Este paper, publicado no periódico Sustainable Production and Consumption, analisa os principais atores e as dinâmicas da rede de comércio mundial de resíduos plásticos, de forma a elucidar os melhores caminhos para negociações ambientais multilaterais de gestão de resíduos.
Os países da União Europeia e da América do Norte têm papel fundamental nesse mercado, segundo dados de 2018. Por outro lado, regiões em desenvolvimento, como a América do Sul, a África e a Eurásia, apresentaram participação discreta nas redes de comércio. O estudo nota também que alguns lugares declaram pouco suas transações de lixo plástico, o que gera problemas na gestão e na recuperação desses resíduos.
A QUAL PERGUNTA A PESQUISA RESPONDE
Quais são os países com papel mais importante na rede mundial de comércio de resíduos (ou lixo) plásticos? Quais as diferentes maneiras de se julgar a posição de um país nessa rede? Os rankings mudam de acordo com o tipo de resíduo plástico analisado?
POR QUE ISSO É RELEVANTE?
Entender o papel dos países na rede de comércio de resíduos plásticos é importante para guiar negociações em processos multilaterais de comércio e governança do lixo. O trabalho também pode otimizar a disseminação de tecnologia na área e auxiliar o processo de implantação de infraestrutura de recuperação e reciclagem de resíduos.
RESUMO DA PESQUISA
O trabalho examina o comércio internacional de resíduos plásticos por meio da estruturação de dados em forma de redes de comércio entre países e do cálculo de índices de centralidade de rede para países envolvidos nesse mercado. O estudo também calcula centralidades de rede para subtipos de polímeros plásticos (etileno, PVC e estireno). As medições da rede permitem a identificação de países importantes que concentram fluxos de lixo plástico em escala. Isso pode ser útil para otimizar a disseminação de tecnologia, implantação de infraestrutura de reciclagem, bem como para estabelecimento de padrões e negociações a respeito do comércio e governança do lixo/resíduos plásticos.
As medições da rede com base em dados de 2018 mostram o papel fundamental dos países da União Europeia e da América do Norte nesse mercado e suas conexões importantes com alguns países asiáticos. Regiões em desenvolvimento, como a América do Sul, África e a Eurásia, apresentaram papéis discretos nas redes analisadas, indicando a necessidade de mais pesquisas sobre subnotificação ou outros fatores por trás dessa aparente sub-representação.
QUAIS FORAM AS CONCLUSÕES?
Alguns países possuem papel mais evidente na rede de comércio de resíduos plásticos, incluindo atuando como pontes entre mercados regionais. A identificação de países-chave na rede é importante, pois pode auxiliar processos de negociação, e facilitar a identificação de locais para investimentos e instalação de infraestrutura de recuperação material. Nota-se também que algumas regiões do mundo declaram pouco suas transações de resíduos plásticos, ou as declaram primariamente como plásticos "mistos" (não especificado), o que gera problemas na gestão e na recuperação de resíduos. As razões por trás disso formam uma área importante para pesquisa e assistência técnica futura.
QUEM DEVERIA CONHECER OS SEUS RESULTADOS?
Profissionais que trabalham com negociações ambientais a nível regional ou internacional, planejadores estratégicos em temas de cadeia de valor, reciclagem e circularidade envolvendo múltiplas jurisdições e estudantes e pesquisadores interessados no fluxo material do comércio internacional, assim como em aspectos ambientais do comércio de materiais secundários.
REFERÊNCIAS
Quiao. Huang, Guangwu Chen, Yafei Wang, Chen Shaoqing, Lixiao Xu, Rui Wang. Modelling the global impact of China's ban on plastic waste imports Resources, Conservation and Recycling, 154 (2020).
Xiaoqian. Hu, Chao Wang, Ming K. Lim, Lenny Koh. Characteristics and community evolution patterns of the international scrap metal trade. Journal of Cleaner Production, 243 (2020).
UNEP - Conference of the Parties to the Basel Convention on the Control of Transboundary movements of Hazardous Wastes and their disposal (2019).
