MÁRIO SCHEFFER E CAIO ROSENTHAL Não se esqueçam do HIV, FSP

 Mário Scheffer

Professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP

Caio Rosenthal

Médico infectologista

Nesta terça-feira (1º), Dia Mundial de Luta Contra a Aids, precisamos lembrar dos 360 mil mortos e 1 milhão de casos da doença no Brasil, sem esquecer da sobreposição entre a persistente epidemia de HIV, cada vez mais negligenciada, e o novo coronavírus.

A pandemia de Covid-19 interrompeu a atenção a pacientes crônicos e prejudicou serviços de assistência, prevenção e testagem do HIV. O empobrecimento de famílias, as repercussões do isolamento, com aumento de violências, transtornos mentais e uso abusivo de álcool e drogas, submetem muita gente ao maior risco de infecção pelo HIV, à piora do estado de saúde e à morte relacionada à Aids.

Sem escola ou emprego, milhões de jovens serão muito afetados, pois mais da metade dos novos casos de HIV já ocorria entre quem tem de 15 a 29 anos —um quarto da população brasileira.
“apagão” no combate à Aids no Brasil é anterior à Covid-19. À cruzada obscurantista que proíbe falar de sexo seguro nas escolas e censura campanhas dirigidas a gays juntou-se a indigência técnica de programas governamentais.

Com isso, foi cancelado o plano de tornar o Brasil um lugar onde novas infecções pelo HIV sejam raras e, quando ocorram, que cada cidadão, seja qual for a idade, sexo, raça, cor, orientação sexual, identidade de gênero ou situação social, esteja livre de discriminação e possa ser imediatamente acolhido pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

Nos países que controlaram a epidemia de HIV, a prevenção foi adaptada às possibilidades, aos desejos e à vida das pessoas, não só focada nos preservativos. O êxito veio da combinação de testes rápidos, redução de danos para usuários de drogas, tratamento pós-exposição (de emergência, em caso de sexo desprotegido), profilaxia pré-exposição ou PrEP (um comprimido por dia para pessoas HIV negativas expostas a riscos) e tratamento como prevenção (o fato de uma pessoa HIV positiva que toma os medicamentos não transmitir o vírus). No Brasil, essa prevenção “combinada” pouco alcança quem dela pode se beneficiar.

O HIV e o coronavírus têm pouco em comum quanto às formas de transmissão, efeitos no organismo, perfil das populações afetadas e estigmatização da doença. Ainda assim, e apesar de a política anti-HIV no Brasil não servir hoje de referência, a experiência acumulada em três décadas de combate à Aids deveria orientar decisões sobre a Covid-19.

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Aprendemos que tratamentos eficazes, por si só, não acabam com epidemias, pois a disseminação do vírus age como marcador das desigualdades sociais. Os avanços demoram a chegar ou nem são acessados pelos mais vulneráveis.

A Aids nos lembra de tudo o que podemos alcançar quando a ciência e os direitos humanos orientam a prevenção e o tratamento, quando recursos excepcionais são garantidos, a proteção social é acionada e os cidadãos mais atingidos são mobilizados como parte da solução.

Oposto ao que ocorre na atual pandemia, a resposta à Aids foi construída pelo SUS, com liderança responsável do Ministério da Saúde, em consensos elaborados pela comunidade científica e diretrizes compartilhadas com estados e municípios, além da atuação decisiva de organizações não governamentais genuinamente comunitárias.

Os abutres que sobrevoam epidemias são sempre os mesmos, mas eles podem ser enquadrados ao bem comum. Os planos de saúde que agora reajustam mensalidades enquanto negam testes para o coronavírus foram obrigados no passado a dar a cobertura que recusavam à Aids.

As multinacionais farmacêuticas que projetam lucros exorbitantes de suas vacinas contra a Covid-19, no caso da Aids tiveram suas patentes quebradas, houve transferência de tecnologias e produção nacional de genéricos, o que foi determinante para a garantia do acesso universal aos antirretrovirais no Brasil.

Resgatar o que deu certo na luta contra a Aids no passado é o caminho mais curto para remediar a tragédia sanitária do presente.

Pablo Ortellado - Debate interditado, FSP

 Bolsonaro é uma espécie de Midas reverso: tudo em que ele toca estraga. Sempre que o presidente se aproximou de algum debate sobre políticas públicas, a posição que abraçou terminou associada ao charlatanismo populista e à anticiência. Isso interditou debates públicos fundamentais sobre a segurança das urnas eletrônicas e a reabertura das escolas.