Draft decision BC-14. Amendments to Annexes II, VIII and IC to the Basel Convention. Chao. Wang, Longfeng Zhao, MingK Lim, Weiqiang Chen. Structure of the global plastic waste trade network and the impact of China's import ban Resources, Conservation & Recycling, 153 (2020).
Brooks, Amy L., Wang, Shunli., Jambeck, Jenna R. (2018) The Chinese import ban and its impact on global plastic waste trade. Science Advances 20, Vol 4, No. 6.
Henrique Pacini é economista na UNCTAD (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) em Genebra, onde trabalha com temas ligados a desenvolvimento, meio ambiente e economia circular. Atualmente trabalha em um programa de pesquisa de US$ 28 milhões (SMEP) que apoia iniciativas para a redução de poluição industrial na África e Ásia. Foi pesquisador visitante na Universidade de Harvard (Weatherhead Center for International Affairs), tem doutorado em energy technology pelo KTH (Instituto Real de Tecnologia), na Suécia, mestrado pela University of Applied Sciences de Bremen, na Alemanha, e graduação em economia pela FEA-RP, na USP de Ribeirão Preto.
A pandemia é como um motor ultrapotente que acelerou o mundo contemporâneo a uma velocidade inédita, borrou as fronteiras entre trabalho e vida doméstica, e que existe em paralelo a uma epidemia de exaustão, tornando todos os seus efeitos maiores e mais complicados. Parece impossível conseguir descansar nesse cenário, mas de acordo com o historiadorLeandro Karnal, é preciso achar maneiras. Mais que importante, o descanso seria estratégico.
Acontece que o próprio Karnal também tem dificuldades para conseguir parar. Historiador, escritor com 18 títulos publicados, palestrante, youtuber (seu canal Prazer, Karnal tem mais de 700 mil inscritos) e apresentador da CNN Brasil, Karnal tornou-se uma espécie de analista do mundo contemporâneo, capaz de jogar luz sobre problemas tão diversos quanto presentes na vida atual. Fala da ansiedade onipresente no planeta, ao crescimento das milícias, passando pelo amor no século 21.
Talvez por isso mesmo ele diga que ainda está aprendendo como alcançar seu próprio descanso. Se a vida está rápida e confusa para todos, talvez para ele também, a exemplo de como foi difícil marcar essa entrevista: em meio a uma semana repleta de compromissos que pareciam minar qualquer oportunidade de conversa, ele não abriu mão de fazer as reflexões abaixo.
Karnal vê o descanso como uma parada obrigatória para que o corpo e a mente consigam seguir em funcionamento. Descansar então não significa tirar férias e cansar-se em viagens com atividades mil ou ficar em casa sem o trabalho profissional mas assumindo obrigações domésticas, mas sim parar totalmente. “É inteligente prever paradas que não precisam ser férias caras com planilhas de atividades. Parar, meditar, ler, sem compromisso. Parar, verbo sem complementos”, afirma na entrevista a Gama, que respondeu por e-mail e que você lê a seguir.
É mais fácil tirar um rim de alguém do que o deixar sem Wi-Fi. Depois, reclamamos do cansaço. Sejamos honestos: nós o adoramos
G |Hoje é difícil achar alguém que não ache que mereça um descanso. Como chegamos a esse ponto?
Leandro Karnal |
Existe uma sociedade com exigências crescentes sobre os indivíduos. Descansar passou a ser considerado um obstáculo ao sucesso. A pandemia acelerou tudo. Trabalho em casa destruiu os poucos limites entre lar e trabalho. É uma armadilha: trabalhar sem cessar é uma sabotagem de si.
G |Como descansar num ano apocalíptico?
LK |
É obrigatório, especialmente importante se houver crise no ar. Sem descanso, a crise destrói ainda mais. Descansar é estratégico. Isso foi dito por Paul Lafargue e Domenico De Masi em conjunturas distintas. Pessoas de sucesso sabem parar. Tarefeiros são úteis, mas são descartáveis.
G |As antigas relações de trabalho estão sendo radicalmente reconfiguradas. Num mundo “uberizado”, com precarização de direitos, aumento da informalidade e achatamento salarial, estamos caminhando para a morte do descanso?