Desde a campanha presidencial, Bolsonaro estimula a desconfiança no processo eleitoral. Sem apresentar qualquer tipo de evidência, alegou que as urnas eletrônicas foram fraudadas e que sua vitória teria sido maior do que efetivamente foi. A postura irresponsável de fazer uma acusação grave sem provas e organizar uma campanha de descrédito do sistema eleitoral levou os atores políticos a repudiar a posição do presidente.

Mas essa compreensível repulsa terminou bloqueando um debate que precisa ser feito. Há muitos anos uma parcela da comunidade acadêmica critica a abordagem de segurança adotada pela urna eletrônica: da opção de manter o código fechado à tecnologia de ciframento. Nos testes de segurança que são periodicamente conduzidos pelo TSE, esses acadêmicos têm apontado vulnerabilidades relevantes.

O presidente do TSE, Luis Roberto Barroso, durante coletiva de imprensa para falar sobre o atraso na divulgação do resultado do 1o turno das eleições. - Pedro Ladeira/Folhapress

Há também argumentos muito razoáveis em defesa do voto impresso, que permitiria uma auditoria não digital, como é feito em muitas democracias que adotam urnas eletrônicas. Isso tudo, evidentemente, não quer dizer que as eleições foram fraudadas nem que o sistema não seja confiável —apenas que ele pode ser mais seguro.

Situação semelhante acontece com o debate sobre a reabertura das escolas. A postura do presidente Bolsonaro de minimizar a gravidade da Covid e se opor ao fechamento do comércio levou a justificadas críticas em defesa de uma saúde pública negligenciada.

Mas isso impediu também um debate nuançado sobre a reabertura das escolas que equilibrasse os riscos à saúde com outros riscos trazidos pela adoção integral do ensino à distância. Como muitos especialistas têm mostrado, o ensino à distância apresentou resultados limitados, e a perda de um ano letivo vai gerar deficits de aprendizagem que devem aumentar a evasão escolar, ampliar a desigualdade social e reduzir a produtividade do trabalho. É por esse tipo de motivo que, mesmo no rígido lockdown europeu, as escolas seguem abertas.

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Um dos piores efeitos da polarização política é que ela compromete nossa independência de raciocínio e nossa postura crítica, gerando comportamentos reflexos. Não precisamos, de maneira automática e irrefletida, ser sempre contra aquilo que Bolsonaro defende.

Pablo Ortellado

Professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.

Cristina Serra A difícil travessia de 2021, FSP (tem quadro comparativo 2. turno sp)

 30.nov.2020 às 23h15

As eleições municipais de 2020 desenham alguns contornos importantes sobre o realinhamento de forças conservadoras e progressistas no Brasil. Desde a ruptura institucional de 2016, que deve ser chamada pelo nome de fato, ou seja, golpe, essas forças vêm passando por uma reacomodação.

No pleito de agora, foi um alívio assistir à confirmação do fracasso de Bolsonaro como cabo eleitoral, sobretudo com a derrota esmagadora de seu aliado no Rio de Janeiro, o inqualificável bispo Crivella. Até aí, estamos falando da extrema direita. Já no campo da direita mais tradicional, é preciso, antes de tudo, apontar uma falácia. Partidos de direita fazem um tremendo esforço para vender a imagem de centristas. Mas é preciso não perder de vista o DNA dessas legendas. PP e DEM, por exemplo, têm sua origem no PDS, partido de sustentação da ditadura. Haja marketing para tirar esse bolor.

Também é difícil reconhecer no PSDB comandado por Bolsodória o perfil de centro (alguns diriam centro-esquerda) do partido criado em 1988 por FHC, Mário Covas e Franco Montoro. Como já era esperado, no dia seguinte às eleições, Doria voltou a adotar medidas impopulares de restrição, em São Paulo, para tentar conter a pandemia. Qual o custo humano de esperar o fechamento das urnas para anunciar essa decisão? Feitas essas considerações, é forçoso reconhecer que as legendas de direita —e não o centro— saíram fortalecidas em 2020.

Entre os progressistas, há um vácuo de estratégia. O PT perdeu preponderância, e partidos que disputam o mesmo campo não conseguem envergadura nacional. É de se notar, porém, uma bem-vinda renovação geracional na figura de Guilherme Boulos. Como esses eixos políticos se alinharão para 2022 depende menos desta eleição e muito mais da travessia que faremos em 2021. Bolsonaro e sua irresponsabilidade criminosa continuam. A pandemia também, com todos seus efeitos: morte, desemprego e fome. Com o agravante de que estamos todos exaustos.

Comparação com eleições anteriores
Comparação com eleições anteriores - Núcleo de Imageem
Cristina Serra

Cristina Serra é jornalista.