LK |
Nos EUA, uma pesquisa de 2015 feita pelo Conselho Nacional de Segurança, mostrava que 43% dos trabalhadores dormiam menos do que o recomendado. Esse número deve ter crescido, se eu tivesse que apostar. Outro que mapeou a tendência em ótima reflexão foi Byung-chul Han, que no livro “A Sociedade do Cansaço”, compara a exaustão atual a uma epidemia. No mundo sólido de meados do século passado, as epidemias eram virais, de fato. Han não previa a atual pandemia. Mas isso não invalida seu argumento de que, hoje, as doenças são neurais. Pesquisas feitas na Inglaterra e na França na primeira década dos anos 2000 já relacionavam a falta de descanso e sono com o desenvolvimento de doenças, maus hábitos (como o tabagismo) e prejuízo à formação do feto. Qual a razão de tudo isso para Han? O excesso de algo que, na filosofia, chamamos de positividade. Se antes, como descreveu Foucault, vivíamos a sociedade da disciplina e nossos corpos obedeciam a sinais para entrar e sair de fábricas e escolas, chefes e metas impostas de baixo para cima, hoje vivemos uma cultura do positivo.
G |Passar mais tempo em casa, sempre foi um objeto de desejo para os trabalhadores. Nessa pandemia, porém, o confinamento revelou para muitos um lado sombrio da vida doméstica. Esse ano pode contribuir para repensar a ideia de descanso?
LK |
Passar tempo com a família era um prêmio depois do stress do trabalho. Ficou uma mistura estranha de trabalho, demandas com crianças e jovens e cuidados da casa. O lar não é mais um refúgio onde você fica de roupa confortável e se esquece do resto. Simplesmente juntamos todos os defeitos de todos os lugares em espaços pequenos.
G |Vivemos uma época em que palavras como produtividade e eficiência parecem ter virado mantras. Até os momentos de lazer entram nessa lógica: existe uma pressão para se extrair o máximo possível do tempo livre. Como sair dessa armadilha?
LK |
O antídoto não seria o sim, o positivo, mas dizer não. Baixar o celular, desligar. Não aceitar, não ver, não produzir. Descansar, contemplar, trabalhar para viver e não o contrário. Mas quem aceitaria essa vida atualmente. É mais fácil tirar um rim ou outro órgão de alguém do que a deixar sem Wi-Fi por uma semana. Depois, reclamamos do cansaço. Sejamos honestos: nós o adoramos. Nós o esculpimos, alimentamos, pomos e tiramos do sol. O esmero é tanto nosso companheiro que ele já se confunde comigo.
G |É possível aprender a descansar?
LK |
Você terá de parar, ou porque planeja isso ou porque seu corpo o obrigará ou por colapso mental. Assim, é inteligente prever paradas que não precisam ser férias caras com planilhas de atividades. Parar, meditar, ler, sem compromisso. Parar, verbo sem complementos. Parar para não ser parado.
G |Descansar da própria família: é legítimo e ético?
LK |
Perfeitamente. Ninguém é totalmente outra coisa além de si. Assim, você não é um trabalhador 100% nem pai ou mãe 100%. É saudável isolar-se para aumentar a saudade, estimulará consciência dos outros. As pessoas seriam mais felizes se se permitisse alguns dias longe de quem amam. Isso é uma opção de sanidade.
G |A internet nos oferece um debate eterno e cansativo. Como se proteger do loop de cancelamentos e lacrações e tirar um descanso dessa esfera da vida atual?
LK |
Não tenha opinião sobre todas as coisas. Não precisa. Saber usar a internet é fundamental. Parar de ser usado por ela. Não precisa ativar todas as notificações. Use. Não seja usado.
G |Agora na pandemia vemos um êxodo urbano em busca de uma vida menos frenética. Como vê isso? É uma ilusão ou é possível desacelerar no século 21?
LK |
“Fugere urbem” é antigo. Existia em quase todas as culturas. Fugir da cidade pode ser uma estratégia para quem pode. Porém, não se esqueça: quase sempre somos os carcereiros de nós mesmos. Ao fugir, você estará se levando. Não adianta trocar apenas a visão da janela da sua cela privada.
G |Você, pessoalmente, o que faz para descansar? E o que o impede de descansar?
LK |
Leio, toco piano, tomo vinho, faço atividade física, viajo. Adoro o isolamento terapêutico. Amo fazer paradas estratégicas. Porém, confesso, amo trabalhar e me canso menos do que a média das pessoas. Estou aprendendo a parar. É uma educação nova.
Uma gata, um cachorro, um jumento e uma galinha, fartos da exploração de um tal barão, abandonam seus postos de trabalho em busca do sonho da carreira artística. Em 1977, Chico Buarque lançava essa fábula no disco “Os Saltimbancos”, adaptação de composições do ítalo-argentino Luis Bacalov, por sua vez baseadas em um conto recolhido do folclore europeu pelos irmãos Grimm no século 19. Não é preciso muito esforço interpretativo para perceber que a historieta infantil é, na verdade, a alegoria de uma classe trabalhadora que se levantava contra os patrões para exigir melhores condições de vida, entre elas a limitação das horas trabalhadas.
Depois de atravessar tantos anos, eternizada nos livros de história ou metaforizada na fábula dos irmãos Grimm e nas vitrolas das crianças brasileiras, a memória das mobilizações que garantiram o direito ao descanso parece se esgotar no século 21 — e não é como se testemunhássemos o retorno da figura anacrônica de um barão sempre à espreita, obrigando seus funcionários a darem tudo de si. Entre o home office, as mensagens de Whatsapp e o acesso ao email profissional a um toque do dedo, a questão ganha contornos mais sutis: não faltam queixas sobre o desaparecimento dos limites entre trabalho e lazer e a sensação de que estamos cada vez mais sem tempo.
“Estamos conectados para trabalhar 24 horas por dia, sete dias por semana; portanto, escapar do trabalho é cada vez mais difícil e é impossível recuperar o atraso: sempre há mais a fazer”, diz a Gama Lee Caraher, autora do livro “The Boomerang Principle: Inspire Lifetime Loyalty from Your Employees” (“O Princípio Boomerang: Inspire Lealdade Vitalícia em Seus Funcionários”, sem tradução para o português) e CEO de uma agência de comunicação na Califórnia. Por lá, no Vale do Silício, trabalhar demais virou até uma espécie cultuada de estilo de vida: o chamado “hustle” — ou “agitação” +. Caraher conta uma história bem ilustrativa: “Trabalhei com um capitalista de risco que optava por investir em empresas com base na quantidade de carros no estacionamento durante o fim de semana”.
Descansada e de bem consigo mesma, a pessoa rende mais e melhor; a produção de um funcionário estafado cai
Na contramão dessa mentalidade, que ultrapassa as fronteiras das startups norte-americanas e atinge hoje profissões diversas, cada vez mais pesquisas apontam para os benefícios das horas de repouso, inclusive para a produtividade. “É uma contrapartida:descansada e de bem consigo mesma, a pessoa rende mais e melhor. A produção de um funcionário estafado cai, é comprovado que ele precisa recompor sua rigidez mental e física para dar continuidade aos trabalhos”, explica Luciana Remolli, conselheira seccional da OAB-SP e vice-presidente da Comissão de Direito do Trabalho da ordem dos advogados paulistas. E essa percepção não é nova: está também nas origens do conceito de descanso nos sistemas capitalistas de produção.
Conquistado há mais de 150 anos, o direito ao tempo livre e às horas de lazer, hoje visto pela ótica do princípio da dignidade humana, levou décadas para ser institucionalizado. “Os direitos nunca são dados: são conquistados por meio de mobilização social e política”, observa a historiadora e professora da UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro) Fabiane Popinigis. Dos saltimbancos do século 19 ao home office na pandemia, a invenção do descanso é uma história de progressos e reversos, diz a pesquisadora. A seguir, recuperamos alguns fatos para entender melhor essa linha do tempo.
1854: trabalhadores da construção civil fazem pausa para descansar em LondresPhilip Henry Delamotte / Getty Images
Século 19: a invenção
É claro que antes da Revolução Industrial existiam outras formas de tirar uma folguinha: na Antiguidade havia até viagens para destinos turísticos — termas, locais religiosos, festivais; os romanos, por exemplo, não trabalhavam no sábado, dia dedicado ao deus da agricultura. Por muito tempo, aliás, eram as plantações e a natureza que regiam os períodos de férias. “Era um trabalho sazonal, que dependia das estações do ano, do dia e da noite”, explica Popinigis. A ideia de descanso que conhecemos hoje, porém, surge no contexto do capitalismo, “quando o trabalho passa a ocupar todas as horas de quem não tem renda suficiente”.
Das jornadas longuíssimas nas fábricas inglesas nasceu a urgência de reservar alguns momentos para colocar os pés para cima. “A principal reivindicação era pelo controle tanto do processo de trabalho quanto do período de repouso”, diz a historiadora. Uma luta que começou também motivada pela ressaca dos raros momentos de lazer: muitos operários aproveitavam o domingo, dia sagrado em que ninguém trabalhava, para se divertir — e aí faltavam na segunda, quando descansavam de fato, se recuperando dos excessos cometidos no dia anterior.
A principal reivindicação era pelo controle tanto do processo de trabalho quanto do período de repouso
A tradição de “guardar a segunda-feira santa” acabou prejudicando a produtividade e fez com que muitos donos de fábricas dessem meio sábado de folga aos seus empregados, além do domingo, para mitigar o problema. Durante a segunda metade do século 19 +, outras iniciativas se somaram a essa pequena greve semanal: a mobilização do movimento sindical, apoiada por organizações religiosas e de lazer, resultou na gradativa regulação das jornadas de trabalho pelos governos europeus.
Enquanto isso, no Brasil, os trabalhadores do comércio levantavam a mesma bandeira. “Desde meados do século 19 eles reivindicam o tempo livre. É uma das primeiras mobilizações historicamente verificáveis por aqui”, conta a professora da UFRRJ. Várias associações surgiram e passaram a organizar movimentos de “fechamento das portas” das lojas. “Eram pessoas que trabalhavam por 16, 18 horas, dormiam no local de trabalho, tinham uma relação de dependência com o patrão. Então, surgem essas associações com o intuito de regulamentar isso tudo.” Outras classes, como os operários fabris e os escravizados, também encabeçaram suas próprias lutas pelo direito ao descanso no país.
As manifestações começaram a surtir efeitos, ainda que pontuais: ao longo do século 19, houve a instituição de diversas leis a nível municipal e, nacionalmente, o Brasil foi o terceiro lugar do mundo a implementar a ideia de férias anuais, segundo Luciana Remolli, da OAB-SP. “Em 1889, o Ministério da Agricultura, do Comércio e das Obras Públicas concedeu 15 dias consecutivos de férias por ano aos seus funcionários”, explica.
Século 20: a consolidação
Foi só no século 20, no entanto, que o benefício se estendeu para o setor privado, consolidado em leis mais robustas que foram sofrendo alterações com o passar dos anos. O primeiro decreto que instituiu o direito a 15 dias de férias remuneradas a todos os trabalhadores urbanos do Brasil é de 1925. Depois, em 1933, outras regras foram adicionadas, como o desconto de faltas e o intervalo de um ano entre dois períodos de férias. Tudo isso foi sistematizado em 1943, na CLT, que também incluiu os trabalhadores do campo no benefício. E, finalmente, em 1977, o repouso foi expandido para os 30 dias que temos hoje.
As mudanças graduais mostram que a lei não surgiu do nada, e nem somente da boa vontade dos governos.“Houve um histórico de luta dos trabalhadores por décadas, e essa legislação trabalhista incorpora isso. Por isso, se chama Consolidação das Leis do Trabalho: é a consolidação de uma diversidade de movimentos”, diz Popinigis. Além disso, não só aqui como no resto do mundo, os patrões passaram a perceber as vantagens de os funcionários curtirem uns dias livres. Para além do aumento da produtividade e da diminuição das faltas, as férias eram também uma oportunidade de negócio.
Houve um histórico de luta dos trabalhadores por décadas, e a legislação trabalhista incorpora isso
Uma história emblemática nesse sentido é a de Henry Ford. Em meados da década de 1920, o fabricante de automóveis percebeu que a folga dos trabalhadores aos sábados e domingos dava a eles tempo para consumir — e o dinheiro gasto mantinha a economia circulando. Anos antes, o empresário já tinha aumentado o salário de seus funcionários pensando na mesma coisa. “Quem tem mais lazer precisa de mais roupas, come alimentos mais variados e quer andar em veículos”, teria argumentado.
Isso sem contar que determinar um período de descanso estimulou o desenvolvimento do turismo — movimentando trilhões de dólares por ano, o setor se tornou a principal atividade econômica em diversos países. A partir de meados do século 20, o advento e a popularização da aviação comercial deram um boom nos negócios de turismo, totalmente relacionado à noção de férias do trabalho, que aos poucos também ia se consolidando ao redor do globo.
Não à toa e até antes da covid-19, a ideia do direito a se desconectar passou a ganhar força, quase como um renascimento moderno da luta pela redução das horas de trabalho. A França foi pioneira ao reconhecer, em 2001, a desconexão como um direito humano — a regulamentação disso como lei, entretanto, veio apenas em 2017, garantindo que o trabalhador se desligue de assuntos profissionais após o horário comercial. Nos últimos anos, diversos países europeus e algumas grandes empresas adotaram a iniciativa, que entre outras coisas proíbe comunicações via email depois do fim do expediente.
“Os líderes têm que estabelecer limites razoáveis e reconhecer que as pessoas precisam de maior flexibilidade em seus dias para que suas vidas funcionem. Isso é ter um estilo de vida saudável”, diz Lee Caraher. Com a pandemia, porém, a coisa desandou. “Quem está em home office muitas vezes atende ligações e responde Whatsapp e email o dia todo, não respeita horário de almoço. Temos relatos de empresas advertindo funcionários que não respondem em tempo real”, afirma Luciana Remolli. Ela acredita que, inclusive legalmente, é um momento de incerteza com relação à garantia do descanso.
Os líderes têm que estabelecer limites razoáveis e reconhecer que as pessoas precisam de maior flexibilidade para que suas vidas funcionem
Não que antes todos estivessem em uma situação ideal. “Os trabalhadores de aplicativo, por exemplo, têm que ficar o tempo todo atentos a um chamado. Não existe horário de trabalho, e o controle do tempo é cada vez mais pulverizado”, lembra Fabiane Popinigis. Mesmo dentro da CLT brasileira, a pesquisadora considera a flexibilização do dia de repouso pela reforma trabalhista de 2017 uma derrota — já que o empregador pode exigir o trabalho aos domingos, historicamente livre, trocando a folga por outro dia da semana.
Por outro lado, despontam no horizonte alternativas mais otimistas. Alguns países e empresas vêm testando a redução da jornada semanal de cinco para quatro dias de trabalho: experimentos na Suécia e na Nova Zelândia mostraram que um regime de menos horas não só aumenta a produtividade, mas traz equilíbrio entre vida pessoal e profissional e melhora a saúde mental e o bem-estar físico, reduzindo até o risco de doenças. Além disso, pesquisas indicam que um fim de semana de quatro dias diminuiria os impactos ambientais da economia.
Embora pareça uma mudança radical — e que, claro, implicaria em gastos e ajustes por parte dos empregadores —, essa ideia se aproxima das previsões de especialistas do século 20, época em que o direito ao descanso ainda engatinhava: em 1928, o economista britânico John Maynard Keynes afirmou que o avanço tecnológico reduziria a jornada semanal de trabalho para 15 horas dentro de 100 anos. O que ele não previu é que uma série de crises econômicas deixariam as pessoas sem muitas opções senão dar uns passos para trás na conquista do descanso. “Como a gente vive ondas de desemprego, é claro que o trabalhador se submete a isso”, avalia Remolli.
Com as máquinas fabris transfiguradas em smartphone e o barão no fantasma da recessão, parece, afinal, que estamos mais próximos da exaustão dos animais na antiga fábula dos saltimbancos do que de um 2028 com muito mais horas livres, como idealizou Keynes. A história, afinal, tem dessas. “O descanso tem uma história, mas não necessariamente é uma história de progresso”, diz Popinigis.